quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O observador

Esse frio do início de agosto tem sido bastante agradável, tenho dormido mais cedo e acordado mais tarde, sem me preocupar em tirar longas pausas durante o dia, entre uma aula e outra ou após um artigo particularmente complexo de análise política que eu de fato não entendi, mas que apenas li para tentar forrar um pouco o meu substrato mental com algum conteúdo de fora de minha área de domínio. Área esta que eu nem sequer sei qual é, de qualquer modo. 

Tenho estado satisfeito com os progressos na leitura que tenho feito. Passei alguns meses sem conseguir sair de um único livro, o que é irônico comparado a quantidade de livros que eu compro com frequência, que já não encontram outra forma de serem guardados senão empilhados nos móveis já abarrotados de títulos que vão desde um grande dicionário de liturgia a clássicos da literatura juvenil, além, é claro, de algumas obras de filosofia e uma porção de livros que me foram enviados pelos clubes de leitura justamente pelo fato de que não sabia por onde começar a ler e que tenho uma certa quedinha por coleções bonitinhas expostas na estante. Um dia ainda farei uma grande prateleira, sob medida, num cômodo destinado unicamente a guardar livros e alimentar meu desejo de ter uma pequena biblioteca de grandes títulos. 

Um sonho bobo talvez, pequeno até se considerar o desejo de tantos outros ou até mesmo o que já realizaram ou ambicionam realizar. Fico feliz em ver o quanto algumas pessoas cresceram. Uma amiga minha trabalha na emergência de um hospital, é fisioterapeuta, e fico imaginando como deve ser presenciar aquelas cenas tipo as de Greys Anatomy de salvamentos na sala vermelha. 

Eu nunca fui dado a grandes ambições. Desde que me recordo muito me agradou a posição de professor, um nicho adequado a alguém como eu, sem o dom da criação mas dotado do dom da reprodução, igualmente necessário, afinal todos que aprenderam alguma coisa foram ensinados por um professor. Acho nobre. 

A reprodução é algo que faz parte da minha vida. Reproduzo conhecimentos que aprendi de outros. Como músico eu canto peças que foram escritas por outros, e me encanto com os meus amigos, que possuem uma potência criativa belíssima também. Mas não os invejo. Embora todos se recordem de Beethoven mas nem todos se lembrem do maestro que conduz as suas sinfonias quase duzentos anos depois é esse maestro que me permite contato com o mestre alemão. Ser professor é ser ponte. Como músico também sou ponte, entre quem ouve e quem escreveu as peças que tanto amo. Transmito aos outros, seja na música ou na sala de aula, aquilo que de algum modo me encantou. 

Talvez seja um criador aqui nesse espaço. As palavras que escrevo são minhas, mesmo que inspiradas por outros, diga-se, mas ainda são minhas. São o reflexo de minhas impressões, são minhas expressões.

Esse tema é algo que me chama muito a atenção. Desde muito novo percebi o abismo entre as minhas impressões e as dos outros que me cercavam. Lembro de certo episódio, lá pelos seis ou sete anos, quando me enfureci com o fato de que todas as minhas roupas eram pretas ou azuis, e que eu sempre tinha de andar com as mesmas combinações de calça e camisa enquanto minha prima, que morava na casa colada a minha, tinha a sua disposição um leque enorme de opções. Preto, azul, rosa, amarelo, branco. Sandália, salto, sapatilha, tênis. Calça, shorts, regatas, com alça, sem alça, vestidos, saias. Isso me incomodou. Mas "menino se veste assim" foi a única resposta que consegui, além das ameaças de meu avô que não gostou nem um pouco de ouvir aquela indagação de tamanha injustiça.

Demorei muito tempo pra entender que tinha outras opções, e os meus pais ainda acham estranho. Posso preferir preto e azul, mas abomino qualquer coisa que faça parte da gama de "roupa social" desde que tentaram me obrigar a usar apenas camisetas com estampas religiosas e cabelo penteado bonitinho pro lado, como todos os outros garotos que iam a missa. Continuo indo a missa, quase todos os dias, mas é preciso uma tortura pra me colocar dentro de uma roupa social. Prefiro as batas, as calças largas, muito tecido. A vestimenta oriental é meu sonho mais elevado. Gosto das tatuagens do cabelo um pouco grande, se fosse bom deixaria ainda maior, das unhas pintadas. 

E as diferenças de percepção não pararam aí. Comecei a gostar de anime, coisa de menino que não joga bola na rua. Animes sempre foram uma inesgotável fonte de inspiração para aventuras fantásticas que gosto de imaginas todos os dias, de portas fechadas, quando consigo fugir deste mundo para qualquer outro lugar onde poderes sobrenaturais sejam tão comuns quanto meninos gostarem de futebol. Eu, aliás, sempre odiei jogar bola, tanto que sequer cheguei a aprender. 

Eu gostava dos personagens delicados, que justamente não se pareciam nada com os meninos que eu conheciam, todos iguais de algum modo. Shun de Andrômeda, o viadinho, Kazuki, o viadinho dos fios que namorava o viadinho das agulhas, Angemon, o digimon do moleque que com certeza ia ser viadinho e que quem gostava ia ser viado também sempre foram meus favoritos. 

Nunca consegui gostar da mesma música que ouviam também. Em casa, sertanejo. Até hoje tenho certa ojeriza por esse gênero, embora conceda algumas exceções quando estou bêbado ou demasiado apaixonado. Os meninos (sic!) gostavam de rap, nunca achei mais do que barulho e gente falando rápido, bizarro. Gostava de coisas mais melodiosas, que falassem de coisas diferentes, e demorei muito pra achar algo que me agradasse, e isso se mostrou outro abismo de percepções.

Meu mundo se abriu para um universo cor de rosa quando conheci os primeiros musicais, e eu decorava as músicas com uma velocidade alucinante, até hoje gosto bastante. Acompanhada dessa descoberta eu fui parar do outro lado do mundo, onde estou até hoje. Primeiro a música japonesa, trilha dos animes, depois a coreana, chinesa, tailandesa e que, hoje, já não tem fronteiras. High School Musical, Camp Roch, The Chettah Girls, Ikimono Gakari, Kiroro. Ali eu me achei. Mais tarde conheci também a música clássica, outro universo que me elevou ainda mais aos céus, e ainda mais distantes de todos os outros que, ao meu redor, ainda preferem o sertanejo repetitivo das rádios ou rock barulhento de viciados que já morreram de overdose ou que hoje cultivam uma pose de jovialidade que me faz sentir pena. Mozart, Verdi, Tchaikovsky são alguns dos compositores que me emocionam e que fazem parte da trilha sonora da minha vida. 

Crescendo um pouquinho eu fui entendendo que minhas percepções em relação aos meninos da minha idade só iam aumentando, não vivíamos no mesmo mundo e, no entanto, eu não conseguia parar de olhar para eles com certo ar de encantamento, encantamento que eu não entendia mas que aprecia muito com o mesmo encantamento com que eles olhavam para as meninas. 

Passei a ser mais observador, afinal não tinha muitos amigos para conversar ou brincar, e comecei a reparar neles. O cabelo bonitinho, um sorriso fofo, um corpo mais ou menos definido. Aos poucos fui percebendo que minha sexualidade também era diferente, da maioria. Naquela época nem me passava pela cabeça que muitas pessoas além de mim sentiam o mesmo. 

E então me vi assim, gostando de tudo que os outros não gostavam e, ainda assim, gostando dos mesmos meninos que eram tão diferentes de mim. Não demorei a me apaixonar pela primeira vez por um menino. Coisa de escola. O garoto popular e eu, o nerd que tirava boas notas e que ele nem sequer sabia o nome. Depois, outro menino que, mesmo esse sabendo bem quem eu era, também não sentia o mesmo por mim. E depois outro, esse também não se interessava, era hétero. E outro, que não passou de algumas poucas conversas na internet. E outro, que estava confuso mas acabou preferindo namorar uma garota e nunca mais falar comigo. E outro, que me procurou porque tinha brigado com a namorada mas não queria nada sério com um menino. E outro. E outro. E outro. E outro. E outro. 

E hoje, com vinte e cinco anos ainda não achei alguém que não parecesse estar do outro lado de um abismo, olhando pro céu enquanto eu olho pra baixo, com medo de cair. Parece, eufemismo meu, que tenho uma quedinha por garotos que estão do lado de fora da minha caixinha de possibilidades. Caixinha essa que parece vazia, diga-se. 

Experiências à parte, o primeiro namorado, aquela paixão avassaladora que durou apenas uns poucos meses. A primeira vez, o beijo com sabor de skol beats azul. Depois alguns outros, um que não sabia beijar ainda, outro que beijava muito bem. Um que não queria nada sério, eu também não. Um que não soube lidar com um relacionamento que também durou poucos meses. Alguns beijos nos amigos durante as festas, mais uma vez com gosto de bebida. Mas nenhum deles vivia nesse mundo.

Na internet a coisa não mudou muito. Ao menos conheci pessoas que gostam das mesmas coisas. Mas ainda assim não me achei. Tem o fandom de kpop, o fandom de BL, os apreciadores de música clássica, os colegas do curso de filosofia, o pessoal da Igreja, mas sei lá, em todos os lugares parece que eu vejo um mundo diferente. 

Assim eu continuo aqui, escrevendo na esperança de ao menos essas palavras possam me entender de algum modo. Talvez algum dia encontre alguém que as entenda ou quem sabe, eu esteja mesmo apenas destinado a ver as coisas de um jeito um pouco diferente da maioria. Talvez eu seja, na verdade, um observador, um observador que silenciosamente apenas contempla o mundo ao redor e que registra essas impressões sem fazer parte dele na realidade. 

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