sábado, 29 de julho de 2023

Perfumado

Kaoru, escolhi esse nome porque me disseram que significava "perfumado", nem sei se está certo, mas me recordo que a primeira vez que o ouvi tive dificuldade de identificar o que era. Ouvi num anime, bem desconhecido, mas que tem uma das histórias que mais gostei até hoje, um slice of life chamado Planet Survival, onde o personagem com esse nome era um garoto fechado com um passado doloroso e que vivia afastado de todos, mesmo estando sempre preocupado e com um coração ardente por aqueles que o rodeavam. Na época eu achava isso legal e o nome me marcou, mas não foi isso que me escolhê-lo como pseudônimo.

Eu tenho uma relação limítrofe com perfumes, pois desde muito pequeno não sinto muitos cheiros. Sempre foi comum ouvir as pessoas falarem sobre o perfume de colônias, hidratantes, sabonetes, e nada disso eu consigo perceber, apenas um ou outro muito isoladamente, na maior parte das vezes aqueles perfumes mais fortes, especialmente mais doces, frutados e florais e que são, justamente por isso, os que mais gosto. E então sempre senti apenas alguns cheiros aleatórios, fragrâncias quaisquer que se apareciam e que, por serem as únicas que sentia, se tornavam marcantes. Apenas mais recentemente, depois de um tempo fazendo tratamento para um quadro grave de alergia, que fazia inchar boa parte dos meus seios nasais, garganta e que comprometia meu sistema olfativo, é que eu consegui a sentir novos cheiros, novos perfumes que se tornaram verdadeiras descobertas, mesmo com o agravante que agora eu sei o que me causa alergia...

Então eu descobri um mundo novo, com cheiros que todos sempre sentiram e que pra mim se tornaram maravilhoso. Como o cheiro do café (nada comparado com aquele pessoal que sente nota de cacau no café, pra mim ainda é só café), de cremes pro corpo, de sabonetes que surfam nessa onda e de fragrâncias naturais, perfumes pro ambiente e, os que mais me encantam, o cheiro particular das pessoas, especialmente aqueles que eu pude abraçar com carinho e que pude gravar na mente partes daquele momento. Ainda que me esqueça deles rapidamente a impressão de cada cheiro fica gravada, e por isso essas pessoas continuam comigo, como aquele velho amor que chorava nos meus braços numa estrada de terra depois da Missa, ou o meu afilhado que suava nervoso ao se despedir de mim, ou o colo da minha mãe quando ela voltou da cirurgia, ou daquele outro amigo que tocava violão enquanto eu encostava minha cabeça em suas costas... São lembranças que se gravaram em mim, perfumes, o cheiro da memória que acabou ficando mesmo depois de eu ter esquecido todo o resto.

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Um sonhador e um pessimista

"O que cresce na solidão é o que cada um leva consigo, inclusive a besta interior." 
Friedrich Nietzsche

Acho que eu a choquei quando disse que eu já tinha desistido. Choquei ao dizer que já não esperava mais por ninguém. Mas é a verdade. Acontece que eu já me chateei tantas e tantas vezes, já senti tanta dor ao me apaixonar, ao me apegar, ao criar toda sorte de dependências emocionais, que eu já não consigo mais. 

Hoje no caminho pro trabalho eu encontrei um rapaz que sempre costumo ver na volta pra casa, só que havia uma diferença entre vê-lo de manhã e como o vejo após o expediente. Ele estava tranquilo, na sua alvura singular, sem se importar com o frio intenso, usava só um casaco fino e uma calça bege enquanto eu coloquei duas calças e quatro camadas de roupas para conseguir sair, e ele sorria sem conseguir se controlar depois de olhar para o celular, apertando os lábios pálidos que ficaram levemente rosados e molhados. Eu olhei para ele, que estava com um dos braços erguidos segurando no apoio do ônibus, o corpo reto, com um ar de simplicidade, os cabelos pretos mais ou menos penteados começando a se enrolar em pequeninos cachinhos e os olhos tão negros quanto uma noite escura, mas brilhantes e vivos, resultado, imagino, do que alguém disse e que o fez sorrir daquele jeito. 

Mas essa bela visão veio acompanhada de um bloqueio. Como se a imagem dele só pudesse avançar até certo ponto, como se, ao olhar seus olhos negros, eu imediatamente me fechasse a eles. Porque eu sei que aquele sorriso foi motivado por outra pessoa, porque eu sei que ninguém nunca sorriria assim por minha causa, porque eu sei que, por mais que eu tente, algo em mim afasta as pessoas, fazendo com que me torne sempre o amigo, o ouvinte, aquele que aconselha (mesmo estando sempre perdido), mas nunca o amor. Eu sou aquele que, como uma miragem, desaparece da vista quando perdem o interesse, eu sou aquele que só é procurado quando precisam, eu não sou aquele que se lembram no momento de descanso, de prazer, eu sou o companheiro da necessidade, e até me sinto feliz em ajudar, me sinto mesmo, mas eu queria ser alguém a quem chamam também nos momentos de sorriso. 

Quantas vezes por isso, por causa dessa distância fundamental entre dois universos, dessa distância tão abissal que faz com que talvez duas pessoas jamais tenham sequer se visto completamente, quantas vezes por causa dessa distância eu me fechei. Me fechei em histórias que, explorando o reino da possibilidade universal, me faziam sonhar com tudo aquilo que nunca tive e que nunca terei. Homens lindos de sorriso encantador, costas largas, corpo forte, personalidade cuidadora e atenciosa. 

E por isso que aquele belo rapaz no ônibus não passou dessa barreira, eu simplesmente não mais permitir me deixar encantar com ele, ou qualquer outro, porque tão logo vejo os seus olhos brilhantes ou sua postura altiva eu já sinto o gosto amargo de todas as decepções, de toda a dor e de todas as vezes, as muitas e inumeráveis, em que eu fui deixado, em que fui trocado, em que não conseguia alcançar o coração deles por mais que tentasse, sendo lançado quase ao desespero por isso tantas e tantas vezes. Eu não quero mais, então agora são eles que não alcançam mais o meu coração, jardim fechado e fonte selada onde, em suas águas cristalinas, se refletem os olhares que trago nas entranhas esboçados.

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Companheiros

E a roda do destino tornou a girar, após o temível vulcão espalhar a sua destruição por todo o mundo sobrou apenas as cinzas e o silêncio. Uma mãe sofrida caminha por entre as ruínas, os olhos fundos, mais do que apenas a sua pele queimada, a dor tamanha que ela já nem mesmo sente e nem mesmo chora, não sabe o que procura, só continua a caminhar, até que a própria respiração venha ao seu termo sem que ela nem mesmo consiga olhar ao céu uma vez mais. Caída ela observa a sua mão delicadamente apertar um punhado daquela cinza, pouco a pouco a se transformar em lama com a chuva que começar a cair, ao passo que seus olhos vão ficando mais e mais escuros, vazios, até que seu último suspiro se perca por entre aquele som sem que ninguém se dê conta que ela se vai, assim como ninguém além dela deu pela morte do seu, pequeno corpinho a tremer até o fim...

X

Não tenho tempo para perder com auto piedade, nem para ficar reclamando de não ter estudado isso ou aquilo o bastante. Preciso fazer o melhor com o que tenho e me esforçar no que for possível sem, no entanto, me desesperar, o que seria, em si mesmo, outro problema. Só posso esperar que seja o bastante, tendo consciência de que, mesmo que não seja, é apenas o que posso fazer. 

Já estou habituado com esses dias que seguem aqueles picos de mania, ou da depressão. Hoje mesmo me encontro normal (posso dizer isso?), estou disposto, bem humorado mesmo com o clima frio e úmido, estou conseguindo fazer o que me pedem e não perder a paciência com bobagens. Estou tranquilo mesmo sabendo que nos próximos dias o movimento vai ser intenso por essas bandas por causa do Festival de Dança... Na realidade hoje é um daqueles dias que Adélia Prado dizia que Deus lhe tirava a poesia, eu olho o mundo ao meu redor e só vejo isso mesmo, sem magia, sem poesia... Mas sei que logo isso passa e vou conseguir achar alguma beleza novamente. 

Quem sabe nesses dias em que a cidade está cheia de turistas eu não encontre um jovem e doce bailarino que, sendo tímido e só conseguindo dançar que é sua paixão, acabe vendo em mim alguém que possa ficar ao seu lado e lhe ensinar que a vida tem outras coisas também belas? Perdoem o meu devaneio, é algo que eu não posso evitar. 

X

É inútil tentar se fazer entender. As pessoas enxergam apenas aquilo que elas querem não é mesmo? Eu tentei mostrar a alguém algo que acho belo, uma imagem daqueles dois rapazes no parque, e tudo que ele viu foi um momento de lazer, e acha que vejo a beleza nisso, quando em verdade o que eu via, e que eu queria que ele visse também é como dois homens juntos pode sim ser belo, sutil e simples, tão íntimos quanto aqueles casais ideais que ele me mostra todos os dias. Mas, assim como eu não consigo ver nenhuma beleza neles, ele não vê nada também, e seguimos sem nos entender, sem ele perceber que eu vejo como poderíamos ser belos assim. Mas é inútil. 

Assim como é inútil também tentar acompanhar tantas discussões, tantas mentes que só encontram prazer no ódio, na destilação do mais puro caos e que são incapazes de ver, não digo nem mesmo a beleza do outro, mas o próprio outro. Geralmente deixo apenas que as pessoas falem, que se deixem libertar desses sentimentos, que talvez se sintam melhores assim. Mas dessas pessoas eu quero distância, quero ficar bem longe desse coração duro, desse ódio que as consome. Desse medo pelo que é real que as faz querer destruir tudo e todos, já que todo o mundo está errado, todos os sistemas, todos os homens, tudo o que foi criado, e apenas as suas grandes mentes foram capazes de perceber o que há de horrível e podem estruturar o céu na terra, numa imanentização da escatologia, no horror ao outro, ao humano, ao belo, a tudo aquilo que não é produto do seu meio limitado e imediato. 

Dessas pessoas eu não invejo a companhia, de modo algum. Prefiro ficar sozinho, mesmo com toda minha aversão à solidão eu me recuso a ficar por perto dessa dialética negativa materializada. 

Por isso talvez os meus sonhos de companheiragem são tão distantes...

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Mais mudanças

Mudanças e mais mudanças de humor... Ontem até uma colega do trabalho presenciou o momento em que comecei a ficar mais agitado e a mudar as coisas da sala de repente, eufórico, naquele frenesi típico da mania um pouco mais aguda... Conversava com um amigo que esses dias, no entanto, guardam um sentimento amargo: muito embora eu fique bem mais disposto e as pessoas notem isso e vejam com bons olhos, e o meu rendimento vá lá em cima, uma parte de mim simplesmente adormece. 

É normal que homens na minha idade acordem excitados, no entanto, quando estou nessa fase de mania eu simplesmente morro. É semelhante ao efeito dos antidepressivos que devolvem certa vitalidade ao preço da libido, o que é uma reclamação recorrente de quem toma essas drogas. Me lembro que quando tomava mais remédios era bem assim, mas já tem mais de um ano que o tratamento foi interrompido e agora esse sintoma em particular voltou com ainda mais força.

Não consigo descrever o quanto é desagradável, e nem é pelo simples fato de não ficar duro, tomado isoladamente, mas pela sensação de estar quebrado, de não funcionar como deveria, algo tão normal e que, até pouco tempo atrás, era absolutamente natural. Qualquer menino desde os doze anos mais ou menos acorda assim, ou fica assim aleatoriamente na aula de educação física ou no ônibus, e nos acostumamos com isso, porque literalmente todos os outros meninos ao nosso redor passam pela mesma coisa a logo entendemos que não depende de algo sério para acontecer, mas então sentir que eu simplesmente não funciono mais, que eu nem sequer respondo aos estímulos de sempre também, é como me dar conta de uma imperfeição fundamental. 

E então, graças a isso, esses dias são um misto de euforia com uma sensação de desgosto profunda. Por um lado eu fico com a disposição de construir uma casa, assim como mudei meu escritório ontem, ao mesmo tempo que não consigo nem levantar o pau... 

Por favor nem me venham com o discurso que eu estou repetindo a ideia batida de que o homem deve ser o amante viril e incessante, veja bem, não se trata disso, se trata pura e simplesmente de sentir o corpo disposto a correr uma maratona ao mesmo tempo que há uma vacuidade total em tudo mais. 

Enquanto isso eu sou humilhado falando demais o tempo todo, completamente irresponsável gastando mais do que ganho e até me comprometendo fisicamente também. Dias assim são um perigo, e eu tenho medo dessa euforia, desse fogo!

Fui esmagado então por essa torrente de pensamentos, e sempre que me vejo nessa fase eu torno a falar disso, e também esmagado pela impossibilidade, ou pela brutal limitação, de expressar o que se passa comigo nesses dias justamente porque o fluxo de ideias, de sentimentos, é tudo tão grande e tão rápido que eu não conseguiria demonstrar nem em dez sinfonias, se as soubesse escrever. 

Me deparei então com um gênio de assombrosa capacidade: comecei a ler o segundo volume da Tragédia Burguesa de Octávio de Faria e me vi engolido pelas profundas páginas da descrição dos dilemas do personagem principal... Ver a sensibilidade daquelas palavras, aliadas a força do drama daquele jovem, me encantou de tal maneira que me vi, num primeiro momento consciente da minha ainda tão limitada capacidade descritiva, ao mesmo tempo que me inspirou a me aprofundar mais e mais, a vasculhar com calma cada cantinho esquecido ou ignorado no meio da loucura da rotina, e ir descobrindo causas e cenas novas e até então desconhecidas, vagando na imensidão do meu universo interior que, no entanto, é um mistério para mim mesmo. 

Queria entender melhor a mim mesmo, não ser um problema para mim. Por um lado entendo que isso é algo que só se adquire com certa experiência e com a busca sincera de uma alma em constante confissão, dos limites, dos erros, dos acertos, dos sonhos e anseios mais profundos. Por muitas vezes olho para mim mesmo e continuo me perguntando: quem eu sou? O que eu quero? Eu quero alguma coisa? Eu espero alguma coisa? E esse ceticismo que contrasta com sonhos tão altos e brilhantes? E essa sensação de eterna solidão, sem ter a quem recorrer nas noites de lascívia e luxuriosas emergências?

Experimento em dias, e noites, assim, a mais absoluta solidão. O vento frio que fazia barulho na janela era minha única companhia e, até mesmo agora, tudo parece concorrer ao meu desequilíbrio, e eu sei bem que isso é um exagero, afinal eu não sou tão importante assim, mas de todo modo ainda resta esta experiência, algo como o gnosticismo inerente aos nossos tempos, aquela solidão infinita de que falava Pascal e tantos outros... Não havia mais ninguém naquela noite escura. 

"Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" (Sl 21)

terça-feira, 25 de julho de 2023

Uma resposta talvez vaga demais

Acho que pela primeira vez, cara leitora e comentarista Anônima, vou escrever exclusivamente para responder alguém aqui. Geralmente meus textos são impressões diretas ou respostas um pouco mais elaboradas que dou aos meus amigos (sim, eles aguentam eu mandando textos enormes no WhatsApp porque acredito firmemente que a facilidade do meio de comunicação não deve ser igual a superficialidade da mensagem mas exatamente permitir longas e tediosas reflexões como essa que eu faço nesse exato momento). 

Em vários dias eu uso a definição do vago, e percebo que ela não tem, para mim e aparentemente nem para você, o sentido negativo que, normalmente, dão. Dias vagos são assim, até comuns para mim, em que percebo também vida em detalhes que passam despercebidos. Vejo que muitos temem o vazio e fogem dele a todo custo, eu gosto de ficar sozinho muito embora odeie me sentir vazio e, por favor, não diga que isso é mais um lugar comum porque muito embora seja uma expressão comum a experiência que me faz repeti-la é profundamente pessoal. Se você visitou o instituto em algum sábado provavelmente ouviu vindo da minha sala alguma música alta que certamente não combina com a paisagem de carneirinhos dali, mas combina com meu estado de espírito. Ademais, se tocava alguma coisa como música coreana ou chinesa não era porque eu temia o vazio, não, mas porque justamente tentava abafar o horror que havia em mim, em momentos assim eu desejo com força voltar ao olhar vago. Obrigado por compartilhar sua visão comigo.

Também gosto de como as coisas parecem mais vivas. Me incomodava profundamente a aura certinha daquele lugar enquanto uma certa pessoa, muitíssimo grosseira, administrava ali com mãos de ferro. Agora, com o "poder" dividido entre nós, reclamo para mim certo desleixo da equipe em tornar aquele lugar tanto mais vivo conforme se adapta a nós, e não o contrário, quando nós é que tínhamos que nos adaptar a uma concepção arbitrária de ordem. Talvez tenha em mim um lado mais anarquista do que costumam ver, ou talvez seja minha revolta em saber que Rivotril está no fim e que por essas bandas a fiscalização é imensamente pesada para eu conseguir mais e isso tem me deprimido bastante e me deixado igualmente furioso, ao sentir a nada gentil mão invisível do Estado enfiada no meu... 

Enfim, digressões anárquicas à parte, não acho que o JM dará as caras por aqui tão cedo, por razões de saúde, já que ao que nos consta o olhar vago de que falamos tem sido tudo que ele dá aos outros e, possivelmente, a si mesmo, já há algum tempo, assim como outras questões mais complexas que eu só poderia dizer depois de uma boa garrafa de vinho ou durante um depoimento judicial. Pena, queria falar um pouco mais com esse velho com mania de pintar coisas completamente deslocadas da realidade e que sim, também causa em mim estranheza e me encanta justamente pela dicotomia de parecer deslocado e perfeitamente confortável sendo assim. 

Eu, por outro lado, continuo desconfortável na maior parte das vezes, cansado demais para me arrumar pro Festival de Dança amanhã, sem ter feito a barba ou as unhas e provavelmente descartando a possibilidade de encontrar um dançarino introvertido ou um empresário milionário que viveria comigo um conto de amor de alta temporada turística. O cansaço me chama de volta para a realidade mas, entre a artificialidade e a brutalidade eu acho que prefiro ir dormir mais e continuar essa história nos meus sonhos. 

PS.: O gajo em questão dos últimos comentários ficou ofendido com a possibilidade de você imaginá-lo como um socialista penoso. A única coisa que o faz penar realmente são as equações químicas e o futuro concurso para perito criminal. Como professor dele eu não permiti que fosse socialista mas queria que penasse de amores por mim também. Pena. 

Olhar vagante

Estou com o olhar vagante, sem me deter em nada e respondendo automaticamente, nem meu sorriso tem sido muito natural mas, o que posso dizer? Hoje estou em outro mundo. Mas não pense que isso é mais uma reclamação, das muitas que faço aqui, apenas um registro pontual de um dia em que caminho na contramão de todos.

A chuva continua caindo lá fora, e precisei andar lá algumas vezes. Do mesmo jeito que ela cai sem se importar com nada eu também me abstenho de me preocupar... Nesse exato momento eu apenas estou no mesmo ambiente que outras pessoas mas sem prestar atenção ao que elas conversam animadamente sobre sei lá o que. Eu nem mesmo disfarço minha expressão, que não é tédio e nem nervosismo, mas apenas uma indiferença quase indolente e idiota. 

Até mesmo a música de hoje é ainda mais lenta que a de costume, e isso incomodou alguns, mas é que esse é meu ritmo sabe? Enquanto todos andam rapidamente pra fugir do frio lá fora, não que aqui dentro esteja muito diferente, eu apenas observo, calmamente, sem chegar a conclusão nenhuma. Apenas me deixo levar por algum melisma gregoriano ou por alguma melodia ao piano, harmoniosamente combinada com o barulho dos carros passando nas poças de água lá fora. 

De repente decidiram que eu sou um saco de pancadas, despejam suas frustrações em mim como se eu não tivesse mais nada para me preocupar, e tudo bem, deixe que falem, a música que está tocando é bem mais bonita e o rapaz que acabou de sorrir pra mim muito mais interessante. 

Depois de um longo atendimento o meu corpo é claro que pede por descanso... Aliás eu nem sei como consegui me concentrar num atendimento tão diferente e ainda lidar com as pessoas nervosas e querendo destruir umas as outras. Bom, eu tinha que fazer meu trabalho, só isso.

Me sinto cansado e um pouco chateado, mas tudo bem, eu não tô sentindo nada disso realmente, no momento só consigo pensar que preciso dormir um pouco.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Falsos deuses

Sei que já me debrucei sobre essas lamentações várias e longas vezes mas, tal qual Jeremias chorando a Jerusalém desterrada, meu coração também canta de novo e novo, com as faces banhadas em lágrimas o destino, mas não de um povo, apenas do meu eu solitário que, nesse momento, observa uma cidade trabalhar heroicamente debaixo de uma fina, mas insistente, camada de chuva. 

A cantora Rie Fu tem um verso que, diariamente, ecoa na minha mente, principalmente ao olhar os números que parecem guiar as nossas vidas por meio dos algoritmos das redes sociais. Ela canta que "maybe they just don't give a damn..." e não dão mesmo! Nós vamos rolando os feeds, concordando ou discordando fatalmente de coisas que os outros disseram sem estudar mas que nós também não estudamos, nós vemos pessoas lindas em situações inspiradoras, compartilhando suas viagens, passeios, almoços de negócios ou simplesmente uma rotina perfeitamente equilibrada ou maquiagens e cuidados perfeitos. 

Criamos essa doce ilusão de que a vida ostenta todas essas coisas belas e então passamos a desejar tudo isso quando, na realidade, o que conseguimos disso é bem pouco. Engraçado como a dita "beleza natural" está em alta mas por trás das telas e do algoritmo as pessoas gastam centenas de reais em produtos e procedimentos, eu inclusive, no desejo de ter a mesma beleza natural das pessoas que gastam milhares de reais com o mesmo objetivo. Outro dia percebi o absurdo de que tenho mais de 12 produtos pro rosto e que, alguns dias, chego tão cansado que nem tenho condições de usar um sequer. Poderia até colocar aqui uma espécie de ode ao ódio capitalista mas já tem bastante gente fazendo isso e, embora tenham sua parcela de razão, eu acho essa gente muito chata!

E, no entanto, quando me olho no espelho não posso deixar de me comparar com algum belo modelo ou ator, de pele perfeita, cabelo modelado, lábios rosados, sem nem levar em consideração que não faço a barba e nem as sobrancelhas há três semanas e que por trás daquela foto dele há pelo menos três outras pessoas responsáveis por deixá-lo daquele jeito. O fato de que mesmo se eu me arrumar bem, porque alguns dias eu me sinto realmente bonitinho (que é um feio arrumadinho), parece não vir à tona nesse momento. Com efeito a exposição contínua a esse conteúdo não só nos infecta como nos emburrece mesmo. 

Argh! Estou farto de semideuses
Argh! Onde é que há gente? Onde é que há gente no mundo?

Penso então: vale a pena levantar da cama e me arrumar inteiro para postar uma foto, que quase ninguém vai ver e, se chegar a ver, só vai imaginar um mundo irreal onde eu me arrumo pra tirar uma foto quando, na realidade, só quero ficar na cama ou, no máximo, levantar e tomar um capuccino enquanto escuto música baixinho vendo a chuva cair lá fora no meu dia de folga? 

sábado, 22 de julho de 2023

Suas músicas

Que manhã agradável! Desde o despertar olhando o mangue verde pela janela, as mensagens de votos de bom dia de dois amigos queridos até o percurso tranquilo ao trabalho. Sentei bem confortável no escritório, ao lado de uma fumegante caneca de café, ao lado de uns tantos belos quadros com as paisagens distantes e poéticas de St. Paul de Vence nas pinceladas de Juarez Machado, a música baixinha no player indo desde  voz poderosa e romântica do Jeff Satur até uma bela coletânea de obras orquestrais de Shiro Sagisu dando um tom tranquilo, sem a minha melancolia habitual, a essa bela manhã em que a chuva fina me toca o ombro com carinho e que o silêncio lá fora impera sobre o descanso de uma cidade em que o trabalho é quem dita as estações mas que agora dorme confortavelmente ao acalentar dessa mesma névoa matutina.. É realmente uma manhã agradável. 

X

Decidi ouvir as suas músicas de modo mais ordenado. Elas foram se acumulando nas nossas conversas e admito que, em humores diversos durante os dias, é difícil parar e conseguir entender o que elas querem dizer ou, mais difícil ainda, entender o que elas podem significar para você. 

Foi algo próximo de quarenta faixas, desde excertos de obras operísticas, canções de países diversos, produções indie, solos em piano e clássicos da era de ouro do rádio americano (onde você achou isso menino?). Enfim, um conjunto heterogêneo e que, por isso mesmo, revela uma riqueza de cores em sentimentos profundos, cantados num lamento ou numa esperança cadente, sob a luz da lua ou dos holofotes de antigos programas de auditório. Mas uma linha permeia as diversas faixas: uma certa melancolia comum a todas, comum a todos nós mas expressa como a força de um mar revolto que a tudo engole. Trata-se de emoções poderosas, e me envergonho pela aparente superficialidade das minhas músicas, mas pude sentir na realidade uma poderosa gama de sentimentos, de amores, de saudades, de belas paisagens, todas carregadas dessa nostalgia ou desse desejo profundo, talvez uma mescla de ambos...

Queria poder dizer que agora entendo você mais um pouco, bom, posso dizer agora vi mais de você, e vi de verdade, em silêncio, sem os meus próprios pensamentos competirem com as notas e arpejos, e gostei muito do que vi, pois que vi algo de beleza impressionante, como já sabia e que essa experiência apenas veio a confirmar uma vez mais. Mas não o entendi, ainda permanece um mistério para mim, talvez porque tenha, ainda que inconscientemente e só percebi isso agora, buscado a mim mesmo em alguma delas, encontrando muito do seu coração, do que sente, do que acha belo, do que lhe desperta carinho, empatia e afeição. Belas visões. Obrigado!

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Fonte de Piedade

"O inimigo persegue a minha alma, ele esmaga no chão minha vida e me faz habitante das trevas, como aqueles que há muito morreram. Já em mim o alento e extingue, o coração se comprime em meu peito." (Sl 142)

Eu repensei bem o que tinha te dito, realmente. Talvez você tenha pensando que poderia se tratar de uma Noite Escura, mas não é nada como isso. A Noite Escura é uma grande graça concedida aqueles que, em estado de graça, querendo se aproximar mais de Deus são, por Ele mesmo, privados de sua presença com o objetivo de purificarem o sentidos e o espírito e, assim, fazer com que a alma deseje cada vez mais o próprio Deus, e não apenas os efeitos de suas consolações. 

Em termos materiais, é o amigo que se afasta para que percebamos que o queremos por perto por sua presença e não porque ele pode pagar por restaurantes caros pra gente. Comparação boba mas explicativa, ao menos de modo metonímico, tomando o todo por uma de suas partes. Assim também acho que é o momento que tenho vivido, essa aridez espiritual que culmina em desesperança e que, não pense que é algo novo, não é, no entanto, fruto da ação divina que me priva para que eu a deseje mais profundamente. Antes disso é efeito do meu próprio pecado. O que experimento é a miséria humana de nossos primeiros pais expulsos do Jardim. 

A solução, parece clara: tornai a casa do Pai. Mas é difícil fazer isso, e foi o que tentei dizer a você, quando algo em mim é uma imperfeição fundamental. Quando o meu amor, e aqui me vejo confuso porque penso que se amor é algo divino como pode meu amor me afastar do Castelo? É é por isso que me vejo aqui com você, ao umbral das Divinas Moradas, mas aquele que tem as chaves desse grande portão não pode me deixar seguir porque o meu amor, o mesmo amor que me faz segurar sua mão, me mantém aqui sem poder avançar.

E por isso eu disse que não apareço em nenhum daqueles quadros, porque eu no futuro próximo, quando você se encontrar diante de Deus, essa bela imagem se tornará realidade, mas eu não consigo ver como a contemplarei ao seu lado. 

Tento fazer o meu melhor, hoje de manhã me dediquei a acalmar algumas pessoas antes da Missa diante de alguns imprevistos, com gentileza eu expliquei algumas coisas e ajudei a preparar tudo da melhor forma possível. Isso não significa que eu desisti completamente e que por isso vou abandonar o nosso caminho mas, significa que eu tenho que aceitar a minha limitação, e que por mais que caminhe há um limite, um limite que meu amor, que quem eu sou, não me permite avançar.

Deveria tentar a vida solitária, de um eremita no meio dos homens? Francamente não consigo me ver sendo tão forte assim e por isso cairia em erros ainda piores que manchariam ainda mais a minha alma. Só o que posso fazer é me sentar ao pé da mesa do Banquete Nupcial do Cordeiro e esperar pelas migalhas, ao lados dos cães e, quem sabe, serei salvo pela Piedade, se Ela vir que, no meu coração, há sinceridade no servir, mas um espírito tíbio, fraco, que busca a luz mas não consegue seguir, apenas contemplar, um pouco distante... Eis a minha súplica, quem sabe Ele me permita beber algo que escorre do cálice que foi enchido pela Fonte da Piedade:

"Rex tremendae majestatis, qui salvandos salvas gratis, salva me, Fons pietatis."

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Diálogo sobre o Amor, a descida de Dante

 - O que você acha que aconteceu quando um casal de namorados, que são católicos fervorosos, terminam o namoro?

- Eu não tenho ideia, sinceramente. Eu não sei nem mesmo porque daria certo! Acho que apenas amor não é suficiente, eu mais do que ninguém sei que amor não é o suficiente.

- Eu penso que um namoro deve ser pra conhecermos o outro e sermos fonte de melhora para o outro. Amor eu penso mais já num casamento. Ambos precisam querer melhorar, primeiramente pra Deus, pois desse modo estariam também melhorando pro outro. Mas o que você pensa sobre isso? O que eu penso parece um pouco utópico. 

- É exatamente isso, ambos precisam querer melhorar, mas até que ponto os dois estão dispostos a isso? Por isso as coisas não dão certo. 

- Como assim?

-  Até que ponto ambos querem melhorar para Deus? Até que ponto os dois vão aceitar os filhos que Deus mandar? Até onde suportar as limitações do outro? E as dificuldades como traição e outros vícios? Caminhar junto não quer dizer que os dois não vão ter vícios, um pode superar a infidelidade em meses e o outro pode demorar anos. Um pode se irritar facilmente e o outro pode ser impulsivo, até onde o primeiro vai conseguir ser paciente e o segundo conseguir se refrear? Ou até que ponto eles vão se ajudar? Claro que é bonito e muito virtuoso ser paciente e suportar por amor e com amor, mas na prática é diferente, não encontramos virtude em todos do mesmo modo.

Acho que o que você entende por amor, como eu entendo, inclui esse esforço em compreender, suportar e lutar com o outro. Fazendo eco aquilo que São Paulo disse, que "o amor tudo suporta." Na prática as coisas são bem complicadas e, sendo essa afirmação do Apóstolo dos Gentios uma afirmativa geral, é na particularidade das situações, e nas suas dificuldades, que ela se aplica. 

Claro que duas pessoas com visões parecidas e objetivos parecidos vão conseguir se entender melhor, isto é, se duas pessoas ao se conhecerem já querem filhos numerosos, uma família próspera, é mais fácil que ambos mantenham esse pensamento quando surgirem as dificuldades dos primeiros filhos. Isso porque existe uma diferença, visivelmente sutil, nas formas de demonstração do amor. 

Quando um homem pensa numa mulher apenas para a formação da família ele já está usando-a, ela se torna um meio, ele não está se aproximando verdadeiro a ela, mas sim ao seu ideal criado e alimentado. A família é, nesse sentido, continuação natural do amor genuíno que nasce de ambos. Até que ponto consegue perceber isso? 

A demonstração do amor é também outro fator. Você sabe que eu considero o afeto de modo físico uma das demonstrações mais genuínas, mas no nosso caso nós dois expressamos amor de formas diferentes. Não poderíamos namorar, não poderíamos nos beijar, tudo isso também se aplica aos outros casais e, na convivência do dia a dia essas coisas vão se tornando verdadeiras provas. 

É belo ver o amor como algo que tudo suporta, realmente belo, mas na realidade quantos estão dispostos a realmente suportar tudo? Você perdoaria a traição? Perdoaria a violência? Perdoaria os vícios do outro? Até mesmo ao pensar nisso é fácil dizer que sim, que tudo suportaria por amor, mas no dia a dia, naquela crise depressiva, quando não acordamos bem ou na crise financeira, nas dores da doença dos filhos, na aparência do outro... O amor precisa ser constantemente redescoberto e alimentado.

Por isso que, e aqui eu encerro a parte cristã da coisa e inicio uma visão mais pessimista, ou realista, que eu tenho: o amor me parece tão complicado que eu já não consigo crer que ele exista. É um conjunto tão intrincado de valores, exige tanta força, tanta compreensão que me parece ser uma invenção quase absurda. Bela, é verdade, mas a experiência me fez perder a esperança nele, como comecei dizendo: eu acho que o amor não é suficiente, ou melhor dizendo, não somos suficientes para amar. Sempre faltará algo, sempre algo estará em desencaixe e, por mais que o amor esteja presente na superação desses problemas, a dor que ele causa é maior do que tudo o mais. Mas é claro que essas são palavras amarguradas e que não devem ser levadas em conta. 

quarta-feira, 19 de julho de 2023

O mínimo

Um aforismo do professor me veio a mente tão logo me deparei com uma situação simples, mas tão simbólica quanto as atitudes que ela significava: "Platão, no Eutífron, falava daqueles que estão do lado do bem só por tradição e hábito, sem revigorar suas crenças pela busca ativa da verdade, e se tornam assim colaboradores inconscientes do mal. Buscam fazer o bem tal como o entendem, mas não têm valores para passar às novas gerações." (Olavo de Carvalho)

Algo disso fez todo sentido ao confrontar uma pessoa que, embora cobre de todos um posicionamento sério e responsável que, na realidade apenas reflete a sua candura mimada em querer controlar a todos, sendo então incapaz do mínimo mesmo de responsabilidade como ater-se ao seu horário ou lavar e guardar a própria louça. E então, abjetamente ligada a essa atitude, cobra do universo, dos astros, do Estado e dos colegas de trabalho que tudo quanto há de errado no mundo depende da malícia de todos, enquanto ela, pobre vítima inerme na ira divina da sociedade, sofre e padece porque porque a humanidade não presta a ela continência perguntando como deveria ser o mundo ideal.

Fechada então num patético país das maravilhas mas sem o bom senso adquirido por Alice no fim da história ela se revolta com tudo, com as roupas amassadas, com o sabor da comida cara, com os transeuntes ou com o deserto da rua... Tudo está errado mas ela é incapaz de perceber a sua conduta e como ela se encaixa no todo que ela mesmo tanto prega estar conectado. 

Se todas as coisas, do micro ao cosmos, estão unidas no Ser, não é de se estranhar então que as pequenas atitudes se somem umas as outras resultando nas grandes transformações. Isso seria o óbvio, mas o óbvio não é mais evidente para essas pessoas que se imbecilizaram de tal modo que já não são capazes de fugir do mundo de belezas fugazes que elas criaram e que, no entanto, é tão artificial que essa beleza já não conduz mais ao Bem e a Verdade, senão que é apenas uma fuga de seus medos e desejos infantis que se esqueceram de crescer. 

Chesterton disse que o mundo estava cheio de virtudes cristãs enlouquecidas, e coberto de razão, mas não só enlouquecidas como também virtudes que se esqueceram de crescer. Se gabam de buscar momentos de prazer por meio de uma beleza que os cative mas, na realidade se afundam cada vez mais na Apeirokalia, dessa privação das coisas belas capazes de despertar para o Bem e a Verdade... O resultado é vastamente visto por aí: jovens de toda parte preocupados com grandes questões ambientais, com a corrupção na política internacional, nos problemas sociais de séculos, no racismo estrutural, mas incapazes do mínimo respeito humano pelo próximo, como sua mãe ou os colegas de colégio ou trabalho enquanto se esbaldam em expressões pedantes da impotência de conhecer.

Como conversar com uma pessoa nesse nível de consciência sem deixar claro o quão abjeta ela é?

terça-feira, 18 de julho de 2023

Pureza e intimidade

Nessa manhã fresca, antes da época mais fria do inverno realmente começar, duas impressões se materializaram no meu peito. A primeira delas germinou ontem à noite, durante a Missa da memória de Santa Maria Goretti e seu martírio pela pureza. A segunda, que de algum modo eu vou tentar relacionar, é a de cada novo episódio de Tokyo In April is... que tem me encantado grandemente com cada nova demonstração de carinho e respeito. 

A princípio, e essa reflexão é destinada a ti, meu estimado afilhado, conquanto eu também vá publicá-la depois, eu tive a ideia de meditar sobre a importância que damos a nossa pureza e que, a exemplo de Santa Maria Goretti que é contada entre os grandes heróis da pureza, faz um grande contraste, de comparação até surreal, com a forma como normalmente tratamos a pureza. 

Particularmente eu pareço ser displicente com esse assunto mas, na realidade, só não quero abusar de uma moral excessivamente Kantiana e puritana que me causa agonia e que, como já o disse tantas vezes, mais aprisiona e machuca do que qualquer outra coisa. Em verdade eu apenas trato o assunto de modo leve porque sei o quanto a abordagem comum pode ser brutalmente injusta com todos e que acabamos caindo sempre na tentação de nos tornamos uma nova mulher de César... A verdadeira pureza é, antes de tudo, alegria para o cristão, e não esse peso horrendo como a pintam. Disso me valho então do exemplo da própria Santa Maria Goretti que preferiu ver perder-se a vida corporal, do que entregar sua pureza, chegando ao extremo do martírio, e tantos outros que fizeram da pureza a tela com que Deus pintou tão belas imagens, como a vida dos grandes São Domingos e Santo Tomás. Ambos viviam a pureza de modo tão pleno que todos aqueles que conviviam com eles era arrastados para ela dada a luminosidade de suas vidas. 

São Domingos, dizem seus biógrafos, era de tão grande pureza que todos relatam certo brilho que sua presença causava aos homens, coisa que ele conseguia com grandes penitências e com a busca de uma vida justa e dedicada a Deus e a pregação: São Domingos se exauria pelos irmãos e assim, sua pureza era então conservada e ele se dedicava mais perfeitamente aos outros sendo por ela continuamente alimentada sua vida. Mas note a diferença do que digo e do que dizem os puritanos: ele fazia disso sua alegria, sua motivação, e ela o ajudava a servir mais e melhor, não era um peso que se lhe mantinha constantemente em desespero. Com efeito a busca da pureza é para nós causa de desespero e não reflexo da pureza de Deus, sendo por isso mais uma busca movida pela vaidade do que pela verdadeira virtude moral da prudência.

Claro que exemplos extremos nos soam estranhos e até mesmo distantes, infelizmente a vida cristã foi hoje deturpada de tal modo, pelo mesmo puritanismo e moral kantianas que já citei, que eles chegam a nós como coisas são longínquas que se tornam lendas, histórias irreais. Por isso me valho agora de um exemplo talvez um tanto mais palatável. 

Em Tokyo In April is... vemos dois jovens que pouco a pouco aprendem a se abrir a pureza do seu amor. De que modo? Os traumas de ambos são para eles motivo de esconderem-se atrás de suas personalidades construídas especialmente para afastar os outros. Um deles sofre em silêncio enquanto sorri despretensiosamente e o outro apenas vive de modo estoico, apático, sem muitas demonstrações. 

Quando estão juntos acabam demonstrando então o que eles realmente sentem: o primeiro não esconde seus medos e seus traumas, senão que pede ao outro que respeite seu espaço, seu silêncio e sua intimidade, e o outro então demonstra o seu amor nessas cenas de carinho, numa delicadeza impar que deixa transparecer exatamente a pureza do seu sentimento. 

Essa pureza se dá no silêncio compreensivo, no olhar que apoia, no abraço gentil... Na intimidade eles, pouco a pouco, descobrem seu refúgio na pureza: a pureza é exatamente a não contaminação com as sujeiras que o medo dos outros lhes impõe, a destruição causada pela malícia, pela violência, pelo horror dos outros... Juntos eles sorriem, brincam, ficam em silêncio, se apoiam no ombro um do outro, tomam sorvete e cozinham. Eles se abrem assim a essa simplicidade, a essa pureza que não cabe mais em máscaras e construções. 

O que pretendo com isso? Difícil até mesmo para eu responder, senão que deixo a impressão dessas duas realidades que, no meu íntimo, se tornaram uma só. A busca de uma pureza tão cara que por ela daríamos a vida e que, de mesmo modo, se demonstra e se encontra na simplicidade, na tranquila busca pela libertação desses pesos que nos aprisionam e que, na verdade, acaba por nos libertar até dos medos e dos traumas. 

Coleção

Já adianto que esse será um texto regado a luxúria e vinho e que eu não me responsabilizo caso você tenha vindo parar aqui esperando alguma coisa de qualidade. Sinto muito.

Me impressiono, desde o dia em que cheguei aqui, com a quantidade de homem bonito dessa cidade. É deslumbrante, e são de todas as formas. Loiros, brancos, altos, baixinhos, negros, morenos, asiáticos... Todos lindos. Basta ir até a esquina que seja para encontrar uma profusão de machos de todos os tipos, daqueles que exalam testosterona ou ainda com cheiro de leite, ou ainda com cara de quem está cumprindo condicional ou de que vão a igreja ao sábado a noite depois de terem ido pra suruba com o filho do pastor na sexta. Uma verdadeira delícia de espeto misto masculino.

Claro que em dias assim eu não posso deixar de imaginar como seria se eu, por alguma bênção de Príapo, fosse capaz de foder com todos eles. Seja o rapaz com carinha de bom moço que anda de mãos dadas com a namorada loira genérica na feira ou o tatuado com jeito de poucos amigos e provavelmente muita potência... O novinho querendo experimentar a vida ou a gay que se mudou pra cá e precisa se aliviar de qualquer jeito. Todos eles, ao mesmo tempo, numa mansão com muito álcool, muito tesão e nenhuma peça de roupa. 

Hm. Patética minha tentativa de escrever algo lascivo. Reconheço.

Muito embora nada disso seja mentira é, na realidade, um exagero. Apenas numérico, que fique claro. Porque o que eu desejo de fato, muito embora também seja regado à muito suor, é apenas companhia. E isso me veio com uma força tremenda quando, antes de terminar o último parágrafo eu me deitei pra sentir o efeito da meia garrafa de vinho que tomei e, além disso, senti também o vento frio de um tempo que acabou de mudar e só conseguia pensar em como queria abraçar alguém, bem forte, seja uma das minhas paixões ou um dos rapazes que vi hoje no Festival do Museu da Imigração, só queria poder abraçar alguém, me achegar no seu pescoço e, sorrindo, sentir o seu coração bater, enquanto sentia aquele sol quente... Na realidade eu queria alguém que pudesse aquecer meu coração. Apenas isso. 

Bom, o vinho acabou e estou com preguiça de sair para comprar mais. Só posso voltar pra cama, virar pro outro lado, me enrolar mais na coberta e torcer pra dormir. No fim só o que resta é a solidão.

X

O dia amanheceu lindíssimo, meio nublado, com uma chuva leve caindo em alguns momentos silenciosamente. Acho que o inverno finalmente está chegando e uma amiga mandou um vídeo de homens usando versões bem minimalistas da armadura da Mulher Maravilha em corpos absurdamente esculturais feitos por alguma Inteligência Artificial, como se todos eles fossem guerreiros preparados para uma batalha, mas demônios não é exatamente o que eles devem enfrentar... Só queria um guerreiro pra ficar assim de conchinha comigo até mais, até ter coragem de levantar e, quem sabe, viver um pouco. Não lutaria com nenhum deles, senão que seus corpos largos me abraçariam como um escudo, me afastando da solitária manhã de uma segunda com folga... E nem digo o que faria com as espadas.

(...) E novamente a angústia. Começou prudentemente, como uma caricia, depois instalou-se, modesta e familiar, no vazio do estômago. Não era nada: simplesmente o vazio. Vazio dentro de si e à sua volta. (Jean-Paul Sartre)

sábado, 15 de julho de 2023

Aceno

É com um sorriso sarcástico que eu percebo o quanto ainda tenho dificuldade em lidar com a frustração, mesmo sendo tudo que eu tenho o tempo todo. Sabe a sensação de ser um completo inútil em tudo? Era uma coisa simples que eu tinha de fazer, mas ficou tão incrivelmente ruim que a minha vontade era desistir ali mesmo, e eu desisti, simplesmente arrumei tudo como se nada tivesse acontecido, estendendo a colcha na cama, recolocando as peças de roupa e cobrindo ali junto a minha vergonha, a constatação de ser um completo imprestável. Sabe todo o discurso de aceitar as imperfeições, de ver a beleza nas coisas incompletas? É muito bonito mas, quando nas lentes vemos refletida a nossa imperfeição ao máximo as coisas não vão tão bem assim. Na realidade os defeitos saltam tanto aos olhos que tudo o mais se ofusca como se estivéssemos vendo no reflexo borrado de uma peça de ferro, talvez a lâmina de uma espada ou um punhal que, ao vermos, tomamos em nossas mãos, apertando-o com nossos calos e o enfiando com força rasgando a carne com sua frialdade. É isso, a decepção pode destruir uma vontade que sorria enquanto caminhava em direção ao campo de batalha que seria semeado com o sangue jorrado da carne dilacerada pela pantera invencível da destruição. E o universo permanece em seu movimento perpétuo, tudo em perfeita harmonia, o pobre coração do homem em sua entropia, cada vez mais se desfazendo ao contemplar a imensidão da sua própria miséria. Meu único desejo, mais sincero até que aquele de conseguir imitar os modelos sensuais cujas fotos alimentam as fantasias de homens sonhadores como eu, seria poder me destruir, num único aceno, como aquele velho guerreiro que, ao ver seu exército perecer ante um rei falido já outrora derrotado, fez ao destruir seus inimigos ao invadirem seu domínio após mil anos. 

sexta-feira, 14 de julho de 2023

A molhar o solo

É como se começasse a chover por conta do calor intenso que emanava do meu corpo. Eu realmente tive me esforçar muito para fazer acender uma chama que, em alguns dias, parece ter sido extinguida. Mas, de algum modo, por entre as pedras frias da praia castigada por ares violentos, encontrei uma pequena fagulha, uma centelha mínima que, de repente, conseguiu se transformar num grande incêndio. 

Aquela posição não me seria vergonhosa, me surpreende que nunca tenha tentado sozinho, afinal a minha solidão é mais do que uma condição imposta de fora por um universo indiferente e homens mais indiferentes ainda, é agora um mundo ao qual eu pertenço e ao qual não pretendo sair, então é normal que me acostume com essa versão que, até então, só outros tinham nos dias em que dava vazão ao meus instintos mais primitivos. 

Olhando pela janela eu via uma noite fria lá fora, em alguns momentos o vento fazia dobrar as folhas do mangue mas, ao meu redor, o ar estava inebriando do meu suor, dos meus gemidos baixinhos e do cheiro luxurioso que meu corpo desprendia enquanto ajoelhado ou de quatro, com as pernas abertas como que pronto para receber alguém dentro de mim. Tinha certeza que, naquela hora, dentro de mim havia como que um Vesúvio e que minhas entranhas tinham se transformado em lava prestes a consumir e tornar em cinzas qualquer um que ali entrasse. Eu tremia e apertava meus próprios lábios que pareciam responder com sangue aquele carmesim que crescia cada vez mais e, começando a brilhar, pulsava e não cabia mais em si mesmo. 

O resultado foi o tecido vermelho, não propositalmente escolhido na emergência daquela avulsão nívea, manchado como se tivesse sido ele a testemunha da fecundidade daquela chuva que, lá fora, molhava o solo pela enésima vez.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Sua falta

Eu senti sua falta... Senti tanto a sua falta... Ren... Sempre... Todo esse tempo...

Palavras ditas com a voz pesada, da bebida e daqueles dez anos de sentimentos que se condensaram e que agora finalmente ganhavam espaço em cada pedaço de pele exposta naquele abraço. Ele abraçou o outro, sentando-se em seu colo, apertando-o com tudo, como se quisesse cobrir, tocar cada centímetro do outro e compensar todo o tempo que perderam separados, sem nem entender o que aconteceu depois daquela primeira noite. 

Era ele, realmente era ele, depois de todos esses anos! Depois de ele quase tê-lo esquecido, depois de ele achar que jamais tornaria a sentir aquele sentimento pulsar. Era ele! Não foi possível conter as lágrimas quentes que caíram pelas costas do outro que, ao toque delas, acordou de seu sono embriagado, entendendo lentamente o que estava acontecendo.

Então era isso, depois de tantos anos ele retornara. E finalmente estava ali, envolvendo-o num abraço? Ele estava chorando? Deve ter pensado, ainda anuviado do sono e de toda cerveja "Sou eu quem deveria chorar. Achei que nunca mais o veria e agora ele está aqui, na cama comigo, me abraçando?"

E então ele erguei lentamente os braços, correspondendo ao abraço, apertando o outro levemente, sentindo os anos que se passaram ao constatar a largura daquelas costas, mas com tal ternura que eles ficaram assim por muito tempo, até quase o dia amanhecer. 


Imagens da série Tokyo in April is...

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Expressão

Será que minha expressão mudou muito quando o vi entrando no ônibus? É bem provável que sim. Embora eu saiba que não tenha ficado vermelho eu sei que o segui com o olhar e, quando percebi, desviei imediatamente. Ele andou um pouco e se colocou próximo a mim, sorrindo e me cumprimentando, percebi, com a voz um pouco alterada. Talvez ele estivesse falando alto no colégio? Ele se distraiu com duas conhecidas durante a breve viagem de uns cinco minutos e então descemos juntos, já que moramos na mesma rua. 

Eu planejava comentar algo sobre o dia cansativo mas ele se adiantou e, num longo suspiro, disse se sentir aliviado por finalmente estar em casa. Essa é a primeira que ele falou comigo sozinho, e ele sorria levemente, parecia confortável. Andamos alguns metros, sob a luz tímida das estrelas que desapareceram por conta das luzes da cidade mas que ainda brilhavam fraquinho, uma brisa fresquinha em nosso rosto, enquanto ele brincava com um boné grande demais. Será que ele ganhou do menino que gosta? E assim a gente se despediu, ele naqueles passos de fada, elegante sem nem o notar e eu, pesado continuando meu caminho. Será que talvez ele tenha notado que a presença dele ali me encheu tanto de carinho que até a imagem da mãe dele na cozinha, esperando-o depois da aula, me deu um certo quebranto? 

terça-feira, 11 de julho de 2023

Grande coisa

Tentei várias vezes, e não gostei do resultado. Tornei a olhar tantos outros que conseguiram o resultado que eu queria, aquela aparência de intimidade revelada mas não destruída, aquela tranquilidade, aquele fechamento em si, calmo, tranquilo e sereno como aquelas pequenas ondas que se quebram, continuamente, sem se importar com nada mais e que, por isso mesmo, são tão belas. Mas eu não consegui, não consegui me sentir bem com o formato do meu corpo e nem com a minha tentativa de mostrar sensualidade, foi patético. Vamos apagar tudo, fingir que tudo não aconteceu e voltar a dormir. 

Brigariam comigo se eu dissesse que a beleza é difícil de alcançar, mas sinto muito, a beleza que eu queria ver parece bem difícil de encontrar. Busca infundada? Ideal infundado? Então por qual razão tantos alcançam? Todos eles conseguem ver algo que eu não vejo? Onde estou errando? É o ângulo, a luz, exposição, abertura da lente, o que devo melhorar? É o meu corpo, minha casa, minhas roupas? Talvez o erro mesmo seja que eu não consigo ver em mim e no que eu faço nada de belo como os outros conseguem fazer. 

Mas eu quero continuar em busca do que acho belo, seja uma sensualidade incompreendida ou uma melancolia cinza. E eu vi que as pessoas não gostarem nada disso, mas eu quero continuar. 

Okay, vamos deixar a coisa menos abstrata: eu gosto muito de seguir alguns perfis que compartilham fotos com uma estética específica. Geralmente são pessoas em roupas íntimas, ou em momentos de intimidade, em imagens distorcidas, borradas ou simplesmente com o foco em pontos estratégicos, que tornam a coisa artística e sensual ao mesmo tempo. Claro, homens bonitos aparecem sem camisa ou cobrindo as partes com uma toalha ou coisa nesse tipo, postam manchas no pescoço, roupas íntimas no chão ou mãos entrelaçadas no que, subentende-se ser um ato sexual. É esse tipo de estética que venho tentando reproduzir e que venho encontrando resistência: primeiramente pela dificuldade de repetir sozinho o que obviamente conta com uma certa produção e, depois, a resistência de conseguir ver em mim a beleza disso. Por fim tem ainda a resistência daqueles que não entendem isso. Pelo menos a esses últimos eu já tenho solução, não quero me importar com eles. Quero continuar buscando o que acho bonito, ainda que fique sozinho fazendo isso. 

E é engraçado como algumas reações são diversas. Ao passo que ninguém gostou, porque todos passaram direto, alguns outros comentaram e apoiaram, entendendo não só o que eu quis fazer mas também a dificuldade que foi pra mim em aceitar fazer. Por isso prevejo que essa é mais uma escolha que vai me deixar mais e mais sozinho, ao passo que, de algum modo, estarei sendo eu mesmo um pouco mais, não porque estava escondendo isso, mas porque agora eu tenho coragem de experimentar um pouco mais. Eu só quero poder encontrar o que me faz bem, o que me deixa bonito, entre o querer ser visto, ser notado e o querer continuar como um célebre desconhecido. Não é preciso que eu faça disso grande coisa. Eu não sou grande coisa.

Essa resolução não é nenhum novo paradigma estético, longe disso, estou bem pouco preocupado com isso, ao mesmo tempo que admito que há uma certa ansiedade em ser aceito como aqueles que compartilham esse conteúdo, que usam de imagens, ao mesmo tempo, sensuais e intimistas, como já disse. Talvez a proposta ainda não esteja clara nem mesmo pra mim, afinal eu achei essas minhas palavras até bem confusas. De todo modo elas refletem, assim como as imagens expressam, essa dualidade, do que se é e do que se pretende ser, do que se deseja, do que se acha belo, do que se converte no belo pela proximidade, pela própria criação, pela descoberta...

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Uma tarde na Ilha

Por onde posso começar a descrever essa tarde? Ironicamente a minha forma de expressão é a que historicamente comporta a maior possibilidade sugestiva e, ao mesmo tempo a que parece limitar mais o seu autor. Ainda assim as palavras são minha única forma de expressão das minhas profundas impressões. Enfim, diletantismo literário à parte, ainda me pergunto por onde posso começar a falar. 

Me senti tocado pelo cinza daquele mar. Muito provavelmente a maioria das pessoas dali diriam que era um dia feio, um dia cinza, mas não um cinza forte e ameaçador de chuva, mas também não era um dia claro, iluminado, que dava ao mar um brilho forte do seu azul, não... Era apenas um dia cinza. Mas como homem simples, de poucas ambições, para mim era um dia incrivelmente lindo! E não apenas pelo brilho opaco do sol tímido se refletindo no mar, mas por causa do sorriso, ou melhor ainda, dos sorrisos.

Seja pela sua calorosa acolhida, pelo balançar lento daquela ponte de um aço imponente ou pelos alunos sorridentes que gritavam enquanto acenavam daquele forte lá embaixo, por todas essas coisas esse dia ficou marcado com um cinza claro, tranquilo como aquele momento de silêncio em que paramos a observar o movimento incessante do mar que se repete há tantos milhões de anos e que, a depender da lua, continuará indefinidamente. E esse é o brilho imperceptível que me cativou!

E por isso talvez eu nunca consiga descrever com precisão a visão daquele homem na porta de um hotel onde, certamente, muitas mulheres tantas e tantas vezes deram vazão aos desejos luxuriosos dos homens que atracavam naquela ilha, assim como em todos os portos do mundo. Aquela olhar, profundo, ao qual eu desviei em meio segundo por timidez, continha a sabedoria dessa verdade, ignorada por tantos mas sabida por todos. 

Talvez tenha desviado o olhar também pro belo rapaz de calça apertada que fazia entrega de comida no prédio do Ministério Público, mas também olhei bem fundo para os dedos velozes daquela velha rendeira que cantou pra mim, e que eu concordei, que as rendeiras de Santa Catarina são as mais belas, e a tônica daquele estribilho me lembrou o hino da Folia de Reis da região de Arinos em Minas Gerais, um hino que provavelmente já se perdeu sem que nenhum historiador, inclusive eu, tenha registrado, assim como as histórias que eu e meus primos ouvíamos ao redor das saias da minha avó na infância. 

Mas eu comecei falando do brilho cinza e me perdi em Devaneios justamente por causa do brilho que me guiou: cinza, profundo e acolhedor. Mais quente do que qualquer cinza jamais foi, aliás, quem disse que o cinza é uma cor triste?

Quem disse isso estava completamente enganado, ou não conheceu o cinza brilhante (talvez devesse dizer prata? Certamente tão nobre e belo quanto) Que me acompanhou, e que a cada esquina, a cada janela convidativa, a casa puxadinho escondido no centro, brilhava mais e se abria num sorriso iluminado, quentinho, mais profundo que as suas covinhas discretas, por onde passamos?

Foi uma tarde envolta em magia, na magia alegre que percebe justamente a beleza das pequenas coisas que todos os outros, apressados e estressados, já não enxergam. Perdem boas conversas num bar depois do expediente que podem, muito bem e tranquilamente, devolver o brilho do cansaço que a rotina tomou. E foi por isso que, em determinado momento ali, eu percebi uma coisa: percebi que não quero ser mais um cujo brilho se foi, eu quero iluminar também como fui iluminado, com uma luz mais forte que a do meio dia, um a luz que toca gentilmente o coração, uma luz que recupera o cansaço, uma luz que ri e sorri enquanto todos passam correndo. Eu percebi que há tanto para ver, tanto para conhecer, tanto para me encantar, tanto para sonhar, tanto para viver, tanto para brilhar! E tudo por causa daquele lindo brilho cinza de um dia nublado na ilha...

domingo, 9 de julho de 2023

Eu vou dormir


Talvez eu só quisesse que você me pedisse pra ficar. Mesmo cansado eu ainda gosto da sua companhia, gosto de ver você empolgado com coisas antigas. Mas eu sabia que você não pediria isso, e sabia também que você estava muito mais interessado em tantas outras coisas, em outras pessoas. E então eu me recolhi ao meu silêncio, quieto, finalmente descansando depois de um longo dia enquanto você provavelmente ficava na companhia dela, ou ouvindo as músicas que traziam ela a sua memória. Acho que isso mais uma vez mostra de forma inegável o quão distante estamos, como outras coisas ocupam nosso coração, e como eu deveria seguir em frente, sozinho. Eu amo o longe e a miragem, você ama as mulheres e as antiguidades (e a rima foi sem querer). Embora as palavras tenham combinado, eu e você não combinamos, estamos contemplando telas muito diferentes, ou melhor, você olha para uma tela enquanto eu olho pra você. 

X

A abertura de espírito nos possibilita excelentes experiências! Ah, que ditosa escolha a de não esperar da vida senão dor e decepção! Sem isso eu não me surpreenderia tão positivamente como hoje: tão cansado de uma semana mega intensa, num atendimento para o qual eu não fiz outra coisa além de evitar que ele me viesse ao pensamento porque eu temia ser ainda mais cansativo do que o normal. Falar para um grupo de universitários numa manhã fria de sábado? Eles com toda certeza iriam preferir estar em outro lugar mas, ainda que fosse assim, foi uma visita extremamente gostosa de acompanhar. Me senti confortável ao responder perguntas genuinamente interessantes, me senti bem podendo compartilhar um pouco e ver olhos brilhantes me sondando mais e mais. Me senti tão bem que até esqueci o cansaço durante o atendimento, me senti tão bem que poderia ficar de pé conversando com essas pessoas por várias horas... 

Interessante como são as coisas não? Tinha sido alertado que uma das pessoas da visita era desagradável em suas opiniões, e eu não me lembrei disso então não construí um muro com relação a ela. Ao ouvir suas observações eu pude entender muito de seu ponto de vista e, independente de concordar ou não porque nem pensei nesse juízo, tivemos uma conversa bastante agradável. Infelizmente outros não fizeram o mesmo e buscaram simplesmente se fechar. Uma pena.

X

Admito que mandei a foto na intenção de que, se alguma parte de você pensar em mim, no momento em que estivesse com ela, se lembraria de mim e perceberia que o meu amor é verdadeiro e que é que penso em você o tempo todo. Foi uma ideia idiota, desesperada, de uma mente infantil e, provavelmente, corrompida por uma mentalidade de literatura juvenil. Uma lástima! Mas eu sei que isso não vai acontecer. Vocês vão no seu encontro, vão rir e sorrir, e provavelmente se aproximar ainda mais. E eu? Eu vou dormir.  

X

Fico muito triste em ver toda a angústia do seu coração. E o meu coração se compadece e também se aperta junto ao teu... Minha tristeza vem em saber que esse descontrole surgiu por causa de uma garota, por causa do seu sonho, por causa do seu desejo e da sua cegueira. Isso porque você só consegue pensar nela, e cada pequeno detalhe sobre ela te desconserta. E com isso não percebe que, quem está o seu lado esse tempo todo, quem tem segurado sua mão, quem tem ouvido as suas dúvidas e anseios mais profundos, sou eu. Você deseja alguém que possa construir uma vida contigo, mas não consegue o que nós já construímos. E isso sem esse peso, sem essa dor que sentiu, sem essa insegurança. Se você olhar para mim por um instante que seja, vai ver que a pessoa que você procura para andar ao seu lado, já anda com você, só é diferente do que o que vc imagina. Mas você não sonha com alguém que te acompanhe, com quem possa compartilhar momentos felizes e tristes, alguém que tente te entender, que sorria contigo que, enfim, esteja com você e pense em você desde o momento que acorda até o anoitecer? Então, por qual razão você ainda prefere permitir que sua vida se descontrole assim por ela, que acabou de chegar? 

sábado, 8 de julho de 2023

Um sonho secreto

Odiei ter perdido de vista essa imagem, essa bela imagem, que num átimo se coloriu na minha mente. Foi um instante tão fugidio, para outros seria imperceptível, mas se marcou na minha mente, e é uma grande pena que tenham me chamado no momento que me preparava para registrar esse belo quadro, querendo eu ser como um fotógrafo que, num flash, registra a cena inteira mas, sendo mais como um pintor que lentamente vai depositando camadas e camadas de cores sobre a tela, eu preciso de um certo tempo pra construir, tempo esse que foi justamente o que passou num piscar de olhos, fazendo a imagem se dissolver, restando apenas uma pálida memória...

Mas ainda algo dela permaneceu, e tenho certeza que não foi em minha mente, senão que na minh'alma ela se gravou, mas com delicadeza, apenas uma pequena impressão, uma pequena pétala ou pena de um anjo sobre um muro de argila. 

Me recordo do seu ombro nu, uma peça de roupa descendo suavemente pelo lado direito, revelando o pescoço numa pele nívea, algo que normalmente só veria numa caríssima boneca de porcelana, com aquele branco se contrastando com o rosado de seu rosto tímido que, ao toque das minhas mãos, e as reconheci pelas unhas coloridas, não se encolheu mas se enrubesceu e virou o olhar para um canto do quarto, à meia luz, entre um azul escuro e o lusco-fusco que entrava pela cortina leve e branca, quase transparente, que esvoaçava lentamente. Ele não queria encarar os meus olhos famintos, mas eles também escondiam desejo, eles também escondiam um instinto primitivo que, ao cair daquela peça, estava finalmente se revelando, com a mesma doçura de sempre. Droga, até nesse momento você é um fofo, o que eu faço com você? 

Agora só consigo imaginar o perfume da sua pele ao me aproximar ainda mais de você. Não consigo me lembrar do seu cheiro da última vez que nos vimos, mas é claro que em meus sonhos esse é o meu perfume favorito, o perfume capaz de escravizar todos os meus sentidos, de fazer as minhas mãos se contorcerem em vontade de te tocar, de fazer meus lábios se incendiarem para tocar sua pele num beijo delicado e apaixonado, meus olhos desejam gravar cada pequeno detalhe seu, para sempre, numa canvas que nunca se desfará. O desejo do meu coração é o de me tornar um só com você e nunca mais tornar a nos separar. 

Como chegamos a isso? Lembro que estava me contendo durante todos esses dias mas acabei em empolgando durante uma brincadeira. Me vi então no seu colo e, quando paramos de rir, notei que os shorts que usávamos por baixo daquelas camisas revelavam mais do que eu tinha notado. A minha vergonha passou em meio segundo e eu me afastei um pouco permitindo que você se levantasse, esperando que me empurrasse, mas você manteve seu olhar enquanto vinha em minha direção, e minha mão se levantou ao seu ombro sem que eu desviasse minha atenção de todo aquele misto de ansiedade e desejo que eu via nos seus olhos...

E então, de volta ao mundo real. eu percebo que sonhar com isso já é errado, então eu tenho que apenas guardar isso, guardar bem fundo, tão fundo que as lágrimas que brotaram dessa constatação se tornem diamantes a compor os adornos do baú secreto do meu amor.

sexta-feira, 7 de julho de 2023

O seu melhor

Ele está fazendo o seu melhor, mas sabe quando parece que nunca é o bastante? A princípio a maior parte dos seus colegas empurravam pra ele os trabalhos mais incômodos, e ele fazia mesmo que não fosse sua obrigação, e todos levavam o crédito pelo bom desempenho mas, quando algo dava errado, ele era responsabilizado. E isso o afetou. Poxa, pouco tempo depois de sua formatura, no primeiro emprego numa grande empresa ele já se sente cansado assim. 

O namorado sumiu sem deixar rastros, ele precisa se virar sozinho, as coisas não estavam indo nada bem... E agora esse chefe novo, o cara se aproximou como se ele fosse um querido mas logo se revelou como um tipo de carrasco, cobrando dele mais do que a todos os outros. E logo agora... Esse chefe percebeu essa coisa com os funcionários e, ao invés de ajudar, só cobrou mais ainda que ele tomasse uma atitude. Mas que atitude? Se quando ele toma uma atitude é culpado de descontrole emocional? Como ele consegue então ser firme mas sem parecer emocional demais? Parece que nada nunca está certo...

E ele finalmente conseguiu colocar um basta nisso! Será que agora o chefe finalmente vai reconhecer o seu esforço? Os colegas vão parar de encher, esse projeto grande pode ajudar bastante. 

Mas parece que nem isso foi o suficiente... Nunca é suficiente? Agora são as pessoas de outras empresas que questionam sua eficiência. E de novo as lágrimas brotam sem que ele possa controlar, que droga! Pra piorar ainda por cima o ex tinha que aparecer, e parece decidido a conquistar de novo, era só o que faltava...

E ele parece querer se aproximar mais e mais, um ex que desapareceu não deveria continuar sumido? Esse tipo de aproximação só torna tudo confuso, e pelo visto todos parecem querer confundir. Até o chefe, que se aproxima e se afasta. Aparenta criar confiança e logo torna a cobrar, o que está acontecendo, parece que a gentileza toma conta dele e depois vem descontando raiva em seguida. 

Quando finalmente as coisas se resolvem com o ex, com ele aceitando que não podem mais ficarem juntos, com a distância se consolidando como sendo o melhor para ambos, com isso parece que o chefe se tornou ainda mais afetivo. Mensagens e abraços de encorajamento, convites para jantares, pedidos de opinião, será que finalmente eles vão se entender?

Na cabeça do jovem tudo ainda pesa demais. A vida sozinho, o ex que se foi, a conturbada relação com o chefe, o trabalho... Essa pressão parece que vai entrar em ebulição a qualquer momento. Ele está prestes a explodir quando vem a revelação de que seu chefe realmente gosta dele. Sua reação? Nada disso faz sentido, como pode um homem bonito e bem sucedido gostar dele, que tantas vezes foi chamado atenção, que se mostrou fraco, que foi manipulado pelos colegas, que explodiu no meio de uma reunião... É melhor que eles não se aproximem, que o chefe não mande mensagens se não for a trabalho, que eles não saiam mais para jantar, que ele não empreste seu casaco na frente de todos os outros. Como pode? Não faz sentido. Mas faz sentido pro outro, mesmo que aparentemente seja tarde demais, ele finalmente explodiu, e as lágrimas que á eram difíceis de conter antes agora jorram torrencialmente, ao toque caloroso dos pais, ao conforto que eles proporcionam, e brotam com cada vez mais força, com a voz embargada, todas as dores, todas as dúvidas, todas elas banhando a face...

Ele não imagina que, há algum lugar dali, o chefe também chora, copiosamente, por saber que ele não o quer como algo mais que um colega de trabalho. E chora sem se conter, chora como ninguém imaginaria um homem como ele chorar daquele jeito, porque ele não consegue parar de pensar no outro, pensa nele o dia inteiro...

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Farrapo

“A maioria dos homens persegue o prazer com tanta impetuosidade que passa por ele sem vê-lo.” (Soren Kierkegaard)

Precisei arrumar um momento pra tentar escrever, mesmo sabendo que nesse momento a inspiração já se foi. Isso porque eu tenho um dia bem cheio, em contraste com a semana passada que foi bem tranquila, e enquanto isso a minha mente está ainda mais e mais cheia. E nesses dias eu tenho me odiado, cultivado dentro de mim uma raiva pelas coisas mais puras, algo como uma revolta demoníaca. Eu não consigo parar de pensar em como ele escolheu aquela bela visão ao invés de mim, e em como todos escolheram outra coisa além de mim, e como eu sou sempre tão facilmente negligenciável. Seria de se esperar que eu me valorizasse então, mas não, é justo o contrário, eu me odeio cada vez mais porque, se todos me deixam desse jeito, até mesmo por uma bela visão, eu devo mesmo ser um criatura horrível de se olhar. 

Meu olhar está frio e distante, já comentaram isso, enquanto eu estou apenas tentando não pensar muito em nada, e aparentemente isso incomoda os outros. Mas é isso, eu sou menos do que uma visão mental, menos do que um aceno do espírito, eu sou um nada. E tudo que faço vale exatamente isso: nada.

E me odeio porque continuo me chateando com o que dizem quando deveria apenas ignorar, quando deveria não me deixar afetar, nem por palavras e nem pelas impressões que eu certamente capto de modo errado, pois todas estão contaminadas com esses meus sonhos idiotas, com minha expectativa e com essa carência horrível que, como um câncer, vai me matando pouco a pouco. 

Eu já deveria ter aprendido. Quantas vezes mais eu vou me deixar machucar pelos outros? Até quando? Até quando? Até quando eu vou viver querendo aprovação, vivendo de compaixão, me alimentando de um amor que não existe?

E nem sequer quero falar sobre isso, explicar o que tem acontecido, porque isso me machucou tanto, tem sido tão dolorido, que eu só quero esquecer... Esquecer que eu me apaixonei de novo e que de novo eu não signifiquei nada, fui como um átomo apenas que se levantou, uma folha que rodopiou ao vento ou um farrapo...

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Aforismos no umbral

Não dou opinião, não bato de frente e não opino. Ainda que me surpreenda a ignorância e a afetação das pessoas em se apegarem a tais coisas mínimas e dispensáveis enquanto o resto desmorona. Infelizmente senso das proporções não se aprende na escola e só se adquire quem quer. Que o mundo se exploda enquanto escuto música e a chuva cai sem parar lá fora. Para hoje escolhi Mozart, de novo o Réquiem (o que posso fazer se sou uma criatura de hábitos?) e o bom e velho Akeboshi, com seu som meio dissonante, um tantinho psicodélico e meio melancólico e, pra fechar, Nunew e a doçura de sempre.

Esse ciclo perpétuo, da água que continuamente se faz presente em vários pontos, se reestabelecendo, modificando sua forma... Ela cai pesadamente do céu durante alguns meses, ou apenas fica como essa faixa anuviada que parece turvar a visão. Ela escorre lentamente das calhas e pinga pinga das pontas soltas, dos galhos das árvores, as folhas brilham intensamente num verde forte, um dos meus favoritos. E a água, esse elemento da mudança, se adapta. Empurrar a puxar. Positivo e negativo. Enquanto os outros se impõem, se colocam a frente, eu me mantenho atrás, eu recuo, eu me calo. Não gosto de embates, porque eu sei que se me fizer ouvir, por um segundo que seja, será como um tsunami, e aí me dirão que fui exagerado. Enquanto isso a umidade da cidade continua me surpreendendo, continua brotando água como que borrifada da parede e isso me espanta (por favor me dê um desconto, em Valparaíso a umidade bate 20° e a gente passa óleo na pele). Então eu só fecho os olhos, penso nas gotas caindo e se abrindo nas poças, penso na maré que se espraia infinitamente... 

X

Não gosto quando percebem que o meu humor mudou. Na verdade não é bem a forma como as pessoas entendem o humor, não é a expressão que muda, mas simplesmente minha força que se esvai, e não há o que fazer, e as pessoas insistem que eu preciso me animar, como se dependesse de mim não estar animado pelo belo dia. Eu sei que o dia está lindo, mas eu não consigo fazer mais do que admirar de modo silencioso, cansado, na quietude do coração. Juro que eu queria poder contagiar a todos com alegria, queria ser positivo e um porto seguro sempre, mas em dias como esse, em que eu simplesmente acordo e tudo passa mais lentamente, o corpo pesa como se estivesse cansado, mas eu não estou, é porque algo mudou... E não há nada que eu possa fazer além de ouvir uma boa música, tomar um bom café e fechar os olhos, quietinho e fingindo que nem sequer existo, esperando que tudo passe. Que tudo passe... Que tudo passe... Mas até quando? 

X

Você deve pensar que eu sou um maluco quando faço isso, quando não consigo acompanhar você, quando vou dormir de repente... É que as coisas começam aa ficar borradas, as palavras se misturam e eu mesmo perco as forças. Ontem fiquei um bom tempo deitado, olhando pro teto escuro e tentando te responder, mas eu não conseguia nem mesmo pegar o celular, quem dirá formar palavras. Tudo o que consegui foi dizer que te amo antes de entrar em um estado quase catatônico a noite toda e acordar hoje como se tivesse sido atropelado. Por favor, não faça como os outros que dizem que preciso me alegrar com o dia, eu sei que o dia está bonito e sei que preciso de energia, mas não é como seu pudesse me energizar com o sol. Quando eles dizem isso é como se me batessem, como se eu não reagisse por burrice...

X

Você apontou uma verdade óbvia e bem básica, e é claro que eu sabia disso. Mas ainda assim, ver como ela é uma muralha de cristal que eu nunca vou conseguir quebrar ou superar, me fez sentir bem inferior... Mas eu realmente sou insuficiente pra você, eu não posso dar a você o que você quer. Eu já vivi isso antes, eu nunca sou o bastante pra quem eu amo. Nunca.

Vou percebendo então a distância que nos separa, cada dia maior e maior para mim. Já estamos longe mas é como se nem sequer vivêssemos no mesmo mundo. E isso me dói, e me custa muito segurar as lágrimas, mas o que posso fazer se, cada vez que percebo a distância entre nós, sinto como o nosso afastamento fizesse rasgar as fibras do meu coração fazendo-as se alongar, fazendo com que minha carne tentasse te alcançar e com isso meu corpo vai se desfazendo, se despedaçando, se dilacerando mais e mais, porque eu sempre tento te alcançar, sempre estendo a mão e, ao chegar no umbral uma fina camada de água a queima, e eu preciso me forçar contra essa barreira, preciso ir contra ela, sentindo como se milhares de agulhas de fogo entrassem na minha carne e fossem pouco a pouco me desconstruindo brutalmente, o sangue escorrendo e fervendo, ele mesmo queimando o que restou da minha pele, meu interior em ebulição, os ossos desprendendo da carne que já começa a se desfazer. 

Para você só existe beleza nesses quadros. E eu não faço parte de nenhum deles. Eu não gosto de me vestir assim e sou só um incômodo passageiro na sua vida, completamente dispensável. Mas o que eu faço com a minha vida?

Como eu pude deixar as coisas chegarem a esse ponto? 

Ele nem mesmo se importa, o vento frio que entra pela janela é a minha companhia. Minhas mãos estão geladas, meu coração pede por algum calor e o que eu ganho em troca? O silêncio e uma pantera. 

Só o que eu posso fazer é calçar umas luvas e esperar aquecer meu coração... Vou dormir e fingir que meu maior problema é ter um pesadelo quando, na verdade, meu maior problema talvez seja me odiar demais.

Estação

Chegou o tempo da chuva, mais ou menos a época em que aqui vim morar aqui, e me lembro bem de me sentir ótimo ao ver os dias cinzas que se sucediam por várias semanas. Há três dias pelo menos não vemos o sol, nada daquele bafor quente e úmido dos primeiros meses do ano. Agora temos uma umidade fria, que enrijece o corpo, que toca a pele com violência num acesso de ventos cruzados que parecem vir de todos os lados. Como se a cidade de repente estivesse no meio de uma grande guerra entre Zéfiro e Bóreas, se digladiando brutalmente sem se importar com os pobres homens que caminham apressados e se refugiam em suas casas, esperando novamente os meses de luz e calor. 

Eu não espero o calor, gosto desse tempo, e gosto de saber que posso tirar do armário todos os casacos que comprei em Brasília e que usava por apenas uma semana por ano, e isso apenas até as oito da manhã. Aqui me sinto elegantemente vestido com lenços e cachecóis, muito embora o guarda-chuva seja incômodo de carregar, mas aprendi logo na primeira semana que passar o dia molhado não é nada legal.

E claro que sinto a atmosfera mais triste, as pessoas irritadas pelo céu fechado, enquanto eu simplesmente olho ao redor e sinto que finalmente me encaixo. O céu chora constantemente, a água escorre sem cessar das árvores, calhas e de tudo que esteja ao ar livre, e tudo se pinta de um cinza brilhante. As coisas, e a pele, ficam meio melequentas, é verdade, e isso somado ao vento frio dá a sensação de que vamos congelar, mas a pele não fica oleosa, não dói só de pensar em sair da rua e o sono, esse fica muito gostoso acompanhado de uma caneca borbulhante de chocolate quente ou de um bom vinho. 

Olhar pro horizonte e ver uma constante camada fina de gotículas caírem preguiçosamente, é algo belo mesmo de ser ver mas imagino que poucos parem pra observar, ainda mais em se tratando de uma cidade onde todos estão acostumados e até incomodados com a chuva. 

Gosto também da experiências que as caminhadas me proporcionam: as poças de água são espelhos nos mais diversos formatos que refletem os prédios e as pessoas que vão passando, e gosto de como olhando pra baixo consigo ver as coisas que acima da rua vão se movimentando, além daquele movimento das gotas caindo e espargindo no chão, um ritmo frenético e calmo ao mesmo tempo, e um ritmo que domina, que se espalha sem medo e sem nada que lhe possa impedir. 

terça-feira, 4 de julho de 2023

O ordinário

Eu sou um grande incompetente. E sim me conto entre o grande número dos medíocres! Algum problema? Provavelmente você que lê isso também o é, então um brinde a nossa insignificância! Pelo menos a alegria não é necessariamente medíocre, que Dionísio me ajude!

Demonstro minha incompetência e mediocridade em tudo o que faço e, talvez, só seja diferente da maioria na consciência dessa mediocridade, o que em nada me faz mais feliz ou melhor, afinal se os outros medíocres conseguem ao menos serem felizes nos seus cotidianos eu nem mesmo consigo fazer isso sem sentir uma enorme repulsa por mim e por cada aspecto de quem sou. 

É uma noite chuvosa e fria, belíssima obra de Seth, mas me subiu uma ânsia autodestrutiva quase incontrolável. Eu queria muito encher a cara até me esquecer do meu nome, ou tomar remédio e dormir por três dias, ou sair correndo nesses 10° sem roupa, e correr até o coração estourar, filho não reclamado do Érebo e da Noite. Mas como bom moço que sou apenas coloquei um pijama mais quente e me sentei pra escrever, pensando justamente em tudo o que faço.

E percebi, sem nenhuma dificuldade, que tudo que faço é bem ruim, ruim mesmo. Eu escrevo sempre as mesmas lamúrias, não sei cozinhar um maldito pinhão, minhas fotos ficam escuras demais, bebo o mesmo vinho barato e me apaixono sempre pelos mesmos homens delicados e idiotas que me trocam pela primeira vagabunda que aparece. E se ela é uma vagabunda é, em algo, mais interessante do que eu que sou, pelo visto, uma vagabunda inferior. 

Hoje fiquei sabendo que um deles ficou noivo, de uma cretina que eu acolhi na minha casa e chamei de "melhor amiga". E qual foi o pagamento? Nem preciso comentar. Uma piranha barata sem nada a oferecer além de uma boceta rosada. E ele caiu, é claro. Eles sempre caem. Desgraçada! E ele um idiota manipulável do caralho. Babaca! Espero que sejam bem felizes do outro lado do país. Espero mesmo e, sabe o que mais? Eu a acolheria de novo se fosse preciso, mas não voltaria a chamar nem mesmo de amiga.

Certa vez o velho Buck disse que era assombrado pelas coisas ordinárias que ele via todos fazerem com tanta facilidade. Eu entendo esse pânico do cotidiano que, pra ele, é quase uma úlcera. Eu não me incomodo com o ordinário mas me incomodo com a falta do extraordinário, por isso busco encontrar os meus encantos em coisas que passam despercebidas pela maioria. O pequeno trecho de um música onde um violino lamenta solitariamente, a chuva fininha caindo e no horizonte de Joinville o morro coberto da fria névoa matutina me lembrando aquelas belas fotos do Monte Fuji, os sorrisos que uma senhora engraçada trouxe a todos no ônibus logo pela cedinho... Essas coisas que passam pelos olhares me soam extraordinárias, e talvez eu esteja apenas achando o extraordinário no ordinário. Outras pessoas passam a vida sem conseguir ver nada de belo nas suas rotinas, por essas eu rezo e peço misericórdia.

Eu continuo amando o longe e a miragem. Não me iludo com ideias de grandiosidade, apenas abraço então a mediocridade mas também a consciência dessa existência miserável. E o mais que faço não vale nada. Eu sou só um grande incompetente, como tantos outros. 

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Açucenas sem amargor

Não acordei de ressaca, já transcendi essa fase. O álcool simplesmente é absorvido pelo meu corpo, o vácuo deixado pela desesperança faz de mim um poço sem fundo. É algo bonito de dizer enquanto espero os protestos do meu fígado, já os meus rins, por outro lado, se calaram mortos há tempos. Algo da minha pele ainda se salva, pelo menos o valor absurdo em skincare dá algum resultado: faz com que as pessoas achem que eu escrevo sobre desamor por não ter nenhuma outra preocupação. Mas não se iludam, eu sei da doença que minha mãe esconde de mim, sei ler os exames, e sei também que a gravidade da cirurgia é bem mais alta do que o que ela me disse. Também sei dos casos extraconjugais do meu pai, assim como dos sinais de Parkinson e Alzheimer que já ficam mais visíveis ano após ano e que todos fingem não perceber. Finjo que não sei dos problemas que a minha irmã tem no namoro, que muitas vezes se torna violento, e contribuo ao meu jeito, no silêncio. Também não tenho dificuldade de aceitar que minha ciclotimia devia me fazer procurar um psiquiatra ou, no mínimo, um psicanalista, mas no momento preciso de um aumento primeiro. E é claro que quem me vê gastando muito em produtos e falando de ácido hialurônico ou de protetor solar em fase aquosa para peles oleosas acha que eu não tenho nenhuma preocupação. Paciência. Eu também não conheço as preocupações deles. 

É dia dos namorados, e eu juro que não quero ser o estraga prazeres, amargurado, que distribui comentários azedos por aí, como se não estivesse desesperado para ser tão fofo e brega quanto os casais que multiplicam suas declarações felizes de anos juntos, descobrindo no outro coisas que lhes encantam e lutando para superar as dificuldades. Na verdade é uma bela data para pensar nisso um pouco, apesar dos esforços do comércio em transformar apenas em uma proposta comercial, o que até eu consigo perdoar porque as formas de expressar gratidão pelo tempo passado juntos são diferentes e podem sim ser uma ocasião especial num restaurante, num cinema, com flores, chocolate ou declarações bregas nas redes sociais que, de um modo ou de outro, refletem essa gratidão. Por favor, sei que fui esse velho amargurado pela solidão durante muito tempo mas hoje, espero que amadurecimento por uma dose extraordinária de mínimo senso de que eu nada tenho a ver com o relacionamento do outro, posso então dizer que desejo a esses casais felicidades! Que encontrem no outro apoio, refúgio, companhia, boas risadas e abraços apertados.

Que todos possam encontrar, e ser, um jardim fechado onde, o amante com o rosto reclinado sobre o amado, larga seus cuidados por entre as açucenas olvidado.