segunda-feira, 3 de julho de 2023

Açucenas sem amargor

Não acordei de ressaca, já transcendi essa fase. O álcool simplesmente é absorvido pelo meu corpo, o vácuo deixado pela desesperança faz de mim um poço sem fundo. É algo bonito de dizer enquanto espero os protestos do meu fígado, já os meus rins, por outro lado, se calaram mortos há tempos. Algo da minha pele ainda se salva, pelo menos o valor absurdo em skincare dá algum resultado: faz com que as pessoas achem que eu escrevo sobre desamor por não ter nenhuma outra preocupação. Mas não se iludam, eu sei da doença que minha mãe esconde de mim, sei ler os exames, e sei também que a gravidade da cirurgia é bem mais alta do que o que ela me disse. Também sei dos casos extraconjugais do meu pai, assim como dos sinais de Parkinson e Alzheimer que já ficam mais visíveis ano após ano e que todos fingem não perceber. Finjo que não sei dos problemas que a minha irmã tem no namoro, que muitas vezes se torna violento, e contribuo ao meu jeito, no silêncio. Também não tenho dificuldade de aceitar que minha ciclotimia devia me fazer procurar um psiquiatra ou, no mínimo, um psicanalista, mas no momento preciso de um aumento primeiro. E é claro que quem me vê gastando muito em produtos e falando de ácido hialurônico ou de protetor solar em fase aquosa para peles oleosas acha que eu não tenho nenhuma preocupação. Paciência. Eu também não conheço as preocupações deles. 

É dia dos namorados, e eu juro que não quero ser o estraga prazeres, amargurado, que distribui comentários azedos por aí, como se não estivesse desesperado para ser tão fofo e brega quanto os casais que multiplicam suas declarações felizes de anos juntos, descobrindo no outro coisas que lhes encantam e lutando para superar as dificuldades. Na verdade é uma bela data para pensar nisso um pouco, apesar dos esforços do comércio em transformar apenas em uma proposta comercial, o que até eu consigo perdoar porque as formas de expressar gratidão pelo tempo passado juntos são diferentes e podem sim ser uma ocasião especial num restaurante, num cinema, com flores, chocolate ou declarações bregas nas redes sociais que, de um modo ou de outro, refletem essa gratidão. Por favor, sei que fui esse velho amargurado pela solidão durante muito tempo mas hoje, espero que amadurecimento por uma dose extraordinária de mínimo senso de que eu nada tenho a ver com o relacionamento do outro, posso então dizer que desejo a esses casais felicidades! Que encontrem no outro apoio, refúgio, companhia, boas risadas e abraços apertados.

Que todos possam encontrar, e ser, um jardim fechado onde, o amante com o rosto reclinado sobre o amado, larga seus cuidados por entre as açucenas olvidado. 

Um comentário:

  1. Como nossos problemas se estruturam nos problemas que envolve-nos; somos intrínsecos ao outro.
    De fato, a dita “futilidade “ atua , neste contexto atual, como uma forma de dissociar. A dissociação vem tomando uma forma gigantesca a cada ano (o que me assusta) , seja feita por rituais de skin care , noites passadas em redes ( indireta para meu MAIOR asco pessoal: tiktok) etc. Estas formas de sair da realidade (até mesmo o estado inconsciente do sono, ou semi inconsciente do álcool ) agem como resultado de um capitalismo tardio , da infantilização crescente das gerações ( o famoso medo de crescer), e o fetichismo da mercadoria ( a ira de não poder ter). Contemporaneamente, viver em estado de dissociação é um privilégio; ser fútil em demasia, não saber o que é passar fome ou se preocupar com os mendigos que cercam a cidade e clamam por humanidade. Assim, qual é o problema de dissociar em uma sociedade de dissociação? Talvez você perca lentamente ( ou rapidamente) os sentidos medievais (saber ler , escrever, pensar e entender) , mas do que importa? Tiktok por cinco horas seguidas me parece melhor.
    Conheço tantos que perdem sem perceber o pouco intelecto que lhes foram destinado por um interesse efêmero, que nada lhes vale além de um estado de “consciência, mas nem tanto”
    Entenda-me pelo gato de Schrödinger, estar dissociando é estar meio vivo , meio morto ; é respirar, mas não viver.
    Desta forma, use o que for para tapar os olhos e dissociar, a vida é feita de outros , causando-lhe tristeza ou alegria; é você que escolhe a forma com qual lida com seus problemas
    Ps: preço de psicanalista e psiquiatra tá quase pau a pau (os que prestam). Essa cidade tem quase nada de filhos de Freud

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