quinta-feira, 30 de junho de 2022

Eu e minha circunstância

"As raposas têm tocas e os pássaros têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça." (Lc 9, 58)

Já comecei outra reflexão partindo desse versículo, e me envergonho de rebaixar tanto algo tão valioso para tratar de uma experiência humana tão pequena, mas como é a referência literária que me ocorre no momento eu não posso me furtar a isso apenas por uma tal vaidade religiosa, afinal, eu encontrei nessas palavras um reflexo de algo que senti, muito embora esse não seja o sentido da mensagem original contida nelas.

Acontece que, quando no banco da igreja eu ouvi essas palavras durante a Missa, elas ficaram gravadas no meu peito e, agora, que a experiência humana se apresentou, elas reverberaram novamente nas profundezas do meu Eu. 

Quando penso então nessas palavras eu sinto algo da minha experiência da solidão, do abandono, daquele que caminha sem rumo, sem ter onde se recostar, que não tem ninguém a quem recorrer. E assim, tantas vezes, me sinto. Olho ao meu redor e vejo que a luxuriosa realidade que me cerca não responde aos meus anseios, e o meu ardente coração inflamado de amor tampouco encontra par nesse mundo. Me vejo como águia a voar solitária o alto céu, mas sem encontrar parceiro que possa me acompanhar pelo resto da vida. Até os animais vivem com seus parceiros, até eles que vivem apenas por seus apetites mais bestiais, e eu, que supostamente deveria possuir a alma superior, a vontade, não consigo encontrar nesse mundo companhia que possa caminhar ao meu lado.

Isso se reflete em algumas coisas que considero de grande baixeza, como o sentimento de carência afetiva e o ciúmes, o medo de perder aquilo que eu mesmo sei bem que não me pertence e sob o qual eu não tenho nenhum direito. Mas ainda assim, em momentos como esse, eu fecho os olhos e vejo todos me deixando porque encontraram as pessoas a quem devem acompanhar, e eu percebo que preciso, urgentemente, aprender a me resignar com meu estado de solidão, e de me contentar em ter contato apenas com aqueles que leio, que viveram em outras épocas e que chegaram até mim de algum modo, eu preciso aprender a ser só. 

Preciso aprender a não esperar mais, a não procurar mais, a não desejar afeto e não ver afeto onde não há, preciso aprender a caminhar e olhar a paisagem sozinho, e a guardar no coração as palavras que gostaria de dizer a alguém. Ninguém vai ouvi-las, eu sou espécie única, não especialíssima, mas um erro, algo que não saiu como deveria ser e que por isso não consegue se conectar a ninguém, porque ninguém é capaz de compreender e eu, que deveria então compreender o outro, mesmo tentando fazê-lo, acabo por sempre afastar ou simplesmente sozinho. Eu não sou a pessoa que as pessoas se lembram numa madrugada de sexta, numa roda de amigos e chopp e pensam que queriam a minha companhia. As pessoas pensam em mim quando precisam tirar uma dúvida, quando esperam que eu tenha respostas para as suas perguntas mesmo eu estando em busca das respostas para as minhas perguntas. 

Preciso ser sozinho, preciso reverberar no meu ser as palavras que dizem que "nada pode me encantar na terra, a verdadeira felicidade não se encontra aqui" e assim entender, de uma vez por todas, que eu não vou encontrar alguém e, mais ainda, não vou encontrar o sentido da minha vida em estar com alguém. Eu sou eu e minha circunstância, eu e apenas eu. Não consigo me separar do ambiente em que vivo, da realidade ao meu redor, e exatamente por isso eu preciso mudar o que está ao meu redor e, quem sabe assim consiga alcançar e transformar aquilo que está no meu núcleo.

"Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo a ela, não me salvo a mim" (Ortega y Gasset)

terça-feira, 28 de junho de 2022

Alguns símbolos

Eu quero deixar a torrente correr livremente, levando tudo o que encontra a sua frente. Não vou me opor a nenhuma força que eu não possa conter, vou simplesmente deixar fluir, como água de cristalina fonte, mas que irrompe em ondas indestrutíveis e mortais. É assim que as coisas são, o coração não é tão simples quanto pensa, ele transborda e se impõe como uma alta cachoeira que parece fazer com que suas águas venham dos céus, chegando aqui com a força de um míssil.

Numa noite escura surge um sinal de luz, o branco de opõe ao negro, e ambos se encontram no coração do homem, formando um amálgama de elementos contraditórios, a perfeita definição do homem que se sucede em contradições e, apoiando-se numa base de realidade lida com inúmeros fatores caóticos que se lhes apresenta. É a lua que, impassível em seu brilho prateado ilumina a face daqueles que se banham sob ela, inclusive aqueles que não sabem mais olhar o céu e contemplar esse símbolo da força e da infinitude de Deus.

A primeira coisa que me surge é o contato imediato com a beleza transcendente de um homem. A pele clara e macia, os traços delicados, lábios rosados e o olhar colorido, alegre e penetrante, sedutor, os trejeitos doces. Ele exerce sobre mim um feitiço que me faz contemplar a sua imagem com devoção. É a beleza em sua forma quase plena, plasmada pelas mãos dos próprios anjos. Não há como me deparar com uma imagem dessa e não pensar no Belo e no Bem, mesmo que seja apenas um rapaz bem vestido e bem cuidado, a clareza e as proporções que ele transmite o transformam num símbolo de beleza, algo a ser imitado, admirado, contemplado. 

Outra impressão é a da voz, que canta a única arte que é ensinada pelo espírito, como dizia o grande filósofo. Essa voz, capaz de guiar as almas perdidas no escuro de volta para a clareza da simplicidade real encanta, aquece o coração. São os afetos da alma transformados em notas, melismas e falsetes. Seja numa música mais popular, como um Jeff Satur e sua poderosa sedução, na sua entrega, na forma como expressa os sentimentos profundos em canções onde o que canta não é a sua voz mas o seu coração, ou na explosão do Kyrie da Messa da Requiem de Verdi que culmina depois no esmagar da existência ao início da sequentia, arrebatadora e que se repete ao longo da obra para nos recordar sempre de nosso compromisso com aquele tribunal onde se assenta o justo juiz num trono de mais alta beleza. 

Por fim tem a claridade, aquela sensação de que não apenas o sol, mas a companhia de outra pessoa aquece o ser, conforta o coração, eleva o pensamento em conversas por vezes edificantes. A amizade que tem sua fonte em Deus sempre leva mais e mais para perto de Deus, da Verdade. A claridade pode iluminar a escuridão mais profunda, que das profundezas clama por ser ouvida. Essa claridade se expressa no amor, muitas vezes incompreendido (Eu te amo pode ter tantos significados, e quantas vezes nos limitamos a repetir essas palavras de forma vazia ou contendo um sentimento que os outros não conseguem captar porque há muito já perderam a capacidade de amar, de amar verdadeiramente aquele que olha com carinho e se deixa levar pela tranquilidade da companhia...), muitas vezes deficiente, cego por nossas próprias convicções, mas ele está aí. É o sol, o amor, fogo que arde sem se ver, mas que precisa se adaptar, aceitar. 

"O amor é paciente, é bondoso, não tem inveja e não é orgulhosa, não é arrogante nem escandalosa, não busca interesses seus, não se irrita e não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se rejubila com a verdade. 7.Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta." (1Cor, 4-7)

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Destruição

Bateu de repente, enquanto eu lia algumas aleatoriedades as palavras simplesmente se misturaram com o som da música e tudo ficou caótico na minha mente, o mundo parecia girar. Eu já não conseguia distinguir as coisas, o que eu estava fazendo? Qual era o significado daquelas palavras? Me senti perdido, não somente no que estava fazendo, mas completamente perdido em minha história, perdido em pensamentos que eu não conseguia nem entender o que eram, que passavam rapidamente ante meus olhos, flashes, piscando como num efeito de luzes numa festa, me tonteando. Me senti como se andasse dias no sol, em busca de uma sombra fresca qualquer mas acabasse caindo de cansaço no deserto. 

Eu sei bem que isso acontece de vez em quando, é o meu organismo querendo que eu alimente mais ainda minha dependência dos meus remédios, tornando minha consciência confusa, como a superfície turva de um rio furioso. 

Agora minha cabeça dói, e eu preciso ficar alguns instantes quieto para ver se consigo recuperar um pouco do equilíbrio. Não consigo nem mesmo entender o que estou escrevendo nesse momento, só sei que preciso continuar fazendo-o ou então posso acabar deixando minha mente se perder demais numa torrente de pensamentos que pode me enlouquecer. Preciso conseguir canalizar o máximo que puder nessas palavras, despejar o que for possível em cada sílaba e assim tranquilizar o meu espírito. 

Foi tão rápido, ou fui eu que não notei a sua aproximação, só sei que foi como uma explosão, como aquela do Dies Irae que destrói tudo por onde passa. Eu fiquei catatônico, observando aquela devastação de prédios, ruas, carros e do meu próprio coração despedaçado sendo lançado a esmo como os meus miolos. E ao mesmo tempo em que meu corpo era desfeito, em que cada fibra se desfiava e se emaranhava até sumir no ar, eu via a tudo isso, como quem assiste, e me via assistindo também aquele que via. E assim foi, eu só podia observar aquela destruição, o chão se abrindo em rios de lava e labaredas engolindo tudo e abrasando até mesmo o ar que entrava por meus pulmões e queimava por dentro enquanto podia ouvir o ressoar de trombetas convocando um exército de mortos de volta a uma existência monstruosa de puro ódio e vingança.

E eu não conseguia me mover, como se estivesse acorrentado pelos ossos numa cadeira e fosse obrigado a assistir aquela condenação, sendo ela mesma uma tortura, vendo a destruição repetidas vezes, numa guerra e num cataclismo que nunca findavam, apenas aumentavam em mais e mais destruição, e a minha própria mente estava já destruída, reduzida a pó. 

Lacrimosa dies illa
Qua resurget ex favilla
Judicandus homo reus

domingo, 26 de junho de 2022

Doce Perfume

Como o bater de asas de uma borboleta que pousou numa fonte cristalina e depois desapareceu em meio as flores de um grande jardim ela chegou e se foi, rápida, fugidia, e não me deixou reter entre meus dedos, escapando como fumaça mas não sem deixar no meu peito o seu calor. Fechando os olhos eu me recordo daquelas cores que por um instante brilharam diante de meus olhos, assim consigo reconstruir um pouquinho, em palavras, aquilo que vi e senti com todo meu ser num único momento, um piscar de olhos.

Algumas experiências são assim, é quase sobrenatural o que se imprime na alma em um instante, uma impressão tão profunda que dificilmente conseguimos expressar na superficialidade das palavras, mas que continua lá, marcada a ferro, num lugar tão escondido que nós mesmos só conseguimos ver quando silenciamos tudo ao nosso redor e deixamos apenas aquela voz ressoar na escuridão, transcendendo então em luz que a tudo traz vida e calor. 

Essa experiência me foi desencadeada, e quase sempre é assim comigo, pela doce voz de um cantor que tenho ouvido muito, e isso tem acontecido com uma certa frequência. Semana passada mesmo eu me lembro de ter sentido isso ao ouvir algumas músicas do Nunew, hoje foram algumas faixas do Jeff Satur que caíram no aleatório e acabaram por me chamar a atenção. Ele tem uma voz uma voz cristalina e consegue me passar a força de vivências profundas, eu sinto uma vitalidade incrível ao ouvir ele cantar, entre falsetes e melismas, sobre sentimentos e coisas do coração. Não consigo ficar indiferente a alguém que imprime tanto da sua alma no que faz. 

Fico então com essa impressão, de um céu estrelado e uma pequena fogueira aquecendo os amantes ao seu redor, a cabeça de um apoiada no ombro do outro, mãos entrelaçadas, uma voz e um violão e apenas o amor a se espalhar, como a luz dos vagalumes ou o doce perfume das flores. 

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Resenha: Plus & Minus

Contém SPOILERS!

Taiwan nunca decepciona e, embora os detratores de HIStory 4 discordem de mim, eu continuo repetindo essa máxima. Plus & Minus veio pra continuar o legado do país que já nos ofereceu grandes e memoráveis histórias, consideradas por muitos como as melhores do mundo BL. 

A série conta a história dos advogados Cheng Ze Shou (Max Lin) e Fu Li Gong (Shi Cheng Hao, de HIStory 3: Make Our Days Count). Os dois são amigos desde a época do colégio e agora trabalham juntos na mesma agência de advocacia cuidando de casos de divórcio. Mesmo já tendo sentimentos um pelo outro desde aquela época eles nunca tiveram coragem de tocar no assunto, muito embora em algumas ocasiões em que eles bebem demais acabem passando um pouco do limite que tinham como amigos. 

O segundo casal é formado pelo dono de uma lavanderia, Jiang Ying Ze (Matt Lee) e o barman Kato Yuki (Zheng Qi Lei) que é sucesso entre as clientes do lugar em que trabalha, que fica embaixo da lavanderia do outro. Num dia eles acabam se desentendendo por causa do barulho constante e do lixo que o bar deixa na porta da lavanderia e isso termina por aproximar a ambos, que logo descobrem um sentimento entre eles. 

As séries taiwanesas sempre trazem um drama mais elaborado do que a média que temos nos BLs, o psicológico dos personagens é abordado com um pouco mais de maturidade e isso provavelmente se deve ao fato de que essas séries são dirigidas a um público mais velho por lá. 

Como trabalham com divórcios diariamente, Fu Li Gong e Cheng Ze Shou acabam tendo uma grande insegurança quanto aos seus sentimentos. Eles convivem com pessoas que se amavam mas que, de repente, passaram a ser distantes. Essa perspectiva diante do amor que acabou os faz pensar se vale a pena arriscar a amizade que têm em nome de um amor que pode um dia se transfigurar até mesmo em inimizade. Por isso a insegurança de ambos em se declarar. Fu Li Gong esconde esse sentimento por trás de uma atitude séria e fria, embora esteja perdidamente apaixonado, e Cheng Ze Shou é brincalhão e sorridente, mas acaba mostrando seus sentimentos quando bebe um pouco mais.

Quando eles finalmente resolvem esclarecer as coisas parece que um mundo novo se abre diante de seus olhos. Algo parecido acontece com o casal secundário, onde Jiang Ying Ze é divorciado e tem uma filha e, ocupado com o trabalho, já não acredita mais no amor, até encontrar nos braços de Yuki o carinho que faz despertar esse sentimento nele mais uma vez. Mas, assim como seu primeiro casamento acabou chegando ao fim ele teme que esse relacionamento também esteja datado.

A palavra central da série então é coragem, coragem para enfrentar um amor e se abrir para as possibilidades que ele oferece, e os dois casais descobrem isso ao perceber que amar significa também estar disposto a lutar para fazer as coisas darem certo e manter a chama desse sentimento permanente acesa. 

Com uma atmosfera leve e envolvente o casal principal consegue cativar com uma energia deliciosa de se ver, a dinâmica do tímido porém apaixonado Fu Li Gong e do Ze Shou que faz de tudo para que o outro perceba o quanto ele o ama é simplesmente apaixonante de se ver. Além disso os atores belíssimos, diga-se, tem muita química e entregaram tudo nas cenas de maior intimidade. 

Uma curiosidade da série foram as participações especiais que tivemos: Aaron Lai e Hank Wang de Be Loved in House: I Do, Wayne Song e Huang Chun Chih de HIStory 3 e Charles Tu de HIStory 4. Todos apareceram em referências as suas respectivas séries, o que é bem divertido de se ver, como se fosse um multiverso dos BLs. 

Por fim, Plus & Minus mostra uma história madura sobre aceitação e coragem e mais uma vez entrega uma série gostosa de assistir, com personagens cativantes e um roteiro simples porém muito bem trabalhado. 

Nota: 08/10

Imagem

Tem dias que a gente ganha e dias que a gente perde, em alguns deles a gente até tenta, faz um esforço, mas outras vezes é melhor só dar as costas e ir dormir. Tem dias que nem sequer eu consigo me olhar no espelho e me ver numa câmera frontal é uma tortura, mas eu ainda tento me acostumar, com essa imagem de cadáver adiado, e me acostumar com essa existência patética, porque não há se a fazer, as coisas são assim, e tudo é uma droga, a vida, o amor, às vezes é um cão dos infernos, já dizia o poeta.

Me deparei com um post de um ator que eu sigo, Earth Katsamonnat, em que ele aparecia usando uma blusinha "feminina" branca e rendada, e na descrição ele dizia: "Eu me vesti de todas as maneiras. Coloquei roupas da moda masculina e não combinava, não combinava, se achou algo que combina com você, vista. Seja você! Vista e seja feliz! Qualquer um pode usar a roupa que se sente melhor não é? Se alguns escolhem camisas, escolha o que for mais adequado pra você, seja você mesmo!"

Eu fico feliz quando vejo as pessoas se aceitando e felizes com a forma como se vestem e tal. O que me incomoda é que não importa o que eu faça eu não consigo me sentir feliz comigo mesmo. Eu uso as roupas que eu quero, uso maquiagem quando quero, pinto as unhas quando me dá vontade, mas mesmo assim quando eu me olho no espelho eu continuo odiando o que eu vejo. Não importa o quanto tente eu não consigo gostar da minha imagem, não consigo gostar de mim mesmo de modo algum. 

Eu sei que isso também tem um fundo em locais menos óbvios e imediatos como a aparência, a saber que a autoestima também inclui muito do que sentimos e vivemos. Eu também não me considero inteligente como gostaria de ser e nem bem sucedido como gostaria, muito pelo contrário, eu sou um um completo fracasso. O que acontece é que justamente o aparente é mais imediato e por isso é ele que me afeta primeiro.

Mesmo que eu poste muitas fotos, o que alguns enxergam como uma característica de quem tem boa autoestima, eu na verdade estou é tentando me acostumar com a imagem horrenda que eu vejo nas fotos. Não é porque eu sempre tiro muitas fotos que eu gosto do que vejo, mas é que pelo costume eu tento me acostumar e assim diminuir o horror que sinto ao me ver, o que tem se mostrado inútil até agora.

Quanto mais eu vejo o outro então eu sinto inveja. Sinto inveja do Earth, com sua pele clara e corpo magro a ponto de parecer lindo usando uma blusinha de alça, e ele está simplesmente lindo. Sinto inveja daqueles modelos de cabelo liso, de sorriso perfeito, de voz afinada, de corpo desenhado. E então me olho no espelho e vejo a quantidade de tatuagens que fiz pra tirar a atenção das características naturais do meu corpo e mesmo assim não funcionou. Eu me sinto péssimo cada vez que vejo a minha própria imagem. Eu me odeio, e quando acho que não poderei me odiar mais eu vejo a minha imagem refletida no espelho, e então eu me odeio ainda mais. 

E não importa quando dizem que eu sou bonito, quando dizem que eu preciso aceitar a minha beleza, eu acho isso um absurdo. Elas vêm a mesma coisa que eu? Eu sou uma aberração, eu nem tenho aparência humana, como posso me achar bonito? Como posso me aceitar assim?

Hoje é um desses dias, que eu não queria ver a luz do sol e nem o rosto das pessoas. Queria não ver nada, no máximo alguma série que me alienasse completamente do mundo. Hoje é um daqueles dias em que eu não queria ser ninguém. 

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Caos e o Princípio da Ordem

Tentei adiar esse momento por mais alguns dias, queria ficar acordado por mais um tempo. Tem algumas séries que eu quero começar a ver, pretendo maratonar nos próximos dias e queria começar a fazer isso hoje, mas desde cedo eu percebi que minha mente estava com dificuldade de se manter fixa nas coisas. Acordei mais tarde que o normal mesmo não estando cansado e dormi durante a aula, mesmo sendo de grande interesse, me incomodei quando ouvi vozes e as pessoas na minha casa, e me incomodei mais ainda com o barulho. 

Eu só queria silêncio, um pouco de paz, mas não é como se o mundo ao meu redor tivesse ficado cheio de confusão, o que se tornou caótico foi meu interior, e nesse caos foi que eu me perdi, agora precisando buscar me recuperar na dopada candura de um sono prolongado. É sempre assim, e tem sido cada vez mais difícil ficar sem dopar quase todos os dias, minha mente se enevoando e a confusão se instalando no meu coração como se eu fosse me expandindo até perder os contornos, até deixar de existir.

Claro que essa é uma descrição superficial e pobre, ás vezes eu sinto como se passasse de novo por uma despersonalização, outras vezes eu só me sinto sobrecarregado com informações demais e a minha mente clama por silêncio e ordem. 

Saudades de quanto eu me dopava e daí então conseguia escrever coisas bonitas, muitas reflexões até profundas sobre a dificuldade do contato com o outro, sobre a melancolia, sobre altas questões da mente e do coração do homem. Agora eu só consigo aglutinar palavras muitas vezes sem nexo entre si, mesmo meu pensamento se estabilizando pouco a pouco eu sinto cada vez mais ser puxado ao caos, não o caos primordial, mas apenas estou de frente com a minha incapacidade de traduzir o que sinto em palavras. 

Penso em alguns homens que conseguiram traduzir experiências tão humanas e tão profundas de tantas formas diversas, seja numa epopeia dantesca como A Divina Comédia ou até mesmo o drama da alma humana em Tragédia Burguesa, ambos a sua forma traduziram e legaram ao futuro o que muitos de nós não conseguiríamos dizer. E hoje me vejo exatamente aqui, na penumbra do meu quarto, um pouco iluminado de verde pela luz que passa pelas cortinas, confuso demais para dizer o que sinto. 

Se fecho os olhos e tento descrever o que vejo enquanto escrevo, porque muitas vezes escrevo de olhos fechados enquanto me deixo levar pela música, eu apenas consigo vislumbrar uma miríade de objetos desconexos, num mundo sem muitas referências espaciais, que parece não ter fim, um retrato do caos. Mas ainda há um princípio ordenador em tudo isso: Eu permaneço eu mesmo, desde o princípio desse texto até o derradeiro ponto final. Mas que posso fazer eu nessa tempestade de loucura? 

Por isso eu disse que hoje não estarei sendo ninguém, porque mesmo sendo eu mesmo eu já não consigo dizer em palavras quem eu sou, e perdido desse jeito eu não tenho serventia, preciso organizar o mínimo que for antes de dizer ou fazer o que quer que seja, mesmo que seja uma simples maratona de séries dramáticas e românticas ou um curso sobre metafísica hindu ou a unidade transcendente das religiões. 

Preciso de ordem. E onde buscar essa ordem? Hoje eu só tenho uma resposta para isso, embora quisesse aqui poder oferecer algo mais substantivo, mas a realidade é que não posso oferecer o que não tenho, então me abstenho, não serei ninguém, até conseguir encontrar o princípio ordenador. Apenas tenho algumas pistas por onde começar...

"In principio erat Verbum et Verbum erat apud Deum, et Deus erat Verbum. Hoc erat in principio apud Deum. Omnia per ipsum facta sunt, et sine ipso factum est nihil quod factum est;" (Jo 1, 1-3)

O Logos Divino no início de tudo, eis o princípio ordenador de toda a realidade. 

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Eleva o pensamento

Meu coração perturbou-se brevemente, como se uma pedrinha fosse lançada na superfície de um lago, pequenas ondinhas surgiram agitando-se na água transformando aquele espelho cristalino e azulado numa confusão donde nada mais se via. Mas, pouco a pouco ele aquietou-se, pouco a pouco a água tornou-se a parar e a refletir o brilho do sol, e então, observando aquela cena por vários minutos o pensamento se elevou, e então ressoou em minha alma aquelas palavras que dizem "Nada te perturbe, tudo passa", e assim eu percebi que, como aquela água, a tranquilidade poderia ser quebrada, e até mesmo de modo violento, tanto maior fosse a pedra lançada, mas logo chegada ao fundo a superfície voltaria aquela tranquilidade primeira, sinal visível de como deve ser o coração de quem enxerga de frente a realidade e não deixa se abalar pelas pedras lançadas que nos atingem, com força e violência. 

Foi assim que eu reagi quando vi sua imagem na barra de notificações ao acordar. Depois de anos sem falar com você, depois de tanto tempo tentando esquecer o que eu senti, depois de você seguir seu caminho como se eu nada significasse, você volta assim como se nada tivesse acontecido, perturbando meu sossego, me fazendo lembrar de tantas coisas que eu quis esquecer. Novamente me senti um nada, conveniente apenas quando precisa, ninguém digno de sua proximidade ou seu coração. 

E assim segue-se a vida: eleva o pensamento, ao céu sobe, e as angústias vão se aquietando. Mas é claro que isso não significa nunca deixar-se turvar, como a água a superfície pode se agitar mas é preciso retornar, é preciso voltar sempre a tranquilidade, a paciência, voltar a sentir a doce paz e o amor que nos leva a sorrir. 

Parece que sou outra pessoa a dizer isso não é? Mas o digo num momento mesmo de angústia, percebendo que essa agitação é apenas temporária, que mesmo que agora doa e me deixe inquieto, que me faça titubear e pensar em transbordar, eu devo me esforçar para fitar aquele olhar e voltar a doce paz. 

Isso é apenas um vislumbre de luz em meio as nuvens de tempestade me dizendo que o sol continua a brilhar por trás dessa massa cinzenta e que logo voltará a invadir os corações. E é isso, na simplicidade de uma pedrinha que agitou a água ou da luz do sol que delicadamente beija o meu rosto eu vou tentando voltar (ou seria pela primeira vez?) a encarar a realidade.

terça-feira, 21 de junho de 2022

A Despontar

Uma inquietação crescente vem surgindo no meu peito, como se despontasse no horizonte o marchar longínquo de tropas a se prepararem para a batalha, tomando fôlego antes do derradeiro combate. Não é que eu não tenha feito nada, até conseguir ler e estudar mais do que o normal nos últimos dias, mas algo em meu ser ainda se incomoda, como se algo grande fosse acontecer. 

Talvez seja a sucessão de dias tediosos que me faça sentir apreensivo, como se a conquista de uma rotina sempre fosse abalada por uma ordem cósmica maior que destrói toda ordem, mas eu sei bem que isso é só uma impressão. O universo continua indiferente a mim e, no máximo, posso sofrer com alguma adversidade fruto de uma escolha errada minha ou de alguém ou até mesmo de um infortúnio ocasional. Até meu pessimismo tornou-se cético: não é como se houvesse uma conspiração superior contra mim, eu não sou tão importante assim, as coisas dão errado simplesmente porque sim, talvez seja assim para os outros também e eu só não consiga enxergar, pelo menos daqueles que estão perto de mim eu acho que sim, as coisas são assim, eles só não se dão conta disso. 

Lembro de ter feito algum comentário aleatório sobre uma notícia que passava no momento em que eu ia do quarto para a cozinha e, sem entender uma palavra do que eu disse a minha mãe sorriu e balançou a cabeça em afirmação mas eu quase pude ouvir ela dizendo que eu enlouquecera. Isso porque o comentário que eu fiz foi baseado em alguns anos de estudo, o qual eu não costumo compartilhar com ninguém pois ainda se encontra em estado muito inicial, mas aquilo estava tão distante de sua realidade que ela não pôde entender. E note que eu disse distante e não acima porque efetivamente eu acredito que conhecer isso não me torna superior, antes disso, me torna ainda mais responsável por compreender os demais, que também precisam entender que eu ainda não tenho a experiência de vida que eles muitas vezes carregam.  

O que isso tem a ver com o que disse nos primeiros parágrafos? Os últimos dias têm sido mais intensos intelectualmente, tive contato com alguns textos um pouco mais complexos e pensadores que me trouxeram importantes reflexões mas, ao mesmo tempo, enquanto tudo isso se deposita na minha mente, na parte mais obscura do que eu tenho consciência algo começa a se ajeitar, talvez seja uma mudança de humor mais forte que eu venha ter nos próximos dias, talvez não seja nada, ou um presságio, até mesmo uma reação reprimida a algumas promessas que andaram dando errado também nos últimos dias. 

Só o que me vem a mente agora é que isso é realidade se mostrando a mim, e cabe a mim aceitar e enfrentar como tem que ser, mesmo reclamando, mesmo profundamente incomodado e encarando tudo de modo pessimista, porque de fato eu acho que a realidade é sim uma sucessão de desmantelos, mas também há elementos de beleza, algumas belas pétalas de rosas no meio desse espinhal. Preciso aprender a sorrir com agradecimento pelos espinhos que entre rosas vou colhendo. 

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Perfume das Flores

Existem vozes capazes de acalmar a ira das almas, de fazer cessar as tempestades e silenciar os corações mais ávidos em declamar as suas dores. Há vozes que silenciam o espírito e devolvem a paz que foi roubada, há vozes que nos fazem sentir a tranquilidade ser de novo injetada em nosso sangue e novamente percorrer nosso corpo, devolvendo o homem aquele estado de pureza que tinha naquele útero primitivo que perdemos há muito tempo atrás. Algumas vozes me fazer sonhar, sua doçura é como o perfume das flores do campo, inebriam os sentidos e me fazem esquecer que a minha experiência, a minha existência, é defeituosa. 

Mas do que estou falando? Novamente pareço incorrer no erro de me deter em explicações tão poéticas (ainda que limitada pela minha pobreza estilística) que pareço não estar falando de nada em particular, mas a verdade é diversa dessa impressão inicial. 

Muitas vezes eu olho para mim mesmo, minhas numerosas limitações, meus pecados, meus muitos defeitos, e isso me faz querer culpar o mundo, o demiurgo que me aprisionou a gemer e chorar nesse vale de lágrimas, mas, se ouço aquela voz que consegue tocar meu coração eu então sou levado a encarar a realidade de que, de fato, trata-se dos meus defeitos e das minhas limitações, e não de um mundo malvado que trama contra mim, mesmo que muitas vezes seja o que parece. 

Quantas vezes eu não culpei o destino pela minha melancolia? Quantas vezes eu não conseguia enxergar sentido na minha existência e culpei ao próprio Deus por não me revelar esse sentido, quando eu já havia desistido de procurar por ele?

Mais uma vez o erro estava em mim, assim como as respostas que eu procuro estão, de certo modo, em mim, mas não em mim propriamente dito, mas Naquele que em mim é mais Eu do que eu mesmo. 

A doçura da voz é capaz de me trazer de volta, é a realidade que fala, e se estou disposto a ouvir ela me oferece algumas respostas. O desejo de saber tudo, no entanto, é fruto da arrogância e do desejo delirante de onipotência, a realidade, Deus, nos dá aquilo que precisamos e podemos saber, reservando tudo o mais para que Ele mesmo nos explique quando melhor convir. 

E isso foi apenas um pensamento que me passou de relance, enquanto ouvia uma aula de filosofia política e sentia o peso da carência a despertar em meus braços anseios luxuriosos de quem não sabe o que quer e que se confunde ao achar que o abraço de um homem pode sanar as minhas dúvidas. Uma voz doce e delicada então me levou a refletir nisso que penso ser uma verdade, gentilmente revelada a um indigno aprendiz que, agora, apenas deseja ter a tenacidade de conseguir, mesmo coberto de sangue e lama, trazer aos lábios uma bela rosa.

sábado, 18 de junho de 2022

Cicatriz de Amor


Por que, pois, hás chagado
Este meu coração, e não o saraste?
E, já que mo hás roubado,
Por que assim o deixaste
E não tomas o roubo que roubaste?
(São João da Cruz)

Eu tentei ignorar a profundidade dos seus olhos da cor do oceano, tão profundos quanto, mesmo quando eles me convidavam a mergulhar com tudo dentro de você. Foi aí que eu virei o rosto, olhei para qualquer outra coisa, um estranho que passava na rua, as folhas verdes das plantas ao meu lado, isso porque eu sabia, eu sabia que se olhasse no fundo dos seus olhos aqueles cristalina fonte iria me fazer querer beber daquela água, e há muito eu decidi que não iria mais pousar nessa armadilha. 

Ainda lembro do que passou, do quanto eu sofri, e mesmo que as cicatrizes do meu braço já tenham quase desaparecido, as do meu coração ainda permanecem claras, me mostrando qual caminho não tomar novamente, me ensinando a nunca mais colocar alguém naquele lugar, alto e inacessível, donde eu só poderia me humilhar para ser visto e notado.

E acho que nunca mais vou conseguir sentir aquilo de novo, aquele medo, aquele sentimento tão poderoso que me consumia, sufocava, aquilo não era amor, nunca foi, era obsessão, era um corrente incandescente ligadas aos meus ossos que me fazia sentir dor e que injetava pavor em mim até o tutano. Isso porque eu tentava ser alguém que eu nunca poderia ser, eu queria me encaixar num lugar que não era meu, eu queria ser o que eu nunca poderei ser, e isso me machucava, como se milhares de agulhas perfurassem o meu corpo repetidas vezes, como se uma carga elétrica passasse pelos meus músculos e me fizessem contorcer de dor ao perceber que, não importa o quanto eu tentasse ou o quão intensos eram meus sentimentos, eles nunca iriam alcançar quem eu queria.

E isso não mudou, eu ainda não consigo tocar o coração de ninguém, por mais que se multipliquem as minhas palavras. Cada um só quer ouvir palavras de amor daqueles que eles amam, estranhos não penetram no escudo que eles mesmos criaram ao redor de si, consciências não se tocam. Quem tem o coração ferido não quer consolo senão daquele que o feriu. Eu não sou, e nem nunca serei, aquele de quem os outros querem que venha consolo. Eu sou apenas um incômodo. 

E felizes são aquelas que são amadas e podem se dar ao luxo de rejeitar os seus amados. Mais felizes ainda aquelas que repousam a cabeça no colo daqueles que tanto as amam. 

Os versos de São João da Cruz são aqui mais poderosos em expressar essa realidade do que mil palavras que eu possa escrever. Só o que me resta então é meditar esses versos, e quem sabe neles encontrar algo que possa me apontar como agir nessa situação. 

Espero realmente que aquilo nunca se repita, que esse colosso tenha sido demolido de uma vez por todas e que jamais torne a imperar por sobre os muros da minha cidadela. 

"Olha que esta doença
De amor jamais se cura,
A não ser com a presença e com a figura."
(São João da Cruz)

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Água e Fogo

Já sentiu como se seu coração fosse crescendo dentro do seu peito a ponto de quase não caber mais dentro de si? Já sentiu como se ele fosse se aquecendo pouco a pouco até que todo seu ser se consuma como numa fornalha ardente? 

Os gritos da minha alma se silenciam quando eu tento colocar para fora, quando eu me coloco de frente para uma tela em branco e me possibilito esboçar tudo que há de mais profundo no meu ser, muitas vezes só o que resta é o silêncio. E então eu preciso fazer um imenso esforço para conseguir retirar algo desse meu interior, para conseguir algo das águas profundas da minha própria existência. 

E eu nem pensei em começar a falar já me comparando a uma fornalha ardente e a água profunda, essa perspectiva simplesmente surgiu. Como fogo eu me transformo e como a água eu sinto a potência criadora, o princípio da vida, a cura, a sua capacidade limpar, purificar. Ambos me fazem pensar Naquele que tudo fez, mas também me fazem pensar na minha própria pequenez, e em como meu amor se inflama e como ele às vezes é como a água, calma e tranquila num ponto e mortalmente feroz e indestrutível logo em seguida, turbulente, sem limites. Como fogo que converte tudo em fogo meu amor muitas vezes transforma tudo o que tenho em amor, e como a água dele brota a vida, dela nasce e renascem os heróis, esperançosa numa pequena planta que cresce em direção ao céu. 

Como fogo eu também sinto-me incendiar toda a floresta, me entregar completamente ao consumo e a destruição, levando o caos e o horror a cada fibra do meu corpo. Mas é também numa noite escuro que às vezes um calor leve aquece meu coração da frialdade inorgânica que me cerca.

Mas sobre o quê eu estou falando? Parece que não estou me referindo a nada e que apenas estou lançando palavras ao vento, mas isso não é verdade, é que só assim eu consigo exprimir um pouco do que eu sinto, só assim eu consigo descrever, mesmo que as apalpadelas, o que eu sinto quando penso nele, quando me vejo sozinho no quarto a noite, quando me desanimo de viver um dia e me encho de remédios para dormir e apago durante a tarde inteira. 

Em dias assim eu simplesmente não quero ver nada e nem ninguém. Em dias assim eu me vejo prisioneiro das telas que me apresentam imagens e mais imagens, que me bombardeiam com informação demais e sabedoria de menos, que me deixa cada vez mais sedento de conhecer justamente porque quanto mais ela me mostra menos ela demonstra. 

E as pessoas se alucinam, algumas acreditando em qualquer idiota que fale bonito sobre coisas que parecem boas e justas mas que, no fundo, não significam nada. Outras se apegam a métodos como se fossem uma tábua de salvação, e ninguém adite estar perdido. Ao admitir que toda essa confusão me deixa perdido eu já estou mais orientado que todos eles: eu reconheço que preciso de um caminho a seguir que conduza a verdade, e sei que é um caminho difícil, agrestes escarpados, mas isso é melhor do que acreditar ser dono de uma verdade que não existe pelo simples motivo de que se tem medo demais de assumir a própria confusão. 

Somos, e estamos, confusos. Assumir isso é o primeiro passo para elevar os olhos ao Pai e deixar-se guiar por Daonuea, a Estrela do Norte, que nunca some do céu e ajuda aqueles que estão perdidos a tomarem um caminho certo. E pouco a pouco, entre tropeços e caminhos errados vamos aprendendo onde está o caminho certo. Experimentai de tudo e ficai com o que é bom, disse o Apóstolo Paulo, e assim vamos vendo que quase nada das cores e dos barulhos que nos circundam nos oferecem respostas alguma, apenas reações emocionais, e que talvez o que procuramos possa estar naquele livro fechado que não lemos, ou no coração que fechamos para a Verdade. 

E é interessante notar que a Verdade, quando se encarnou, não se apresentou como doutrinas complexas de difícil entendimento, mas o fez como uma pessoa, com os homens conviveu, com eles sentou-se à mesa, bebeu e partiu o pão, chorou quando o amigo próximo morreu e, no alto daquele madeiro, daquela árvore sem igual, experimentou a total solidão da alma. A Verdade se apresentou como homem, mas não um home fechado em si, um homem que transcendia a própria definição de homem, e aquele que estava diante dele, diante da Verdade ainda perguntou "O que é a Verdade?", ele não conseguia enxergar o que estava diante dele com mais clareza que o sol do meio dia, com mais presença do que já havia se apresentado a qualquer outro homem.

E essa Verdade vem como fogo e água, transforma e converte tudo em fogo, muitas vezes reduz tudo às cinzas, mas então vem a água dos céus e dela nasce nova vida. Mas a vida não nasce sozinhas. As árvores de uma floresta crescem juntas, assim também caminhos juntos, nos apoiamos, muitas das vezes ficamos simplesmente em silêncio do lado do outro e tá tudo bem, a companhia diz o que precisamos dizer com mais precisão e profundidade que nossas palavras. 

Crescer juntos é uma realidade que o homem de hoje já não compreende. Já não compreende nem mesmo como alguém pode querer interessar-se tanto pela realidade. Mas crescer junto é caminhar lado a lado, respeitar as limitações do outro, aprender com seus acertos e se aproximar de seu coração. Ter o desejo da eternidade do ser amado, como ensina S. Tomás. É apoiar a cabeça no peito do mestre como o Discípulo Amado, mesmo que os outros não entendam a pureza por trás desse ato. 

E ainda assim é estar suscetível a traição, ao beijo de Judas, como também já me aconteceu. Mas que isso não signifique que, por alguém ter optado abandonar a Verdade, que ela tenha desaparecido, ela continua aqui, e continua a nos atrair, de forma claramente sobrenatural, fazendo-nos elevar os olhos ao céu e, dentro de uma igreja ver a figura de um pobre crucificado, solitário, mas que ainda em sua imensa força de Deus que se fez homem, continua pedindo por nós e se alegrando porque vai encontrar alguns dos seus no Paraíso naquele mesmo dia. 

Ele como fogo transforma e como a água traz a vida, o que é velho cede o novo em tão ínfimos sinais. E esse fogo queima, e a água limpa, todo pecado, toda bestialidade, todo desejo de entregar-se aos prazeres mais absurdos, é dos pecados vestígios algum enxergar, ao fogo divino um a um são apagados e então, finalmente, podemos cantar ao sair desse mundo "Eu morro de amor."

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Estrada

Meus vizinhos são pessoas bastante alegres, quase todos os dias eu posso ouvir a música alta e as risadas deles, os amigos chegando com caixas de cerveja e as crianças brincando na rua. Mas hoje eles estão silenciosos, parece que estão dormindo, e é estranho num dia tão claro e bonito como esse.

Talvez a minha melancolia tenha chegado lá também. Ainda que o sol brilhe forte e eu sinta ele aquecendo a minha pele, eu ainda sinto o mundo cinza, ainda sinto vontade de simplesmente desaparecer por aí, sem rumo.

Sinto que caminho num deserto, perseguindo uma miragem de sombra, e quando finalmente chego na sombra eu desejo a luminosidade de novo... Isso porque não sei o que eu procuro de verdade. 

Convicção paradoxal. Abraço apertado. Sonhos. Saudades. Ansiedade. Ilusões. 

Sonho com os amplexos do amado, com os beijos apaixonados, ao mesmo tempo que fujo de me aproximar dos outros, que nego qualquer sentimento, que sufoco tudo o que parece que pode tornar-se mais do que uma simples afeição. Não quero paixão, não quero fogo, não quero ser consumido por meus sentimentos de novo. 

Paro por alguns instantes, e me sobra apenas silêncio. Elevo os olhos e vejo que já é noite, a brisa fria sopra, e eu continuo lidando com pensamentos que fluem como num riacho, mesmo que não sejam violentos eles não param um instante sequer.

Eu já não acredito que algo possa mudar ou acontecer. Um cara bonito passou por mim durante a missa, trocamos olhares rápidos, mas eu logo virei o rosto e continuei meu caminho. Já não me restou esperança, admiro quem ainda tenta e me entristeço ao ver as pessoas entrarem em desespero por causa da dessa mesma esperança. 

Não consegui extrair mais nada do silêncio, se eu fecho meus olhos sinto apenas uma profunda desesperança, uma longa estrada vazia que leva a lugar nenhum. E eu já estou cansado de caminhar. 

Mesmo depois de um longo dia, de toques, de olhares, eu sou jogado num mar de águas geladas, ante a verdade da minha solidão. E então, em meio a sorrisos eu me recordo das palavras que escrevi na pele: E tudo retorna ao nada! E por isso me lembro que meu destino final é a solidão eterna, o vazio, o silêncio de um oceano imenso que eu nunca poderei abarcar e que me engole, me envolve e me lança para suas águas profundas. 

Como no prelúdio de Tristão e Isolda a onda vem lentamente engolindo tudo por onde quer que passe, e depois resta apenas o silêncio, antes que a onda fique ainda maior e destrua tudo. 

E na escuridão abissal eu vejo que de nada adiantou as minhas noites sem dormir, as minhas preocupações, os meus anseios mais profundos, foi tudo em vão. Na escuridão eu busco a quem minha alma clama e não obtenho resposta. 

No silêncio da cruz ao cair da hora terça eu percebo que as minhas perguntas é que estavam erradas e que eu não preciso de outras respostas, tudo já está consumado. Mesmo que ao suspiro caia sobre a terra grande escuridão a resposta ainda permanece lá, e eu é que finjo não ver quando ela se ergue diante de meus olhos e dos olhos de todos. A verdade sempre esteve lá e eu sabia, sabia e fingia não saber. 

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Cidade Bêbada

É sexta a noite, a cidade inteira está bêbada, e eu preciso de um dose de whisky. A carência me bateu forte hoje, e tudo o que eu consigo desejar é um peito largo onde eu possa deitar a minha cabeça e dormir, e braços fortes para me abraçar. É tudo o que eu queria, sem precisar de mais nada, poderíamos apenas ficar em silêncio, ou ouvindo alguma música, mas eu não queria estar sozinho assim. 

Estendo meu braço e sinto a cama parecer maior do que de costume, está frio, a música baixinha no player parece me deixar ainda mais triste, talvez eu não devesse ter escolhido uma playlist tão romântica. 

Por outro lado eu deixo a minha mente vagar brevemente, pensar num futuro possível onde encontro alguém, e sou de imediato tomado por um medo de me entregar mais uma vez. Toda vez que me aproximo de alguém eu tento fazer essa pessoa me amar, eu tento fazer ela se encaixar na minha vida e, quando ela vai embora, eu fico chateado e quebrado, e isso já aconteceu dezenas de vezes, eu já perdi a conta de quantas pessoas foram embora, quantas despedidas sem explicação, quantos abraços apertados se tornaram olhares de desprezo, quantas conversas noite a dentro se transformaram num contato qualquer sem nenhuma relação. 

É sexta a noite, e jovens passam rindo na rua, a luz amarela dos postes preguiçosamente ilumina os jardins, os únicos além de mim a estarem quietos nessa noite. 

Onde estará aquela pessoa a essa hora? Será que eu passo por seu pensamento entre um copo e outro de chopp? Eu acho que não. Sou o único que está pensando no passado nessa noite. 

Preciso acordar cedo amanhã e arrumar algumas coisas, mas de repente me veio a vontade de não fazer mais nada, e assim eu vou me entregando lentamente ao torpor, fechando os olhos enquanto a escuridão invade meu coração, enquanto meus sentidos vão desaparecendo, enquanto a música vai se perdendo como se eu estivesse afundando no oceano e já não conseguisse mais ver a luz da superfície. E assim eu vou mais uma vez entrando em depressão, aos poucos vendo tudo perdendo seu contorno, aos poucos sentindo que eu mesmo já vou deixando de ser, apenas para existir sem forma, apenas uma massa de saudades e carência, braços apertos que se desfizeram como fumaça, um amor que nunca foi correspondido e que foi levado com o vento. 

domingo, 12 de junho de 2022

Vida e Futuro

Inevitavelmente pensativo sobre o futuro, diante de uma mudança tão drástica se aproximando cada vez mais. Tive alguns sonhos incômodos essa noite, onde eu precisava correr desesperado para alcançar alguma coisa que eu não sabia o que era mas que fugia de mim e eu a perseguia em desespero. Talvez seja uma imagem do sentimento que vem dominando silenciosamente nas últimas semanas, o de que eu preciso finalmente começar a correr atrás de um futuro, de algo, de um objetivo, e me despertar da letargia em que me encontro. 

Isso provoca em mim ânsias suicidas, não posso deixar de falar sobre isso, porque quanto mais eu penso no que deverei fazer, no quanto preciso lutar para ser alguém, e no longo caminho que eu preciso percorrer, não importando qual caminho escolha, eu me sinto tão sufocado, tão desesperado que minha reação mais imediata é a de me atirar de uma ponte, sentindo o ar passando rápido pelo meu rosto como quem se lança rumo ao infinito. 

Infelizmente eu não posso fazer isso, por motivos que eu não consigo explicar mas que podem se condensar, embora não se resumam apenas a isso, a covardia, ao medo de provocar dor a quem eu amo. Mas talvez eu apenas use isso como desculpa para não fazer. 

Por outro lado a realidade patente que eu enxergo cada vez que fecho os olhos e me foco no que há no meu núcleo, é apenas uma vontade, um desejo profundo e sincero de desaparecer, não de morrer e ser lançado no inferno, não, mas de voltar ao nada, de nunca ter existido, de simplesmente desaparecer como um pequeno grão de poeira no vento. Infelizmente eu também sei que isso é impossível. Aquilo que entrou no ser por um instante que seja jamais retorna ao nada, meu futuro está traçado para sempre, e eu só consigo pensar no quanto eu deveria me alegrar pelo presente da existência, mas como eu me sinto profundissimamente infeliz com ela, ao acordar e abrir os olhos em cada manhã eu não vejo a beleza de um sol que brilha iluminando a tudo e trazendo cor a um mundo até então envolto em trevas, não, eu vejo apenas o início de mais um dia terrível. 

Já prevejo trabalhar num emprego medíocre, com chefes imbecis me dando ordens absurdas como foi no último colégio em que trabalhei. Não vislumbro nenhum tipo de glória intelectual em ensinar coisas a pessoas que não querem aprender. Não que acredite que exista alguma glória intelectual, todo trabalho de ir de encontro com a verdade é um trabalho em vista de uma vida futura, e essa expectativa futura é a única coisa que ainda me obriga a levantar todos os dias. É como diz a música "nada pode me encantar na terra, a verdadeira felicidade não se encontra aqui" e por isso para onde quer que eu olhe eu só vejo desolação. E bem sei que isso soa como se eu tivesse aderido ao gnosticiscmo, mas não é algo que decidi acreditar, é apenas uma experiência da qual eu não consigo fugir, eu não acho bela essa visão de mundo, de um mundo caído que precisa ser destruído, pelo contrário, eu acho desesperadora, e é esse desespero que vem me dominando. 

Queria poder dormir, por um longo tempo, e acordar sem essa sensação ruim, mas também sei que isso não é possível. Só resta enfrentar a realidade de frente, lamentavelmente lutar, para viver cada dia, mesmo que cada fibra do meu ser deseje simplesmente que não houvesse vida alguma. 

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Resenha - Dear Doctor, I'm Coming for Soul

Contém SPOILERS!

Depois de 6 anos do lançamento do clássico, e trágico, Grey Rainbow, Nut e Karn retornam como interesse amoroso em Dear Doctor, I'm Coming for Soul numa produção do Studio WabiSabi que prometeu muitas emoções e um romance que deve ser mais forte que a vida e a morte.

Prakan (Nut Nutchapon) é um médico cirurgião extremamente dedicado que constantemente recebe a visita de Tua Phee (Karn Kasidej), um ceifador de almas que parece estar sempre por perto quando algum paciente está em estado grave. Com isso Prakan desperta uma espécie de rivalidade com o outro, que permanece impassível em sua missão e, por alguma razão, parece querer estar sempre próximo do médico, inclusive alugando uma casa em frente a dele.


A princípio o médico rejeita a presença do outro, que tenta se aproximar amistosamente. Além disso Prakan está competindo com seu primo, o orgulhoso Metha (Yacht Patsit, de Love By Chance) pelo cargo de chefe da cirurgia, e por isso ele não pode perder nenhum paciente, ao passo que a presença de Tua Phee claramente ameaça esse objetivo. 

Os dois, no entanto, compartilham uma forte ligação que é explicada mais tarde na história e inevitavelmente acabam se aproximando, até que o que antes era apenas uma rivalidade sobrenatural se torna algo ainda mais forte. Mas ambos são de mundos diferentes e isso pode tornar as cosias ainda mais difíceis para eles. 

A história gira então do dilema de Prakan em querer salvar seus pacientes, tornar-se o chefe da cirurgia para melhorar o hospital de sua família e sua conturbada relação com o ceifeiro que, embora seja seu inimigo natural, insiste em ser amigável, atraindo-o. 

O desenvolvimento é muito bem feito e o dilema do protagonista é mostrado com muita força em vários momentos. Prakan realmente se preocupa com todos os seus pacientes, mas ele não consegue ficar longe de Tua Phee e isso significa que ele precisa se conformar em ver as pessoas partirem, mesmo quando ele faz de tudo para salvá-las, levando-o quase ao desespero.

Tua Phee lida com seus próprios problemas, apaixonado por um humano ele precisa tomar cuidado para não quebrar as regras do submundo e revelar a Prakan segredos dos ceifadores de almas, ao mesmo tempo em que nos é revelado que ele apenas aceitou esse trabalho para poder ficar ao lado do outro. Ele vive então de frente com a dolorosa verdade de que ambos são de mundos diferentes e que isso inevitavelmente vai acarretar em dor mais cedo ou mais tarde. 

Essa tensão permeia todos os episódios da temporada, e só é amenizada em alguns momentos em que eles conseguem se entender e passam a agir como um casal, aceitando seus sentimentos e as consequências de um relacionamento tão complicado. Aliás, assim como em Grey Rainbow mas agora ainda mais maduros, Nut e Karn tem muita química juntos e protagonizaram cenas maravilhosas, seja de drama intenso até cenas fofinhas ou mais quentes. 

Também indo na contramão de muitas produções onde apenas os protagonistas recebem atenção, a maior parte dos personagens ganha uma boa profundidade nos seus sentimentos, mostrando que todos têm um motivo para serem como são. Isso pode ser visto com o casal secundário, onde Kheeta (Pat Chatburirak, de My Ride) um doce enfermeiro apaixonado por Prakan acaba se aproximando de Nathee (Tae Weerapat) um arrogante residente que se junta a equipe de Metha e tenta usar o enfermeiro para descobrir as fraquezas da equipe rival. 

Apresentando uma história diferente, onde a ação se passa num hospital e não em escolas ou universidades, Dear Doctor inova com um roteiro interessante, uma boa direção e personagens cativantes e complexos, o que resulta numa série ótima para quem quer fugir dos BLs clichês mas não abre mão de um bom romance. Destaque para a ost principal, cantada pelo já conhecido Boy Sompob, fenomenal. 

Nota: 09/10

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Da mentira

Meu ser encontra-se em ruínas. Não só não consegui dormir nada essa noite, ficando afetado pela falta de sono logo em seguida, como as brigas começaram cedo e pelos mesmos motivos de sempre: a infidelidade fruto da tendência do coração do homem para a malícia. 

Desde cedo somos tentados a tudo aquilo que mais nos aproxima do abismo, nossa vida é, ao chegar até certa idade, como dois opostos, estamos no fundo do poço a olhar o céu, para recordar as palavras de Fernando Pessoa. Nessa dicotomia estamos fadados a um terrível destino caso não aceitemos nos abrir ao que é verdadeiramente bom e busquemos a verdade com sinceridade de coração. 

Mas a mentira nos seduz, nos dá a falsa sensação de controle e poder, ela nos conforta em seus tentáculos ao passo que a verdade constantemente nos desinstala e nos faz buscá-la. A mentira é então abrigo para as almas covardes, que preferem a traição a aceitar aquilo que a realidade dita ante nossos olhos. 

E então nós, por escolha própria movida pelo medo da realidade, preferimos fechar os nossos olhos, e acusar o outro, de ser louco, quando nós é que resolvemos entrar na neurose de acreditar apenas naquilo que nossa própria mente cria, e então mergulhamos nesse mundo fruto da nossa imaginação, onde somos perfeitos, ou onde somos apenas vítimas de impulsos incoercíveis que, na realidade, nós não queremos enfrentar. 

Daí caímos cada vez mais em vícios, o pecado torna-se nossa morada, lançamos a alma no lodaçal malcheiroso e fingimos viver entre canteiros de rosas perfumadas, sem nos darmos conta de que estamos respirando puro veneno. 

A verdade é que estamos cegos, presos, e nós mesmos nos acorrentamos no interior dessa caverna e nos recusamos a ver a luz, nos recusamos a enxergar a verdade que está bem a nossa frente. 

Os humanos são realmente dignos de pena. 

"Estou começando a me convencer que não existo. Eu sou o espaço entre o que eu gostaria de ser o que os outros fizeram de mim. Apenas deixe-me estar à vontade e sozinho no meu quarto."
 (Fernando Pessoa)

Tenho tido cada vez mais dificuldade para encontrar palavras para vestir os meus pensamentos porque eles encontram cada vez mais tal grau de abstração que eu não consigo encontrar os correspondentes no mundo daquilo que posso dizer. Isso me preocupa pois pode significar que me encontro cada vez mais distante da realidade. Será que perdi, ou alguma vez a tive, a capacidade de enxergar as coisas como elas são e de enunciar o que vejo? O quanto me deixei ser impregnado pelo espírito de mentira que me cerca e que sei que também está em mim pela minha tendência ao pecado? 

Quero me reinstalar na realidade, enxergar e enunciar as coisas como elas são, por mais que isso incomode. Não quero criar mentiras na minha mente e me afogar nelas, quero apenas estar no mundo, sem perder a perspectiva da eternidade que a tudo transforma seu valor, e assim me juntar aqueles quem apenas em função da mentira. 

O que me preocupa é o bombardeamento de informações em doses homeopáticas que nos faz ter uma visão muito superficial do que acontece, seja lá qual for o assunto em questão. É preciso resgatar a capacidade de olhar os objetos com mais atenção, ter o critério dialético de ver a realidade através de prismas diversos que, sendo aparentemente contraditórios, revelam a complexidade do tecido da existência. Mas essa complexidade é tanta que é mais fácil nos refugiarmos nas mentiras que criamos. Assim fugimos das discussões, fugimos do esforço, ao passo que estamos ocupado com um volume absurdo de informações inúteis, ou até úteis, mas em volume tal que nenhuma mente consegue abarcar, ninguém consegue organizar, porque elas estão desconexas entre si que a sensação que resta é apenas a confusão geral, a ascensão do Império da Confusão e da Mentira. 

terça-feira, 7 de junho de 2022

Do passado

Não sei bem como começar a escrever hoje porque trata-se de algo, penso eu, de muita intimidade referente a uma outra pessoa, no entanto, como observador eu não posso deixar de registrar a força que essa experiência deixou em mim. Talvez eu demore a publicar esse texto para que, mesmo que na remota possibilidade de algum conhecido ler, não envergonhe quem dele se trata.

Hoje foi o aniversário de meu pai, completando seus 64 anos. Como eu demorei para voltar para casa ontem eu acabei acordando mais tarde que o habitual, e um pouco assustado com o barulho de conversas, já que a janela do meu quarto fica na parte de frente da casa. Quando eu finalmente saí percebi que minha irmã tinha trago alguns amigos e que eles e minha família estavam sentados e jogando dominó enquanto conversavam e bebiam. Como eu não sou muito sociável nos primeiros momentos após acordar eu fui quieto assistir alguns episódios de série na sala e pouco depois comecei a beber também, mas ainda sozinho. 

Almoçamos juntos, tiramos fotos e eles jogaram mais um pouco, animados pela bebida, pela companhia e pela música. Já faz algum desde que vejo as coisas alegres aqui em casa desse jeito. Logo mais a tarde as visitas foram embora, minha irmã com elas, e ficamos apenas meus pais e eu em casa. E lá pelas dezesseis horas um episódio curioso aconteceu. 

Meu pai quando bebe, o que não acontece com muita frequência mas quando acontece é com uma intensidade singular, e quando ele o faz acaba ficando falante, e ele gosta de falar alto, o que entra em conflito com meu jeito mais introspectivo. Então eu resolvi ficar quieto no meu quarto ouvindo música. Ele, sentado na varanda, resolveu então ligar para seus irmãos, e fez umas quatro ou cinco ligações.

Com cada pessoa que ele falava ele se expressava com aquele jeito alegre de quem exagerou um pouco no álcool, troca de assunto com facilidade e diz coisas um tanto quanto sem necessidade. Mas enfim, ele ligou para várias pessoas, contou histórias, citou que vamos nos mudas, prometeu visitar os parentes antes de ir embora e, em todas as conversas, lembrou os irmãos de que hoje era seu aniversário, com um galanteio meio exagerado, bastante afetado e até um pouco engraçado. 

Eu fiquei então inquieto vendo ele fazer isso, eu que sempre torço para que ninguém lembre do meu aniversário e escondo a data sempre que posso. Ele, por outro lado, fez questão de lembrar a todos, e o fez brincando. 

Mas, por trás das brincadeiras eu percebi algo. Ele fez isso porque se sentiu chateado, por um dia ter sido tão próximo de seus irmãos e primos, crescendo numa daquelas famílias tradicionais bem numerosas onde todo domingo era praticamente um evento social e hoje, afastado da maioria deles não se lembraram nem mesmo de mandar uma mensagem. Eu pude sentir, mesmo por trás da voz alta e piadista, que ele na verdade estava cobrando dos outros que se reaproximassem, e isso por vários motivos mas, em especial, pelo avanço da idade que acaba gerando nela uma insegurança quanto ao futuro.

É estranho ver um homem como ele, que levanta de madrugada todos os dias, mostrando um lado vulnerável assim. Senti na voz dele a saudade dos irmãos, das conversas da infância sofrida no interior, do contato que foi perdido pelo tempo. 

Fiquei quieto no meu quarto, e só saí quando ele foi dormir, mais cedo que de costume por causa da bebida. Mas isso ficou marcado em mim, ele praticamente implorando pela atenção das pessoas que ama, e mesmo sorrindo era um sorriso triste, uma máscara, que ele deixou cair sem nem perceber. 

Ele continuou falando com eles, por longos minutos, e o sol começou a se pôr, e eu sei que naquelas palavras ele ia mentalizando o laranja do céu e com ele as lembranças desses anos de vida. Talvez a sua infância difícil, a sua vinda solitária para a cidade, a primeira família, a morte da mãe, a segunda família...

Não pude deixar de me lembrar da letra da música de Oswaldo Montenegro "faça uma lista de grandes amigos, quem você mais via há dez anos atrás, quantos você ainda vê todo dia e quantos você já não encontra mais?" E então pensei, em quanta coisa ele pode ter vivido nesses 64 anos, e como deve ser seu exame de consciência ao chegar nessa idade? Quanta dor, quanto sofrimento suportado, quanta luta pela família... Enfim, quanta experiência aquelas palavras carregavam? Claro que eu só pude captar uma fração do que elas continham, mas ainda assim foi o suficiente para me deixar calado e quieto, ouvindo atentamente, e impressionado com o que estava acontecendo. 

segunda-feira, 6 de junho de 2022

Resenha - La Cuisine

Contém SPOILERS!

Já disse algumas vezes que em meio a tantos lançamentos algumas histórias ficam ofuscadas, principalmente aquelas que não têm um chamativo muito forte, como plots que causam algum desconforto ou discussões na fandom dos BLs, e foi isso que aconteceu com essa série que, apostando num romance doce, acabou não chamando tanta atenção assim, mas que merece um pouco de reconhecimento.

La Cuisine conta a história de Lukchup (Mick Monthon), um estudante de Nutrição com bochechas fofinhas e que é apaixonado por Ram (Pop Pattarapol) um veterano popular do curso de Arquitetura, mas não tem coragem de se aproximar dele. Um dia porém é Ram quem acaba se aproximando para experimentar a comida dos estudantes de Nutrição e, sendo exigente com comida, ele gosta do prato dos meninos e finalmente Lukchup tem a oportunidade de ser notado, já que ele passa a fazer o almoço do veterano por alguns dias. E então conforme eles vão se aproximando Ram percebe os sentimentos do outro e os próprios sentimentos surgirem, e aí começamos a nossa aventura. 

Lukchup tem um grupo de amigos que o ajuda a ter mais coragem e atitude para com Ram, e o veterano assume uma posição protetora para com o pequeno cozinheiro, já que por sua popularidade a amizade e aproximação de ambos não foi bem vista nos corredores da universidade e despertou os ciúmes de Namning (Brownie Supassara), amiga de Ram e apaixonada por ele, que vai fazer de tudo para tentar separar os dois. 

A série traz então muitas cenas fofas e delicadas, mostrando a aproximação dos dois protagonistas. Lukchup é extremamente tímido e fica corado por qualquer coisa, ao passo que Ram mesmo sendo popular é bem desencanado e um cara até simples, que só quer aproveitar a companhia dos amigos e que acaba se afeiçoando ao doce Lukchup que se aproximou dele oferecendo sobremesas. Boa parte do início da temporada gira em torno dos pratos que ele prepara pro veterano e de como eles acabam por aproximar os dois, não é exagero dizer que ele fisgou o boy pela boca. 

A parte tensa da história (que não poderia deixar de ter não é mesmo?) começa quando comentários maldosos sobre a amizade deles começa a surgir em páginas a universidade, e vai piorando a medida que eles se aproximam ainda mais. Daí entra em cena Lukchin (Daisuke Tsukikawa), irmão mais velho de Lukchup, que intervém preocupado com o seu irmão mas acaba gerando ainda outros desentendimentos, já que ele é um ator famoso e ninguém sabe do seu irmão, fazendo com que as pessoas comecem a falar que Lukchup está enganando ambos, o ator famoso e o filho de um grande empresário. Ele é sensível e acaba se machucando muito, tanto com os comentários quanto com as pessoas que o confrontam diretamente, e um pouco do amadurecimento dele, enquanto Ram mostra seu lado protetor e preocupado. 

Mesmo com a parte dramática sendo até bem construída no arco final da temporada a série tem um ritmo bem tranquilo e os protagonistas vão se aproximando aos poucos, e é bonito de se ver como a relação deles vai se tornando mais e mais forte. Lukchup não consegue esconder seus sentimentos e Ram não pensa duas vezes em ir atrás dele quando percebe que o que ele sentia também mudou. Apesar do drama não ser ruim o arco da Namning não consegue prender tanto e o argumento usado não convence, e o espectador fica com a impressão de que ela é só desequilibrada mesmo.

Outra coisa bonita também é a amizade que é mostrada, sejam os amigos de Lukchup, ou os populares amigos de Ram, que sempre apoiam uns aos outros e ficam do lado deles em todos os momentos difíceis. Meu destaque aqui vai para o Paitong (Boom Panathon), que se mostrou tão preocupado com o amigo a ponto de todos acharem que ele gostava dele romanticamente, e mesmo assim ele não se importou com os comentários e continuou ao lado do outro O que podia ser também uma possível rivalidade entre Ram e Lukchin também se torna uma bela parceria com o objetivo de proteger o garoto que os dois amam. 

Entregaram um relacionamento lindo, onde a confiança e a preocupação falou mais alto. Não houveram desconfianças e nem brigas infantis, aliás nem houveram brigas entre os protagonistas, o que já é um diferencial nas séries onde sempre tem confusão por causa de falta de diálogo. Ram e Lukchup ficaram lado a lado o tempo todo e se apoiaram nas dificuldades, superando juntos e ficando juntos, como deve ser. 

Com uma história fofinha, e que tem um drama moderado no final, La Cuisine traz uma história simples e doce que cativa pelo carisma, especialmente do fofíssimo Mick, e conquista pela leveza com que aborda até alguns temas mais complexos conforme a trama avança, mas sem se aprofundar muito, resultando numa temporada gostosa e divertida de acompanhar mas sem grandes reviravoltas ou emoções. Deixa o coração quentinho, te abraça e diz que vai ficar tudo bem.

Nota: 07/10