sábado, 18 de junho de 2022

Cicatriz de Amor


Por que, pois, hás chagado
Este meu coração, e não o saraste?
E, já que mo hás roubado,
Por que assim o deixaste
E não tomas o roubo que roubaste?
(São João da Cruz)

Eu tentei ignorar a profundidade dos seus olhos da cor do oceano, tão profundos quanto, mesmo quando eles me convidavam a mergulhar com tudo dentro de você. Foi aí que eu virei o rosto, olhei para qualquer outra coisa, um estranho que passava na rua, as folhas verdes das plantas ao meu lado, isso porque eu sabia, eu sabia que se olhasse no fundo dos seus olhos aqueles cristalina fonte iria me fazer querer beber daquela água, e há muito eu decidi que não iria mais pousar nessa armadilha. 

Ainda lembro do que passou, do quanto eu sofri, e mesmo que as cicatrizes do meu braço já tenham quase desaparecido, as do meu coração ainda permanecem claras, me mostrando qual caminho não tomar novamente, me ensinando a nunca mais colocar alguém naquele lugar, alto e inacessível, donde eu só poderia me humilhar para ser visto e notado.

E acho que nunca mais vou conseguir sentir aquilo de novo, aquele medo, aquele sentimento tão poderoso que me consumia, sufocava, aquilo não era amor, nunca foi, era obsessão, era um corrente incandescente ligadas aos meus ossos que me fazia sentir dor e que injetava pavor em mim até o tutano. Isso porque eu tentava ser alguém que eu nunca poderia ser, eu queria me encaixar num lugar que não era meu, eu queria ser o que eu nunca poderei ser, e isso me machucava, como se milhares de agulhas perfurassem o meu corpo repetidas vezes, como se uma carga elétrica passasse pelos meus músculos e me fizessem contorcer de dor ao perceber que, não importa o quanto eu tentasse ou o quão intensos eram meus sentimentos, eles nunca iriam alcançar quem eu queria.

E isso não mudou, eu ainda não consigo tocar o coração de ninguém, por mais que se multipliquem as minhas palavras. Cada um só quer ouvir palavras de amor daqueles que eles amam, estranhos não penetram no escudo que eles mesmos criaram ao redor de si, consciências não se tocam. Quem tem o coração ferido não quer consolo senão daquele que o feriu. Eu não sou, e nem nunca serei, aquele de quem os outros querem que venha consolo. Eu sou apenas um incômodo. 

E felizes são aquelas que são amadas e podem se dar ao luxo de rejeitar os seus amados. Mais felizes ainda aquelas que repousam a cabeça no colo daqueles que tanto as amam. 

Os versos de São João da Cruz são aqui mais poderosos em expressar essa realidade do que mil palavras que eu possa escrever. Só o que me resta então é meditar esses versos, e quem sabe neles encontrar algo que possa me apontar como agir nessa situação. 

Espero realmente que aquilo nunca se repita, que esse colosso tenha sido demolido de uma vez por todas e que jamais torne a imperar por sobre os muros da minha cidadela. 

"Olha que esta doença
De amor jamais se cura,
A não ser com a presença e com a figura."
(São João da Cruz)

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