sexta-feira, 17 de junho de 2022

Água e Fogo

Já sentiu como se seu coração fosse crescendo dentro do seu peito a ponto de quase não caber mais dentro de si? Já sentiu como se ele fosse se aquecendo pouco a pouco até que todo seu ser se consuma como numa fornalha ardente? 

Os gritos da minha alma se silenciam quando eu tento colocar para fora, quando eu me coloco de frente para uma tela em branco e me possibilito esboçar tudo que há de mais profundo no meu ser, muitas vezes só o que resta é o silêncio. E então eu preciso fazer um imenso esforço para conseguir retirar algo desse meu interior, para conseguir algo das águas profundas da minha própria existência. 

E eu nem pensei em começar a falar já me comparando a uma fornalha ardente e a água profunda, essa perspectiva simplesmente surgiu. Como fogo eu me transformo e como a água eu sinto a potência criadora, o princípio da vida, a cura, a sua capacidade limpar, purificar. Ambos me fazem pensar Naquele que tudo fez, mas também me fazem pensar na minha própria pequenez, e em como meu amor se inflama e como ele às vezes é como a água, calma e tranquila num ponto e mortalmente feroz e indestrutível logo em seguida, turbulente, sem limites. Como fogo que converte tudo em fogo meu amor muitas vezes transforma tudo o que tenho em amor, e como a água dele brota a vida, dela nasce e renascem os heróis, esperançosa numa pequena planta que cresce em direção ao céu. 

Como fogo eu também sinto-me incendiar toda a floresta, me entregar completamente ao consumo e a destruição, levando o caos e o horror a cada fibra do meu corpo. Mas é também numa noite escuro que às vezes um calor leve aquece meu coração da frialdade inorgânica que me cerca.

Mas sobre o quê eu estou falando? Parece que não estou me referindo a nada e que apenas estou lançando palavras ao vento, mas isso não é verdade, é que só assim eu consigo exprimir um pouco do que eu sinto, só assim eu consigo descrever, mesmo que as apalpadelas, o que eu sinto quando penso nele, quando me vejo sozinho no quarto a noite, quando me desanimo de viver um dia e me encho de remédios para dormir e apago durante a tarde inteira. 

Em dias assim eu simplesmente não quero ver nada e nem ninguém. Em dias assim eu me vejo prisioneiro das telas que me apresentam imagens e mais imagens, que me bombardeiam com informação demais e sabedoria de menos, que me deixa cada vez mais sedento de conhecer justamente porque quanto mais ela me mostra menos ela demonstra. 

E as pessoas se alucinam, algumas acreditando em qualquer idiota que fale bonito sobre coisas que parecem boas e justas mas que, no fundo, não significam nada. Outras se apegam a métodos como se fossem uma tábua de salvação, e ninguém adite estar perdido. Ao admitir que toda essa confusão me deixa perdido eu já estou mais orientado que todos eles: eu reconheço que preciso de um caminho a seguir que conduza a verdade, e sei que é um caminho difícil, agrestes escarpados, mas isso é melhor do que acreditar ser dono de uma verdade que não existe pelo simples motivo de que se tem medo demais de assumir a própria confusão. 

Somos, e estamos, confusos. Assumir isso é o primeiro passo para elevar os olhos ao Pai e deixar-se guiar por Daonuea, a Estrela do Norte, que nunca some do céu e ajuda aqueles que estão perdidos a tomarem um caminho certo. E pouco a pouco, entre tropeços e caminhos errados vamos aprendendo onde está o caminho certo. Experimentai de tudo e ficai com o que é bom, disse o Apóstolo Paulo, e assim vamos vendo que quase nada das cores e dos barulhos que nos circundam nos oferecem respostas alguma, apenas reações emocionais, e que talvez o que procuramos possa estar naquele livro fechado que não lemos, ou no coração que fechamos para a Verdade. 

E é interessante notar que a Verdade, quando se encarnou, não se apresentou como doutrinas complexas de difícil entendimento, mas o fez como uma pessoa, com os homens conviveu, com eles sentou-se à mesa, bebeu e partiu o pão, chorou quando o amigo próximo morreu e, no alto daquele madeiro, daquela árvore sem igual, experimentou a total solidão da alma. A Verdade se apresentou como homem, mas não um home fechado em si, um homem que transcendia a própria definição de homem, e aquele que estava diante dele, diante da Verdade ainda perguntou "O que é a Verdade?", ele não conseguia enxergar o que estava diante dele com mais clareza que o sol do meio dia, com mais presença do que já havia se apresentado a qualquer outro homem.

E essa Verdade vem como fogo e água, transforma e converte tudo em fogo, muitas vezes reduz tudo às cinzas, mas então vem a água dos céus e dela nasce nova vida. Mas a vida não nasce sozinhas. As árvores de uma floresta crescem juntas, assim também caminhos juntos, nos apoiamos, muitas das vezes ficamos simplesmente em silêncio do lado do outro e tá tudo bem, a companhia diz o que precisamos dizer com mais precisão e profundidade que nossas palavras. 

Crescer juntos é uma realidade que o homem de hoje já não compreende. Já não compreende nem mesmo como alguém pode querer interessar-se tanto pela realidade. Mas crescer junto é caminhar lado a lado, respeitar as limitações do outro, aprender com seus acertos e se aproximar de seu coração. Ter o desejo da eternidade do ser amado, como ensina S. Tomás. É apoiar a cabeça no peito do mestre como o Discípulo Amado, mesmo que os outros não entendam a pureza por trás desse ato. 

E ainda assim é estar suscetível a traição, ao beijo de Judas, como também já me aconteceu. Mas que isso não signifique que, por alguém ter optado abandonar a Verdade, que ela tenha desaparecido, ela continua aqui, e continua a nos atrair, de forma claramente sobrenatural, fazendo-nos elevar os olhos ao céu e, dentro de uma igreja ver a figura de um pobre crucificado, solitário, mas que ainda em sua imensa força de Deus que se fez homem, continua pedindo por nós e se alegrando porque vai encontrar alguns dos seus no Paraíso naquele mesmo dia. 

Ele como fogo transforma e como a água traz a vida, o que é velho cede o novo em tão ínfimos sinais. E esse fogo queima, e a água limpa, todo pecado, toda bestialidade, todo desejo de entregar-se aos prazeres mais absurdos, é dos pecados vestígios algum enxergar, ao fogo divino um a um são apagados e então, finalmente, podemos cantar ao sair desse mundo "Eu morro de amor."

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