quinta-feira, 30 de junho de 2022

Eu e minha circunstância

"As raposas têm tocas e os pássaros têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça." (Lc 9, 58)

Já comecei outra reflexão partindo desse versículo, e me envergonho de rebaixar tanto algo tão valioso para tratar de uma experiência humana tão pequena, mas como é a referência literária que me ocorre no momento eu não posso me furtar a isso apenas por uma tal vaidade religiosa, afinal, eu encontrei nessas palavras um reflexo de algo que senti, muito embora esse não seja o sentido da mensagem original contida nelas.

Acontece que, quando no banco da igreja eu ouvi essas palavras durante a Missa, elas ficaram gravadas no meu peito e, agora, que a experiência humana se apresentou, elas reverberaram novamente nas profundezas do meu Eu. 

Quando penso então nessas palavras eu sinto algo da minha experiência da solidão, do abandono, daquele que caminha sem rumo, sem ter onde se recostar, que não tem ninguém a quem recorrer. E assim, tantas vezes, me sinto. Olho ao meu redor e vejo que a luxuriosa realidade que me cerca não responde aos meus anseios, e o meu ardente coração inflamado de amor tampouco encontra par nesse mundo. Me vejo como águia a voar solitária o alto céu, mas sem encontrar parceiro que possa me acompanhar pelo resto da vida. Até os animais vivem com seus parceiros, até eles que vivem apenas por seus apetites mais bestiais, e eu, que supostamente deveria possuir a alma superior, a vontade, não consigo encontrar nesse mundo companhia que possa caminhar ao meu lado.

Isso se reflete em algumas coisas que considero de grande baixeza, como o sentimento de carência afetiva e o ciúmes, o medo de perder aquilo que eu mesmo sei bem que não me pertence e sob o qual eu não tenho nenhum direito. Mas ainda assim, em momentos como esse, eu fecho os olhos e vejo todos me deixando porque encontraram as pessoas a quem devem acompanhar, e eu percebo que preciso, urgentemente, aprender a me resignar com meu estado de solidão, e de me contentar em ter contato apenas com aqueles que leio, que viveram em outras épocas e que chegaram até mim de algum modo, eu preciso aprender a ser só. 

Preciso aprender a não esperar mais, a não procurar mais, a não desejar afeto e não ver afeto onde não há, preciso aprender a caminhar e olhar a paisagem sozinho, e a guardar no coração as palavras que gostaria de dizer a alguém. Ninguém vai ouvi-las, eu sou espécie única, não especialíssima, mas um erro, algo que não saiu como deveria ser e que por isso não consegue se conectar a ninguém, porque ninguém é capaz de compreender e eu, que deveria então compreender o outro, mesmo tentando fazê-lo, acabo por sempre afastar ou simplesmente sozinho. Eu não sou a pessoa que as pessoas se lembram numa madrugada de sexta, numa roda de amigos e chopp e pensam que queriam a minha companhia. As pessoas pensam em mim quando precisam tirar uma dúvida, quando esperam que eu tenha respostas para as suas perguntas mesmo eu estando em busca das respostas para as minhas perguntas. 

Preciso ser sozinho, preciso reverberar no meu ser as palavras que dizem que "nada pode me encantar na terra, a verdadeira felicidade não se encontra aqui" e assim entender, de uma vez por todas, que eu não vou encontrar alguém e, mais ainda, não vou encontrar o sentido da minha vida em estar com alguém. Eu sou eu e minha circunstância, eu e apenas eu. Não consigo me separar do ambiente em que vivo, da realidade ao meu redor, e exatamente por isso eu preciso mudar o que está ao meu redor e, quem sabe assim consiga alcançar e transformar aquilo que está no meu núcleo.

"Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo a ela, não me salvo a mim" (Ortega y Gasset)

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