terça-feira, 7 de junho de 2022

Do passado

Não sei bem como começar a escrever hoje porque trata-se de algo, penso eu, de muita intimidade referente a uma outra pessoa, no entanto, como observador eu não posso deixar de registrar a força que essa experiência deixou em mim. Talvez eu demore a publicar esse texto para que, mesmo que na remota possibilidade de algum conhecido ler, não envergonhe quem dele se trata.

Hoje foi o aniversário de meu pai, completando seus 64 anos. Como eu demorei para voltar para casa ontem eu acabei acordando mais tarde que o habitual, e um pouco assustado com o barulho de conversas, já que a janela do meu quarto fica na parte de frente da casa. Quando eu finalmente saí percebi que minha irmã tinha trago alguns amigos e que eles e minha família estavam sentados e jogando dominó enquanto conversavam e bebiam. Como eu não sou muito sociável nos primeiros momentos após acordar eu fui quieto assistir alguns episódios de série na sala e pouco depois comecei a beber também, mas ainda sozinho. 

Almoçamos juntos, tiramos fotos e eles jogaram mais um pouco, animados pela bebida, pela companhia e pela música. Já faz algum desde que vejo as coisas alegres aqui em casa desse jeito. Logo mais a tarde as visitas foram embora, minha irmã com elas, e ficamos apenas meus pais e eu em casa. E lá pelas dezesseis horas um episódio curioso aconteceu. 

Meu pai quando bebe, o que não acontece com muita frequência mas quando acontece é com uma intensidade singular, e quando ele o faz acaba ficando falante, e ele gosta de falar alto, o que entra em conflito com meu jeito mais introspectivo. Então eu resolvi ficar quieto no meu quarto ouvindo música. Ele, sentado na varanda, resolveu então ligar para seus irmãos, e fez umas quatro ou cinco ligações.

Com cada pessoa que ele falava ele se expressava com aquele jeito alegre de quem exagerou um pouco no álcool, troca de assunto com facilidade e diz coisas um tanto quanto sem necessidade. Mas enfim, ele ligou para várias pessoas, contou histórias, citou que vamos nos mudas, prometeu visitar os parentes antes de ir embora e, em todas as conversas, lembrou os irmãos de que hoje era seu aniversário, com um galanteio meio exagerado, bastante afetado e até um pouco engraçado. 

Eu fiquei então inquieto vendo ele fazer isso, eu que sempre torço para que ninguém lembre do meu aniversário e escondo a data sempre que posso. Ele, por outro lado, fez questão de lembrar a todos, e o fez brincando. 

Mas, por trás das brincadeiras eu percebi algo. Ele fez isso porque se sentiu chateado, por um dia ter sido tão próximo de seus irmãos e primos, crescendo numa daquelas famílias tradicionais bem numerosas onde todo domingo era praticamente um evento social e hoje, afastado da maioria deles não se lembraram nem mesmo de mandar uma mensagem. Eu pude sentir, mesmo por trás da voz alta e piadista, que ele na verdade estava cobrando dos outros que se reaproximassem, e isso por vários motivos mas, em especial, pelo avanço da idade que acaba gerando nela uma insegurança quanto ao futuro.

É estranho ver um homem como ele, que levanta de madrugada todos os dias, mostrando um lado vulnerável assim. Senti na voz dele a saudade dos irmãos, das conversas da infância sofrida no interior, do contato que foi perdido pelo tempo. 

Fiquei quieto no meu quarto, e só saí quando ele foi dormir, mais cedo que de costume por causa da bebida. Mas isso ficou marcado em mim, ele praticamente implorando pela atenção das pessoas que ama, e mesmo sorrindo era um sorriso triste, uma máscara, que ele deixou cair sem nem perceber. 

Ele continuou falando com eles, por longos minutos, e o sol começou a se pôr, e eu sei que naquelas palavras ele ia mentalizando o laranja do céu e com ele as lembranças desses anos de vida. Talvez a sua infância difícil, a sua vinda solitária para a cidade, a primeira família, a morte da mãe, a segunda família...

Não pude deixar de me lembrar da letra da música de Oswaldo Montenegro "faça uma lista de grandes amigos, quem você mais via há dez anos atrás, quantos você ainda vê todo dia e quantos você já não encontra mais?" E então pensei, em quanta coisa ele pode ter vivido nesses 64 anos, e como deve ser seu exame de consciência ao chegar nessa idade? Quanta dor, quanto sofrimento suportado, quanta luta pela família... Enfim, quanta experiência aquelas palavras carregavam? Claro que eu só pude captar uma fração do que elas continham, mas ainda assim foi o suficiente para me deixar calado e quieto, ouvindo atentamente, e impressionado com o que estava acontecendo. 

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