domingo, 30 de abril de 2023

Resenha - Future

Contém spoilers!

Com uma proposta fofinha que acabou surpreendendo com mais drama do que poderíamos imaginar, Future chega para acrescentar mais uma história ao universo de En of Love e Love Mechanics

Fuse (Boom Natthapat, de Love Mechanics) é a lua do curso de Engenharia mas, mesmo sendo um dos mais bonitos do campus ele continua solteiro, enquanto Ana (Bigboom Jirayu) é um veterano de odontologia que é secretamente apaixonado por ele mas nunca teve coragem de se declarar, dizendo que o destino se encarregaria de fazê-los ficar juntos. O destino, no caso os amigos deles, acabam fazendo os dois se encontrarem na clínica do pai de Ana enquanto Fuse está numa crise existencial por ficar no meio do namoro dos amigos, principalmente Mark e Vee e o casal Tossara (Kan e Bar, respectivamente o gatíssimo Jeff NathadejGot Kanidsorn também de Love Mechanics), onde a lua finalmente chama Ana para sair. 

Não demora nada, nada mesmo, até os dois começarem a namorar, e a doçura começa. Os dois são as coisinhas mais fofas, ficam vermelhos por nada e se provocam o tempo todo, e é impossível não ficar com o coração quentinho vendo dois dos atores mais fofos da temporada juntos fazendo boiolice. Mas o que era bom parece não durar tanto assim porque tão logo eles ficam juntos somos apresentados aos problemas de cada um.

E é aí que a história ganha uma camada a mais de profundidade que a gente não esperava. Os dois protagonistas se mostram supreendentemente carentes e inseguros. O que parecia afetação de Fuse ao ver o namoro dos amigos se revela numa insegurança tremenda e ciúmes em relação a Ana, e o mesmo acontece pro veterano que, depois de uma série de relacionamentos passados ruins, acaba sendo excessivamente ciumento e pessimista, o que o impede de enfrentar as menores dificuldades com Fuse, que precisa o tempo todo correr atrás mas só complica tudo ainda mais por ser muito esquentado. 

Eles acabam discutindo por coisas que poderiam ser resolvidas numa conversa franca e aberta, mas a insegurança acaba falando mais altos e ambos dizem coisas que machucam. Seja com relação ao passado de Ana, a amizade próxima demais de Fuse com um dos meninos ou a aprovação das famílias, os dois se desentendem rápido demais. Ana acha que qualquer coisa vai fazer Fuse deixá-lo e, com medo disso acontecer, ele é quem acaba tomando essa decisão, o que faz sofrer demais. 

Um ponto negativo é que, pelo tamanho da série, que tem apenas seis episódios, os conflitos aparecem e se resolvem fácil demais, o que nos dá a impressão de que o relacionamento deles não evoluiu nada ou, pior, que os meninos são fúteis, o que não é verdade pois a proposta era claramente mostrar como ambos vão conquistando confiança no outro e coragem. 

Apesar disso a série ainda cativa com os momentos de fofura extrema dos dois apaixonadinhos, a beleza dos protagonistas e o fato dos amigos das outras temporadas voltarem ou serem citados com frequência, dando essa ideia do universo comum. Impossível não se apaixonar por Ana e Fuse, ambos com seus lábios rosados e olhar apaixonado, e impossível também não sentir que eles precisam amadurecer um pouco para finalmente ficarem juntos. Mesmo sendo lindinha, precisava de um pouco mais de tempo para conseguir mostrar o merecido amadurecimento de ambos. Mas vale a pena pela boiolagem!

Nota: 08/10

Un campo di battaglia

A experiência de hoje me fez sentir uma angústia profunda, e eu tinha decidido me silenciar e continuar suportando a adversidade com paciência e, nesse sentido, até escrever sobre me seria demais. No entanto, depois de refletir eu percebi que, a minha indignação não vem de um mero gosto ou algum tipo de fetiche, mas é uma indignação real e que muito entristece o coração. A reflexão a seguir não é a manifestação dessa indignação apenas, mas um ato de um filho que se entristece com o que fizeram com a sua Santa Mãe, e de como silenciaram a sua Santa Mestra. É ocasião para cantar como nos Lamentos de Jeremias:

Cercou Judá a vergonha,
Escrava foi desterrada,
Em terra estranha hoje mora
Sem paz, sem lar, sem pousadas;
Aqueles que a perseguem
Agarram-na sufocada.

A Santa Igreja afirma, em diversos documentos como a Constituição Dogmática Sacrosanctum Concilium, a Instrução Geral do Missal Romano e até outros mais recentes, sim, até mesmo na Carta Apostólica Desidério Desideravi a Igreja aponta a importância que a liturgia ocupa na economia da Salvação. O ensinamento é unânime: Cristo se fez homem e na Eucaristia, que o sacrifício incruento do sacrifício na cruz, ele se dá a nós. É desse fato que decorre toda a vida eclesial, e a esse fato que toda a vida eclesial retorna. É ao redor da divina liturgia que a Igreja vive, ela evangeliza os povos para que todos sejam participantes do banquete do Senhor pelo Batismo, ela é conversão porque exige o arrependimento dos pecados para que dê frutos em nossa vida e ela é a fonte inesgotável das graças que recaem sobre nossas almas, e não conseguimos nem imaginar a quantidade de transformações que ela opera em nós, sendo esse assunto tema de longa páginas de um número inabarcável de santos, doutores e teólogos. 

Daí a importância que a Igreja dá para a Liturgia. Mas, verdade seja dita, a Liturgia em nossas igrejas está destruída. O nome do Senhor, a Santíssima Eucaristia é arrastada na lama pela forma como celebramos, sem nenhum contato ou nem mesmo sem a percepção de que ali se faz presente o santo sacrifício do altar. A Missa se tornou um ponto de encontro semanal incômodo, onde ouvimos a Palavra explicada em homilias rasas ou afetadas de um sentimentalismo baixo. As musicas em nada refletem sacralidade e conduzem a oração, antes disso dispersam a atenção e são de qualidade absolutamente questionável. Ninguém consegue rezar e, no máximo quando alguém canta algo emocionante essa emoção significa a presença de Deus e então eles ficam contentes achando que aquilo é celebração. Eles não sabem o que estão dizendo e não sabem, principalmente, o que estão perdendo. Cada dia mais eu tenho consciência de o que acontece todos os domingos nas nossas paróquias não é menos do que sacrilégio. 

Na paróquia em que frequento a Eucaristia é consagrada num cálice de vidro, comprado numa loja de produtos para o lar, numa tentativa tosca de que o vinho seja visível para as pessoas. Isso me irrita de tal modo que nem quero comentar mais. As músicas, logo cedo pela manhã, são de uma animação atroz, o sacerdote entra e sobe ao altar ao som de baião, sertanejo e palmas, muitas palmas, além de letras bobas muitas vezes cheias de ideais revolucionários. Não encontramos nada do tesouro milenar musical da Igreja Católica. 

Essa comparação me veio ao participar de uma missa na igreja administrada pelos Arautos do Evangelho aqui em Joinville. Distante da cidade, o que limita e muito a participação da comunidade, eles celebram com sobriedade monástica. Desde a disposição do altar, a decoração belíssima e a unidade com a tradição litúrgica de dois milênios, tudo aponta para uma correta celebração donde se aproveita tudo. O silêncio que é interrompido pelo choro das crianças não é incômodo, antes disso, reflete uma comunidade viva e que cresce cada vez mais. A sobriedade do canto gregoriano e da polifonia, em latim e português, em companhia do órgão, dão o tom solene e orante da celebração, os gestos simples porém bem feitos dão a ideia da liturgia em harmonia com o Concílio Vaticano II: a Missa é, acima de tudo, sóbria e digna. Digna. Dignidade.

"Jerusalém, Jerusalém, volta para teu Senhor"

É muito difícil aceitar então que a celebração que vi hoje, que acontece escondida de todos como se fosse ilegal, o que não é porque respeita exatamente a todas as orientações do concílio, e a que eu vejo todos os domingos se tratam da mesma coisa. Não são a mesma coisa, apenas os textos são os mesmos. Desde a construção do espaço até os mínimos detalhes, como o comportamento dos coroinhas, é diverso. E olha que a celebração nem mesmo foi feita na igreja, ainda em construção, foi feita num salão esportivo, e a dignidade do presbitério é muito maior que a de qualquer outra igreja que eu tenha ido aqui em Joinville, de todas aquelas com construções estranhas, com painéis exagerados, com a sacralidade esquecida, casas de oração apenas, que em nada refletem a histórica tradição arquitetônica cristã. 

É realmente lamentável, lamentável. 

“A liturgia transformada em un campo di battaglia”* é exatamente o quadro que se nos apresenta hoje. Fiéis à Igreja, todavia, e esclarecidos pelos ensinamentos de Joseph Ratzinger, também nós podemos entrar nesse “campo de batalha”, cientes de que não estão em jogo banalidades externas, mas a própria fé da Igreja. Afinal, lex orandi, lex credendi: “a lei da oração é a mesma da fé”. O conteúdo da fé, aquilo em que acreditamos, determina o nosso modo de rezar e prestar culto a Deus. (Pe. Paulo Ricardo)

~

*Georg Gänswein, Nient’altro che la verità: La mia vita al fianco di Benedetto XVI. Milano: Piemme, 2023, p. 289.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Agitação e silêncio

Músicas aleatórias. 

Dinheiro. 

Saudades. 

É engraçado, e aqui leia-se engraçado como absolutamente bizarro e cansativo, como se dá a dicotomia dos meus sentimentos nas fases do meu transtorno bipolar. Vinha pensando no ônibus, no caminho para o trabalho, como algumas coisas são tão contraditórias: durante a fase depressiva embora eu fique quase catatônico, é na fase da hipomania que aumentam em mim a desesperança e o silêncio proposital. Se normalmente u observo os homens bonitos que passam por mim com certo desejo e muitas vezes até uma lascívia silenciosa, em dias como hoje eu sou tomado de tédio absoluto. 

Abandono. 

Traição. 

Compromissos. 

Muito embora ainda admire e continue percebendo os anjos que caminham entre nós, mero mortais, eu não sinto nada além disso. Ainda ontem falava com uma amiga que já havia desistido de tentar encontrar alguém, e essas palavras que me saem assim de modo espontâneo são muito significativas porque justamente não passam por um filtro social, elas são um retrato mais fiel do meu interior e, nesses dias, eu incorporo a desesperança como minha mortalha. 

Agenda. 

Chefes. 

Risadas. 

E assim sigo pelos agrestes escarpados, com um olhar vazio e indolente, até mesmo meio idiota, mesmo que meu corpo tenha muito mais energia nesse episódio breve que nos dias escuros da depressão onde minha única alternativa é me agarrar aos sonhos, eles são tudo o que restam a um homem assim. Mas, em dias como hoje, nem mesmo sonhos me restam. Eu sou um corpo que anda por aí, decidido porém sem rumo. Até mesmo o belo homem que vejo, altivo e lânguido, de olhos azuis e expressão estoica e distante, é para mim não mais do que uma bela escultura animada, um deus que caminha entre pobres mortais mas que em nada me faz querer ser levado para sua alcova. Eu apenas quero caminhar tranquilamente, talvez cantar baixinho, sentir a brisa do outono na beira do mar perto de casa e adormecer silenciosamente. 

Sono. 

Corpo cansado e mente desperta. 

Consciente e inconsciente.

Por outro lado eu acabo sem saber como lidar com a compulsão. Gastei mais de dois mil reais essa semana com coisas que poderiam claramente ser adiadas ou compradas em menor quantidade. Uma promoção de livros, canecas personalizadas. Percebo também uma diferença grande na minha atitude, concordando com coisas que normalmente negaria, parece que esses dias eu perco o filtro e acabo vazando pra todos os lados, fico dizendo besteiras, anormalmente bobo pra tudo, pensamentos rápidos demais pra me fixar no que quer que seja, inclusive no bom senso. O problema é que a razão me faz cair em mim depois, mas aí as decisões erradas já foram tomadas. E então sinto esse frenesi quase o tempo todo, essa eletricidade passando por baixo da minha pele... Odeio o fato de ficar assim, sempre flutuando entre uma coisa e outra, ou completamente atônito ou assim, elétrico e idiota. De que adianta ter toda energia e só querer fazer besteira? Um monstro que saiu de seu túmulo para caçar e devorar a carne, deixando por onde passa um rastro de ódio e arrependimentos. 

Boas ideias. 

Péssimas escolhas. 

Álcool.

Roupas japonesas. 

A dor de cabeça é um incômodo. Mesmo com o corpo cansado eu ainda sinto a mente desperta. Quando tento dizer algo muitas vezes a língua enrola, me confundo em assuntos que sempre me foram tranquilos em falar. Preciso parar e respirar fundo várias vezes, recomeçar... 

Homens bonitos no ônibus.

Olhos alucinados.

Um encontro mais tarde.

Só uma coisa permanece igual independentemente do episódio, independente do silêncio ou da agitação: eu continuo sozinho. 

Sozinho.

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Resenha - The Eighth Sense

Contém spoilers!

The Eighth Sense chega com uma proposta profunda, trazendo várias camadas que são apresentadas pontualmente, mostrando mais uma vez como os dramas coreanos são especialistas em mostrar com delicadeza histórias com uma força impressionante. 

Acompanhamos o jovem Ji Hyun (Oh Jun Taek) um tímido calouro que acaba de sair de uma pequena cidade do interior para estudar em Seul e que consegue trabalho num bar, onde ele acaba conhecendo Jae Won (Im Ji Sub), um veterano que acabou de sair do exército e que se mete em brigas sempre que bebe um pouco mais. 

Depois desse primeiro encontro onde Ji Hyun sente que o outro é apenas um garoto encrenqueiro, eles acabam se encontrando de novo algumas vezes, o veterano decide que vai ser amigo do outro mas age de modo meio estranho, se aproximando e depois sumindo sem explicações. O mais novo decide que é hora de fazer amigos na cidade grande e que precisa de coragem para conhecer mais pessoas e então entra no clube de surf da universidade, descobrindo na viagem de acolhida que Jae Won é um dos líderes lá, o que acaba por fazer ambos se conhecerem mais. 

Começamos a ver os dois se aproximarem a medida que vamos enxergando as camadas de suas personalidades. Ji Hyun embora esteja assustado com a vida mas agitada de Seul tenta coisas novas, como conhecer um parque perto de casa, o próprio surf ou tentar ser simpático com o homem que despertou seus sentimentos. A coragem dele, no entanto, é uma das coisas que acaba assustando Jae Won que enfrenta uma depressão e depende de remédios para continuar a vida. O veterano desenvolve um grande medo de decepcionar, de machucar e ser machucado e, por isso, ele fica entre enfrentar seus sentimentos, aceitar que ele é quem deve cuidar de seu futuro, ou fugir e se deixar levar. 

Ji Hyun se torna uma espécie de lugar confortável para Jae Won, e isso desperta comentários dos outros, inclusive de sua ex que, desde o começo, não aceitou o fim do relacionamento nem a aproximação dele com o calouro. No entanto, é justamente o fato de ele ter percebido o quanto o calouro se tornou importante para ele que o assusta tanto. 

E é nesse cenário que vemos os medos, as dores e os acidentes sendo explorados com uma delicadeza impressionante. A série tem muitos momentos silenciosos e reflexivos, lembrando um pouco a linguagem das séries japonesas, mas ainda traz os elementos clássicos dos doramas onde os personagens se conquistam em pequenas demonstrações de afeto e gentileza. A fotografia aposta numa vibe melancólica e é belíssima de se ver, conseguindo transmitir o medo dos personagens, bem como certa sensação de abandono e de vazio, ou também da confusão dos sentimentos, isso com a composição das cenas e das cores usadas. Vemos muito da angústia, do medo de perder e da própria depressão apenas em sutilezas dos atores e das cenas, assim como da trilha sonora particularmente bela também.

Com essa profundidade dos meninos e uma atmosfera que passa bem a melancolia de um e a curiosidade do outro The Eighth Sense apresenta cenas com uma química sensacional entre os protagonistas, que demonstram os sentimentos crescentes de modo sutil, uma fotografia séria, um roteiro bem feito que explora tudo de si nos episódios de mais ou menos meia hora e trazem uma história possível, com as dificuldades e medos da vida bem como os momentos de descanso e em que vislumbramos um futuro melhor. É, em dúvidas, uma das coisas mais bonitas, sensíveis e românticas já feitas. Simplesmente incrível. 

Nota: 10/10

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Parmênides e Heráclito no Oceano

Hoje eu preciso me tomar pela mão e então me levar cada lugar que eu preciso ir, e ainda estou me decidindo se vou mesmo, pois a minha vontade é apenas de ficar quieto, deitado, sem pensar muito em nada. É como se os lençóis estivessem se enroscado no meu corpo e me impedissem de sair, com as pálpebras pesadas como chumbo. Mas eu preciso, preciso aproveitar o dia de folga e estudar. Então eu tenho que me levantar, passar um café forte (na verdade um café solúvel que é ainda mais fácil de fazer) e então esperar que, ao sentar e beber fechando os olhos e inspirando profundamente, o aroma me dê um pouco de energia para sair do torpor indolente e finalmente me concentrar n'alguma verdade eterna mais importante e mais real do que as fibras da minha carne que teimam em apodrecer na alcova. 

Consegui caminhar um pouco, a visão do mar, aquela visão de um oceano que se abre infinitamente conseguiu mais uma vez se fixar na minha mente e então me provocar uma faísca novamente. Aquelas águas escuras, assim como o céu que se preparava para uma tempestade, me recordou a visão dos espaços infinitos que apavorou Pascal, a mesma visão que deu início aos questionamentos metafísicos dos antigos gregos e que chegaram até mim. 

Ali, naquele gigante desconhecido eu pensei na determinação e indeterminação do ser de Parmênides e na transitoriedade permanente de Heráclito. Tanto o ser que é e o não-ser que não é se manifestaram na minha consciência, a medida que olhava um belo rapaz, com pelo menos metade da minha idade, que pescava caranguejos no mangue e, com habilidade, os prendia com um chinelo de borracha enquanto arrancava as suas garras com uma pequena faca de mesa. Um deles escapou e veio na minha direção, e o garoto apenas estendeu o braço prendendo-o novamente e sorrindo de leve ao ver que me assustei por um instante, já que na verdade eu olhava para o seu rosto jovem e seus braços bronzeados ao invés de prestar atenção ao que ele fazia. Mas como isso se relaciona com a metafísica? 

Bem, a realidade visível é, de algum modo, imagem da invisível e reflete as leis eternas e imutáveis que investigamos. A possibilidade universal que, numa tarde meio nublada de segunda-feira, me fez encontrar um rapaz loiro a catar caranguejos com uma cordinha azul e uma pequena rede com peixes, é a mesma que rege todo o ser em sua totalidade, seja na individualidade tímida daquele jovem ou na totalidade do cosmos com seus milênios inapreensíveis e deuses antigos.

E ainda assim a visão daquele oceano infinito também me apavorou. A experiência essencial da humanidade, do intelecto que busca conhecer. E eu estava sozinho, apenas eu e aquele mar que se abria sob meus pés e alguns poucos pássaros que voavam aparentemente sem rumo e sem noção das muitas perguntas que haviam no meu ser. 

Continuava cansado, sem motivo, e a espera de que alguém me tomasse pela mão de volta para casa, com cada osso em protesto contra minha própria existência. Lembrava que precisava escrever uma resenha quando chegasse em casa, mas na minha indeterminação eu me perguntava: para quem escrever?

terça-feira, 25 de abril de 2023

As pedras falarão

Meus planos para hoje incluíam uma formação litúrgica com o pessoal da paróquia onde começo a me aproximar mas que não vou conseguir ir devido a uma crise alérgica incômoda que se abateu sobre mim logo cedo pela manhã. 

De um lado já continha, desde antes do convite que me foi feito, uma ideia pessimista da liturgia como é feita aqui por essas bandas, mas já me deti sobre isso em outras oportunidades. Em resumo, a ars celebrandi dessa região é completamente avessa a toda piedade real e apenas imita, muito barbaramente, um culto qualquer de teor libertário e disforme, brega na essência musical e desprendido de todo e qualquer simbolismo cristão autêntico, se revelando no completo esvaziamento da Liturgia. 

Mas meu objetivo era conhecer mais pessoas, depois de tantos meses morando aqui meu circulo de amigos é duito reduzido, em partes devido a falta de contato com o outro e pelo jeito naturalmente reservado co catarinense. 

Queria conhecer novas pessoas e sair um pouco da minha bolha tão reduzida porque temo que acabe me fechando demais em mim mesmo. Mas ficará para outra oportunidade. 

Vou descansar, o corpo e o coração, numa longa tarde de sono onde, quem sabe, sonhe com algo poético e me traga de volta o olhar que o cansaço dos últimos dias me tirara, ainda que não totalmente e minha reflexão sobre o Apolo mostra isso. 

O fato é que a fadiga dos últimos dias me deixaram um pouco seco demais, fazendo eco ao verso de Adélia Prado em que diz "Em alguns dias Deus me tira a poesia, vejo pedra e é pedra mesmo."

Em momentos assim me sinto como uma pedra que tenta falar, já que a voz dos profetas se silenciou e poucos são aqueles que orientam o povo numa arte celebrativa verdadeiramente frutífera. O fato é que se eu dizer a qualquer uma dessas que a sua celebração é apenas uma imitação muito diminuída do que poderia ser a Liturgia, elas simplesmente não entenderiam, fariam uma grande confusão e isso apenas reforçaria as crenças que elas já têm: a de que a liturgia deve servir e atrair o povo sendo tanto mais próxima das celebrações seculares, falando assim "a linguagem do povo" mas esquecendo que, se é pela linguagem do povo, o povo pode escolher ouvir a linguagem do próprio povo e não uma imitação. Ao passo que a tradição litúrgica autêntica não contém apenas elementos do povo, mas por isso mesmo consegue fazer com ele tenha maior contato com o Divino, e não com o povo onde ele já está inserido. 

domingo, 23 de abril de 2023

Resenha - Bed Friend

Contém spoilers!

Que as séries com os meninos da Domundi (Why RU, Cutie Pie) entregavam tudo a gente já sabia, mas Bed Friend conseguiu chegar de novo uma história sensacional e explorando os pontos mais fortes dos seus atores, dessa vez com a dupla NetJames sendo a aposta da empresa em continuar o legado de mostrar histórias interessantes e conteúdo visual de altíssima qualidade.

Acompanhamos a amizade com benefícios de Uea (James Supamongkon), que já está desiludido com o amor depois de um relacionamento fracassado e um passado abusivo, e King (Net Siraphop) que é conhecido por ser paquerador e não levar ninguém a sério. Embora isso seja algo que Uea despreza mais do que tudo ele acaba se aproximando de King em algumas situações e os dois concordam em fazer sexo algumas vezes por semana, o que obviamente acaba aproximando os dois não só fisicamente mas também afetivamente, e pouco a pouco eles vão superando juntos diversas barreiras. 

O passado de Uea é o tema recorrente que une os dois, King é apaixonado mas o outro sempre o rejeita, e fazendo com que ele precise se esforçar para conquistar a confiança do colega de trabalho. Uea foi tão machucado pelo ex, pelos problemas na família, que acaba sendo ríspido e não consegue se abrir, com medo de ser novamente machucado. King consegue construir a relação deles com paciência, e muito sexo, fazendo com o outro vá abaixando as barreiras e se deixando amar novamente, ao passo que ele mesmo precisa se policiar para entender e apoiar o homem que ama.

Essa construção é algo bonito de se ver, e algumas pessoas podem achar que as cenas de sexo são puramente apelativas mas não são, elas mostram também a evolução do relacionamentos deles pois se, a princípio eles se entregavam fisicamente, com o passar da histórias outra entrega também é explorada, como os abraços reconfortantes de King ou uma bela cena com um bolo de aniversário, mostrando que Uea não está mais sozinho, que existe sim uma pessoa que cuida dele e que se preocupa, que fica feliz com a felicidade dele e que respeita seu espaço, seus medos e seus desejos. Ele entende quando o outro precisa de um abraço, de alguém para sair e beber ou, claro, de uma boa noite de sexo.

Daí temos dois personagens sensacionais, Uea com seu passado cheio de traumas, que se revela um homem incrivelmente forte porque não se deixou quebrar com tudo que o aconteceu e King que foi capaz de ficar ao lado do outro, esperando com paciência até que o relacionamento deles pudesse ser completo. De fato as cenas de sexo são sensacionais, Net e James conseguem momentos de tirar o fôlego e tem uma química incrível, o que traz uma boa dose de realismo para a história que se contrapõe com os atores absurdamente bonitos que parecem até muitas vezes irreais mas que enfrentam dificuldades e dores bem reais, como abuso no trabalho e na família e a necessidade de tratamento e ajuda, seja dos amigos quanto de profissionais da saúde na superação dessas questões. 

Injustamente acusada de usar o hot como chamariz, Bed Friend constrói uma história sólida com uma atuação boa, fotografia belíssima que flutua entre aquelas cenas brilhantes que destacam a pele perfeita dos atores até uma pegada inspirada no noir em outros momentos, trilha sonora cativante e um roteiro que soube se equilibrar bem com problemas sérios, alívios nos momentos certos e que explorou o lado mais cativante dos meninos. Net é o homem mais sensual em cena, absurdamente lindo, enquanto James dá um show de elegância e entregou bem os momentos mais dramáticos da trama. Uma obra completa que deixou um nível altíssimo para os colegas que vão assumir a série que se passa no mesmo escritório, Middleman's Love, que vai ser protagonizada por Tutor e Yim (Cutie Pie) e deve começar logo em seguida a exibição desse arco. 

Nota: 09/10

quarta-feira, 19 de abril de 2023

21 de Fevereiro Melancólico

É o terceiro dia seguido em que apelo para os remédios pesados, e numa dose bem maior do que a de qualquer pessoa. E isso sem nem nenhum motivo aparente além, é claro, do óbvio apelo vicioso de me desligar. Até pensei em aproveitar o feriado prolongado de carnaval para fazer algo diferente mas nada me animou... Alguns primos foram acampar e, por alguns minutos, eu até me animei com a possibilidade de conhecer um lugar novo aqui na região, mas a chuva pesada mostrou que eu ganhei mais ficando em casa mesmo. 

Não é como se eu estivesse triste com alguma coisa, eu só não estou muito animado com nada também. E embora hoje seja meu aniversário eu só quero deitar e dormir mesmo, sem pensar em nada. Amanhã eu volto pro trabalho, e sei que vou chegar em casa cansado demais para me preocupar com qualquer coisa a mais, posso só chegar, tomar um banho e então assistir um pouco de série enquanto tomo um vinho barato antes de cair de exaustão e aí só acordar no outro dia, começando tudo de novo. É bem medíocre, eu sei. 

Mas, de todo modo eu preciso me ausentar hoje de novo, e me entregar a um sono breve mas profundo. E só isso, me sentir distante, um pouco que seja, de tudo, e acordar com aquele olhar perdido, opaco e sem esperança, que já me é tão caro. E eu não estou triste, só não estou feliz. E isso nem me revolta, porque o que os outros chamam de felicidade para mim não passam de bobagens feitas para tapar o vazio existencial deles, enquanto que eu me sento à beira do abismo e olho diretamente para sua escuridão. 

Por um breve instante eu até poderia pensar que gostaria de um abraço apertado, mas seria apenas efeito do carinho entre Leo e Fiat, pois acabei de maratonar Don't Say No, mas não sinto como se um abraço  ou alguém pudesse fazer eu sentir algo além desse vazio, não. Mesmo acompanhado eu ainda estaria sozinho. 

Com algum esforço eu consegui fazer a sobrancelha e aparar o cabelo que tinha cortado de qualquer jeito dias atrás... Não fez lá grande diferença, nada se comparado com os belos rostos que vejo todos os dias, mas ainda assim é alguma coisa. Minha família decidiu pedir hambúrgueres para comemorar meu aniversário, e eu concordei porque, bom, é algo que não fazemos com frequência então pode acabar sendo divertido. 

Talvez a noite termine um pouco diferente do fim de semana inteiro, com algo próximo ao da tranquilidade... É, quem sabe. De fato foi um aniversário melancólico e isso me proporcionou algumas outras reflexões. 

Percebi que tenho perdido tempo demais com coisas desnecessárias. Já diminuí e muito o consumo de coisas como vídeos bobos ou conteúdo de entretenimento geral. Tenho focado mais em leitura e em assistir minhas séries. Mas notei ainda que tenho passado tempo demais dizendo bobagens na internet e, se isso é indício de que não só continuo perdendo tempo com coisas bobas como também faço os outros perderem. Além de ser um sinal claro de que continuo tendo uma necessidade quase patológica de atenção e aprovação do outro, dado os muitos stories que eu posto que não são vistos por ninguém, ou as fotos com 11 curtidas, reflexo patético da minha insignificância. 

E isso pode ser usado para algo muito bom. Se eu passo despercebido posso usar isso para me dedicar a minha atividade intelectual sem chamar atenção de ninguém. Posso seguir os passos do meu professor e ficar quieto, estudando em silêncio, até adquirir algum conhecimento verdadeiro. Bem, isso exige de mim mais do que apenas um voto de silêncio em matéria de opinião, como o professor sugeriu, mas também uma certa discrição em relação ao outro e que, no momento, precisa ser mais trabalhada na forma como exponho a minha vida online.

Na verdade eu preciso assumir a sobriedade própria dos homens, ser simples no falar e no agir e de grandioso ter apenas a admiração pelos grandes homens da história. Tudo o mais é supérfluo e digno de ser ignorado. 

sábado, 15 de abril de 2023

A Morte Como Possibilidade


A morte tem um simbolismo muito profundo que muitas vezes é ignorado: já não se tem mais em mente que ela é uma realidade comum a todos nós, que todos vivemos num mundo de pessoas que já morreram e que todos nós vamos passar por ela um dia. 

No cristianismo a morte é vista como passagem, desta vida corporal para a eternidade, não sendo um ponto final mas, ao contrário, um ponto de partida para uma realidade infinitamente superior. A morte é, essencialmente, possibilidade. Isso explica o motivo de a morte ser vista com tanta desconfiança e até mesmo ser ignorada em nosso tempo: as pessoas tendem a ignorar o estado de possibilidade universal. Possibilidades demais deixam a todos meio aturdidos, e isso é facilmente constatável no clima constante de ansiedade da nossa época, tendo como um dos fatores as tão numerosas possibilidades. 

Como professor vejo diariamente os alunos em crises ansiosas diante das possibilidades que se abrem ao seus futuros. Qual curso ou carreira seguir, que decisões tomar, o que fazer no ano que vem faz com que as pessoas nem sequer consigam imaginar o que devem fazer no minuto seguinte. Se ficamos assim, tão boquiabertos diante das possibilidades do amanhã, tanto mais ficaremos diante da possibilidade eterna que a morte nos proporciona, isto é, a possibilidade de abertura para o infinito e eterno. Isso nem mesmo é mencionado por ninguém e já não se fala disso nem mesmo no meio da própria cristandade, senão que a religião tornou-se apenas um reduto de moral kantiana. 

Hoje eu vejo a vida por meio de lentes mortas. Eu não me sinto como alguém que vive em busca de nada mais, antes disso, se me considero morto, me abro a toda experiência que se pode apresentar. Posso dizer isso ao olhar ao meu redor com pequenos exemplos. 

Me mudei de Valparaíso para Joinville sem nenhuma perspectiva real: eu já não conseguia ser ninguém lá e por isso ao chegar aqui qualquer coisa que aparecesse seria lucro. O resultado é que logo consegui um emprego e aquele torpor em que fiquei mergulhado por dois ou três anos deu lugar a uma ação que eu já nem era mais capaz de imaginar. Sinceramente eu não achei que seria capaz de tomar três ônibus todos os dias e conversar com turistas do país inteiro sobre obras de arte. 

Agora algo ainda mais intimista: em Goiás me sentia aprisionado naquela selva de concreto formada por muros de dois metros de altura e casas sem nenhuma perspectiva estética, era tudo feio e disforme, desesperador, e eu perdi a conta de quantas vezes eu me deprimi simplesmente por olhar pela janela. Aqui as casas são mais ou menos parecidas e mesmo que eu viva em um bairro que não é nada nobre, ainda tem mais espírito do que todas as ruas de onde morava antes. Um outro diferencial é que aqui eu tenho um genuíno prazer em simplesmente me sentar na sacada e tomar um vinho ou cerveja observando a rua, essa ideia não me causa repulsa. 

Por mais que a casa esteja apertada e que a minha família insista em não decorar nada e apenas entulhar tudo eu continuo tendo uma visão morta de tudo isso, uma visão aberta as possibilidades, mas sem esperar nada em realidade, sem colocar uma expectativa e, por isso mesmo, incapaz de me decepcionar mas ainda capaz de me surpreender. 

Transpondo então os exemplos e modificando as proporções, tanto mais é possível abrir-se a possibilidade universal a partir do momento em que se acolhe as pequenas e as grandes mudanças, tomando então um realismo, que nada tem de desesperador que é a forma como as pessoas normalmente enxergam a morte: saber que vamos morrer nos dá a ideia de que devemos viver sem deixar de ter isso em mente e perceber que ela muda a perspectiva de tudo mais, sendo que problemas e até prazeres ganham novo significado, muito diferentes se pensados do ponto de vista temporal e limitado e do ponto de vista da eternidade. 

A própria busca pela verdade ganha nos ares se pensada no plano da eternidade: a Verdade é a eternidade e a busca pela verdade é a abertura total, por meio da contemplação amorosa da realidade, isto é, da aceitação do mundo que nos rodeia mas do não fechamento nele, na consciência constante de que há sempre algo maior para além dessa vida, algo que não a exclui mas que a compreende e a barca infinitamente. 

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Os dias continuam quentes

Achei que finalmente teríamos dias mais frescos com o início do outono, não aguento mais começar a suar antes de sair de casa. O sol ardente e brilhante ao descer do ônibus me faz sentir raiva, eu penso se tem algum sortudo em algum lugar fodendo com o ventilador no talo enquanto eu caminho sentindo a pele envelhecer cinquenta anos em cinco. Toda essa cor me faz na verdade ter preguiça de sair da cama e de conversar. 

Acabei me atrasando, não vi nenhum dos homens bonitos que costumo ver, minha companhia foi o velho Buck falando palavrões em sua crônica de um amor louco. O conto em que ele descreve uma máquina de esmagar culhões, que torna os homens capazes de fazer qualquer coisa ao terem sua vontade esmigalhada, me fez pensar no quanto o cotidiano faz isso com as pessoas. No conto eles reconheciam aqueles que tinham passado pelo procedimento pela falta de cor nos olhos e, embora eu esteja sempre sorrindo, eu vejo que não tenho cor nenhuma nos olhos, muito embora ninguém perceba isso. Acham que eu estou apenas cansado, e talvez seja isso também, mas essa falta de cor é na realidade falta de um visão de futuro. Eu vivo apenas na esperança de cumprir a próxima tarefa, de chegar ao fim do dia e abri uma lata de bebida e ver uma série ou sei lá o que. 

E tem aqueles desejos que eu sufoco dentro de mim, porque sei que eles só vão me causar problemas. Como sonhar com um amor, como sonhar em encontrar companhia, ou sonhar em conseguir administrar o salário até o fim do mês. Acho que hoje meu maior sonho seria dormir até um pouco mais tarde, ouvindo música num quarto menos entulhado que o meu, com o ar condicionado ligado. Nem precisava foder com ninguém. Não sendo incomodado já ficaria bastante grato e, quem sabe, quando levantasse, teria alguma cor nos meus olhos. 

É, eu duvido muito. 

Eu seria muito mais feliz se me incomodasse apenas com o calor e se não fosse mais capaz de amar. Eu não devia ter medo do amor não é mesmo? Mas quando se é rejeitado tantas vezes como eu fui o amor só machuca e maltrata. Até hoje o amor só me deixou doente. O amor é um cão dos infernos e eu acho que vou ficar bêbado hoje de novo. 

E realmente acho que não deveríamos mais falar disso, eu não vou mais falar disso. Eu vou ficar do seu lado e te apoiar, e ser aquilo que você precisa que eu seja. Se eu te amo mesmo é isso que eu devo fazer e não esperar o que me pedem os meus desejos egoístas. 

Fui dormir meio bêbado e completamente desiludido. Queria não acordar ou, se acordasse, que não sentisse mais nada por você mas, infelizmente, quando abri os olhos e puxei o ar fresco da manhã, senti mais do que meu peito se inflar, também senti o meu amor se inflamar novamente. Não fiquei bêbado o bastante, continuo sentindo um nó na garganta, a melancólica constatação de que ele nunca vai me amar.

Não diga não

Resolvi rever Don't Say No, depois de mais de um ano e, quantos sentimentos surgiram logo nos primeiros episódios! O caminho de Leo e Fiat foi longo e doloroso: durante anos Leo viu o amigo saindo com incontáveis homens e inclusive interferindo no relacionamento deles e ele não conseguia entender o que estava por trás desse comportamento, enquanto Fiat fazia isso para tentar esquecer os sentimentos que tinha pelo outro ao mesmo tempo em que tentava, com isso, despertar ciúmes nele. 

Fiat sempre foi desinibido com os homens, mas não conseguia dizer o que sentia pelo melhor amigo porque, dada a sua complexa relação com os pais, ele acreditava que todas as vezes que dizia a alguém que a amava, ela ia embora abandonando-o. Ele mostra a força desse trauma em várias ocasiões, seja nas investidas em Type, um homem comprometido, quando ele fala da sua amizade com Leo e de como tem medo de perder o outro quando os dois finalmente dizendo que se amam.

Mas, depois de anos assim eles finalmente se tornam namorados, com um pedido de namoro feito na quadra de basquete com a ajuda de alguns dos meninos do time. No entanto, o que vem depois disso? Eles já dormiam um ao lado do outro e, agora, parece que isso deveria obrigatoriamente ser seguido de sexo. Leo quer tocar Fiat mas tem medo que o outro pense que ele só quer se aproveitar como seus outros parceiros, ao passo que Fiat que ir com tudo pra cima de Leo, mas teme que ele o ache um safado. Leo é inseguro quanto a sua performance na cama e acha que não pode satisfazer o experiente Fiat.

A questão aqui é a comunicação. Leo sabe muito bem que Fiat pensa em sexo o tempo todo e não parece achar isso nenhum pouco ruim, mas Fiat que ele o veja como promiscuo, enquanto Fiat está satisfeito com Leo na cama porque além da performance ser excelente ela ainda tem todos os sentimentos que os envolvem, mas Leo ainda se sente inseguro e, com isso, o relacionamento deles demora até conseguir uma forma. 

Passaram muito tempo como amigos e, como já disse, dormiam e faziam tudo juntos, mas agora o namoro mudou o peso de todas essas ações e eles precisam realinhar as coisas. Mas o fato é apenas um: Leo precisa de Fiat o tempo todo, o homem sério e competente é dependente apenas de seu amigo, enquanto o atrevido Fiat é, na verdade inseguro e tem medo de ser abandonado, precisando do carinho e cuidado do outro para esquecer essa parte obscura do seu passado. 

Eles precisam e querem um ao outro, só precisam ajustar como se dará isso, numa solução não muito difícil: eles só precisam se acostumar com a crescente intimidade. 

Em casos assim o namoro é apenas a continuação natural da amizade, amizade esta que já se provou tão forte que Leo sempre foi o porto seguro de Fiat nas noites em que ele se perdia com outros homens. Essa provação já se foi. 

O carinho e o cuidado já existem, só precisam ser acrescidos de outras coisas, só precisam de mais palavras doces, abraços apertados e, claro, beijos apaixonados que selem todo sentimento que já havia antes entre eles. Em casais de amigos que se tornam namorados o beijo e a relação sexual é apenas o aglutinador que faz com o sentimento se condense por entre os gemidos e amplexos dos amados. 

E então todas as coisas adquirem um significado maior: as mãos dadas são confiança e companheirismo. O abraço é mais do que conforto, é um toque entre corações. E o sorrisos? O sorriso é o transbordar do sentimento.

Claro que, com isso, não poderia deixar de pensar na minha própria situação. Onde dois amigos já agem muitas vezes como namorados, como isso pode evoluir ou se tornar uma situação mais clara? A resposta não é difícil: quando não há intenção mútua de evoluir a relação para um namoro, só resta deixar como está ou regredir algumas coisas, Se ambos desejarem a mesma coisa, basta que se promovam.

Mas e o medo, como o tinham Leo e Fiat? Pode existir. Eu mesmo evitei dizer o que sinto por muito tempo e, agora que o disse, espero minha resposta. Muito embora eu já saiba qual é. É uma negativa, os sentimentos dele nunca foram mais daqueles envolvidos na amizade mas, a nossa proximidade foi além, e então isso causou a confusão que há entre nós. Eu só queria poder dizer, como Leo e o Fiat "por favor não diga não." Mas ele já disse, ainda que não claramente como eu gostaria, para que não criasse nenhuma esperança, mas claro o suficiente: a resposta é não. 

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Simbolismo da Cruz

Dito durante uma conversa

Há uma analogia entre símbolos que constam de mesmos elementos. O simbolismo da cruz é algo de uma riqueza imensa que já foi muitas vezes abordado, acredito que de modo bem completo em grandes tratados cristãos e também na obra de René Guenón, mas que é negligenciado e reduzido aos seus aspectos mais evidentes ou superficiais. 

Você percebeu a semelhança entre uma figura de Moisés no deserto, com a serpente na cruz, e a Cruz de Flamel, e eu citei a origem comum de ambos os símbolos e estendo as semelhanças com a cruz de Cristo e também o simbolismo pagão do caduceu, que veio a ser o símbolo de muitas ciências ligadas a saúde. 

Começo explicando melhor o que é analogia: é um apanhando de semelhanças e diferenças onde, guardadas as devidas proporções, as coisas se aproximam por um lado enquanto se distanciam de outro. No caso aproximam-se em seu sentido simbólico a medida que se afastam historicamente. 

Partindo da figura de Moisés que foi a que você me mostrou, vemos então um episódio bíblico de grande beleza e força. A comunidade que vagava no deserto foi atacada por serpentes e, como aconteceu em vários episódios da saída do povo do Egito, rogaram a Moisés que pedisse a Deus por socorro. Moisés então, ordenado por Deus, fez uma serpente de bronze numa cruz que, quando olhada por aqueles atacados pelas serpentes, os curava.

O símbolo da serpente de Moisés combina a cruz, que é uma união do horizontal e o vertical, do divino e humano, coisas aparentemente contraditórias que se encontram num único objeto. A serpente é a causa da morte mas aqui, é ela que se torna símbolo da cura. Há então esse elemento da mudança, o que era morte e que passa a ser vida. 

Essa mutação simbólica é presente em todo simbolismo universal. As águas primordiais donde pairava o Espírito de Deus foram a fonte da vida, mais tarde as águas destruíram o mundo no dilúvio que deu origem a uma nova caminhada da humanidade. As águas do Mar Vermelho que os judeus atravessaram foi, para eles, motivo de libertação, mas causaram a morte do exército do Faraó. A água mais tarde se tornou símbolo do batismo que traz em si essa relação entre a vida e a morte de novo e, por fim, o batismo nos aponta novamente para a cruz, dessa vez a cruz de Cristo.

A cruz, que era instrumento de suplício do Império Romano e causa de vergonha para os judeus, se tornou o instrumento de salvação dos cristãos, ao qual nós solenemente aclamamos no belo hino de Sexta-feira Santa "Fiel madeira da Santa Cruz, ó árvore sem igual." A cruz vem do elemento natural, da madeira que cresce, que é vida, mas é nela que pendeu o Salvador do Mundo, morto, mas pelo qual ele transforma a morte em vida. De novo a presença da mudança, do que era pra ser morte e que se faz vida, como a serpente no deserto que causava morte mas que, na haste de Moisés, trazia a cura. 

Até mesmo o pecado foi transmutado pelo simbolismo da cruz, a "culpa tão feliz que mereceu a graça de tão grande Redentor" foi a queda do homem mas também foi o que nos fez ganhar um Salvador. A cruz foi o elemento usado para transformar.

No simbolismo grego a serpente aparece em Hermes e Asclépio, respectivamente os deuses do comércio e da saúde, ambos constam de novo dessa combinação de elementos contraditórios. Em Hermes aparece como a combinação do contraditório, esse equilíbrio é o eterno movimento cósmico, o infinito, a regeneração. Em Asclépio traz de novo o símbolo da morte que é transmutada em vida, com Asclépio tendo aprendido a arte da medicina e a serpente sendo o símbolo do antídoto, da cura, que é transmutado a partir daquilo que causou a doença.

E isso nos faz retornar a Cruz de Flamel, que combina isso que já comentei, mas no âmbito da transmutação alquímica, da complexa relação da ação do espírito na natureza. Flamel é conhecido pela lenda de ter produzido ouro a partir de bronze. O ouro é conhecido pela sua pureza, e ele o conseguiu de um elemento impuro, de novo a transformação aparece na chave de nossa interpretação. A Cruz de Flamel é a busca da sabedoria que transforma, da serpente que se torna remédio, da cruz que mata e dá a vida. Acima dela vemos asas e uma coroa, a liberdade que ela proporciona e a realeza, a pureza, o ouro, transmutado a partir do impuro. A serpente, no entanto, aponta pra baixo, o que indica que essa mesma sabedoria pode nos levar também para a malícia, simbolizada nos opostos do apontamento pra baixo e da coroa alada. Ambos elementos contraditório que se combinam na pessoa humana que, transmutada pelo divino, alcança sabedoria ou perde-se pela serpente do inferno que também oferece sabedoria, o conhecimento de Adão e Eva que foi a causa de sua queda. 

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Visão de Apolo na manhã

Era a escultura de um deus que que se erguia naquele amontoado de corpos suados e tristes. E eu não conseguia parar de olhar para ele, que me aquecia à distancia com aquela presença tão estranhamente divina entre homens. 

Ele segurava o apoio com um braço e o outro se apoiava na alça da mochila. As mãos fechadas forçavam os músculos do braço que saltavam com um vigor notável, os nós dos dedos levemente avermelhados e as veias arroxeadas davam a ideia que ele poderia, a qualquer momento, fazer o a chuva parar de cair e ordenar que os raios solares voltassem apenas com o erguer de um braço. Embora seu corpo fosse de uma altivez apolínea, com o peito marcando forte na camisa preta, seu rosto era suave e, mais uma vez, lembrava o sol mas apenas aquele calor leve que acaricia a face dos amantes deitados no jardim. Era um rosto delicado, lábios levemente rosados e olhos profundamente negros e brilhantes. O cabelo aparado dos lados era liso de um castanho escuro levemente caramelizado, e se mexia levemente com o vento que entrava pela janela. 

Eu fixei meu olhar naquela figura até o último instante, e não conseguia desviar, não conseguia deixar de fitá-lo até imprimir cada traço em minha memória. Desci no meu ponto com o coração em silêncio, só conseguia me lembrar daquela imagem, e pensar em quando poderei vê-lo novamente.

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Dilema Existencial

Já tratei várias vezes acerca das distâncias entre as pessoas, em como muitas vezes nos tornamos universos incomunicáveis e, mais ainda, o quanto isso impacta e o quão desesperador pode ser viver com a impressão da total solidão e isolamento de todos os outros. 

Mas, tem um aspecto desse fenômeno que só muito recentemente eu observei em Neon Genesis Evangelion, depois de uma aula do Guilherme Freire em que ele comentou essa obra tão fascinante.

No universo de NGE temos um Shinji que sente a dor do confronto com o outro, e como ele prefere fugir a esse confronto para, assim, evitar a dor que ele causa. Em um período já bastante crítico eis que aparece Kaworu, um garoto misterioso que estranhamente se aproxima do protagonista e consegue se tornar próximo dele como nenhum outro personagem, até mais do que as outras protagonistas, que levaram vários e longos capítulos para criarem intimidade e, ainda assim, causavam dor ao pequeno garoto assustado. 

Nesse ponto Kaworu se torna uma doce companhia para Shinji que se vê no meio de uma luta que parece impossível de ser vencida, onde todos estão sem esperança e apenas continuam em frente, mais e mais, e ele já nem tem de onde tirar energia, apenas seguindo. E então eles dão uma pausa, e apenas tomam um banho, conversam antes de dormir, num momento de respiro depois de tantas lutas, e antes da última e mais difícil.

Kaworu se mostra como a possibilidade da negação do conflito, de uma vida onde os opostos de feminino e masculino não colidem, onde esse mundo masculino seria a possibilidade de um mundo em que as pessoas não machucam umas às outras, mesmo separadas e divididas. Shinji sente com força essa possibilidade, percebe pela primeira vez que poderia ser feliz ou, ao menos, levar uma vida mais tranquila. A essa ausência de conflito Kaworu chama de Amor, algo que Shinji não chegou a conhecer, abandonado pelo pai desde pequeno. O conflito é personificado pela Asuka, sempre agressiva, e pela distância com a Ayanami, são duas faces do muro que existe entre as pessoas. 

Essa tentação se manifesta com uma conotação sexual para ele e então se torna essa possibilidade de tranquilidade. No entanto é uma possibilidade carregada de negatividade, tanto pela negação do conflito quanto pela negação da realidade do homem. Esse mundo homossexual que se apresenta ao Shinji é uma promessa de amor mas, ao mesmo tempo, não lhe parece certo. 

Muito embora Shinji esteja num estado de acídia e até mesmo depressão ele consegue vislumbrar um mundo com uma centelha de felicidade, personificada no sorriso doce do amigo que o provoca em alguns momentos criando uma atmosfera descontraída e acolhedora. Eles se deitam ao lado um do outro, como Shinji chegou a dormir com Asuka, mas com uma calma em seu coração que ele não experimentou ao dormir com a amiga, até mesmo sendo assombrado pela tentação sexual de dormir ao lado de uma garota bonita de sua idade. Com o amigo, por outro lado, a tentação sexual é acompanhada pela tranquilidade.

O garoto que olhava para o mundo com pessimismo finalmente vê um pouco de alegria mas parece que algo está errado...

Ele se vê diante da posição de negar a sua realidade mas a realidade que se apresenta em alternativa é justamente fraca em manter aquele fundo de verossimilhança. Em resumo: um mundo sem conflito e sem a necessária dualidade entre o feminino e o masculino é irreal, é incompleto.

Isso porque não é simplesmente a ausência de conflitos que significam uma vida feliz mas, uma vida completa é formada também por conflitos que fazem parte da natureza mesma das coisas. É por isso que apenas fugir e se refugiar num mundo imaginário sempre acaba em desilusão, justamente por isso ao vislumbrar esse mundo nele não há nenhuma felicidade.

A morte de Kaworu significa para Shinji o fim da linha, e ele entra em estado de profunda depressão, só conseguindo reagir muito depois de iniciado o projeto de Instrumentalidade Humana. A pergunta "por que você o matou?" se repete indefinidamente na mente do jovem que tenta a todo custo se livrar da culpa de ter nas mãos o sangue da pessoa que, pela primeira vez, lhe deu a visão da alegria. 

O dilema existencial é então apresentado por meio dessa tensão entre o real, o sonhado e aquilo que podemos equacionar das duas coisa, uma síntese, por assim dizer, do sonho que não se perde da realidade. A representação desse dilema na angústia depressiva é uma boa imagem e reflete com verossimilhança a experiência comum a todas as pessoas. 

Parece-me, uma vez mais, que as pessoas comuns não esperam mais de si mesmas e dos outros nada além de que trabalhem vorazmente e que intercalem longas jornadas com alguns poucos momentos de alegria, muito limitados tanto pelo tempo quanto pelo cansaço, sem esquecer do pouco dinheiro, e que logo se esvai perdido entre os alarmes de uma nova semana que se inicia, e se inicia com extremos dos contatos entre o eu e o outro, causa das dores das incompreensivas relações, da incapacidade de conhecer e tocar o outro, de entender suas dores e alegrias e também pela fuga constante da realidade em recortes muito diminuídos, como ações técnicas e de limitada exigência intelectual.

As pessoas refugiam-se então nesses recortes da realidade. Se perdem em e-mails que ninguém lê e listas de tarefas que, se deixassem de ser feitas, não fariam nenhuma falta. Essas coisas são a falsa promessa de alegria, uma alegria por conta do sentimento de dever cumprido, se esse dever é importante não importa, contanto que sirva para silenciar o coração das angústias, das vozes que repetem "do que tem medo?" e "por que você o matou?" incessantemente. Esse é o mundo sem conflitos que as pessoas buscam e nele vivem, ignorando as dúvidas e as dores reais.

Acho que não preciso me demorar mais a dizer que isso é uma forma muito diminuída de existência.