sexta-feira, 7 de abril de 2023

Simbolismo da Cruz

Dito durante uma conversa

Há uma analogia entre símbolos que constam de mesmos elementos. O simbolismo da cruz é algo de uma riqueza imensa que já foi muitas vezes abordado, acredito que de modo bem completo em grandes tratados cristãos e também na obra de René Guenón, mas que é negligenciado e reduzido aos seus aspectos mais evidentes ou superficiais. 

Você percebeu a semelhança entre uma figura de Moisés no deserto, com a serpente na cruz, e a Cruz de Flamel, e eu citei a origem comum de ambos os símbolos e estendo as semelhanças com a cruz de Cristo e também o simbolismo pagão do caduceu, que veio a ser o símbolo de muitas ciências ligadas a saúde. 

Começo explicando melhor o que é analogia: é um apanhando de semelhanças e diferenças onde, guardadas as devidas proporções, as coisas se aproximam por um lado enquanto se distanciam de outro. No caso aproximam-se em seu sentido simbólico a medida que se afastam historicamente. 

Partindo da figura de Moisés que foi a que você me mostrou, vemos então um episódio bíblico de grande beleza e força. A comunidade que vagava no deserto foi atacada por serpentes e, como aconteceu em vários episódios da saída do povo do Egito, rogaram a Moisés que pedisse a Deus por socorro. Moisés então, ordenado por Deus, fez uma serpente de bronze numa cruz que, quando olhada por aqueles atacados pelas serpentes, os curava.

O símbolo da serpente de Moisés combina a cruz, que é uma união do horizontal e o vertical, do divino e humano, coisas aparentemente contraditórias que se encontram num único objeto. A serpente é a causa da morte mas aqui, é ela que se torna símbolo da cura. Há então esse elemento da mudança, o que era morte e que passa a ser vida. 

Essa mutação simbólica é presente em todo simbolismo universal. As águas primordiais donde pairava o Espírito de Deus foram a fonte da vida, mais tarde as águas destruíram o mundo no dilúvio que deu origem a uma nova caminhada da humanidade. As águas do Mar Vermelho que os judeus atravessaram foi, para eles, motivo de libertação, mas causaram a morte do exército do Faraó. A água mais tarde se tornou símbolo do batismo que traz em si essa relação entre a vida e a morte de novo e, por fim, o batismo nos aponta novamente para a cruz, dessa vez a cruz de Cristo.

A cruz, que era instrumento de suplício do Império Romano e causa de vergonha para os judeus, se tornou o instrumento de salvação dos cristãos, ao qual nós solenemente aclamamos no belo hino de Sexta-feira Santa "Fiel madeira da Santa Cruz, ó árvore sem igual." A cruz vem do elemento natural, da madeira que cresce, que é vida, mas é nela que pendeu o Salvador do Mundo, morto, mas pelo qual ele transforma a morte em vida. De novo a presença da mudança, do que era pra ser morte e que se faz vida, como a serpente no deserto que causava morte mas que, na haste de Moisés, trazia a cura. 

Até mesmo o pecado foi transmutado pelo simbolismo da cruz, a "culpa tão feliz que mereceu a graça de tão grande Redentor" foi a queda do homem mas também foi o que nos fez ganhar um Salvador. A cruz foi o elemento usado para transformar.

No simbolismo grego a serpente aparece em Hermes e Asclépio, respectivamente os deuses do comércio e da saúde, ambos constam de novo dessa combinação de elementos contraditórios. Em Hermes aparece como a combinação do contraditório, esse equilíbrio é o eterno movimento cósmico, o infinito, a regeneração. Em Asclépio traz de novo o símbolo da morte que é transmutada em vida, com Asclépio tendo aprendido a arte da medicina e a serpente sendo o símbolo do antídoto, da cura, que é transmutado a partir daquilo que causou a doença.

E isso nos faz retornar a Cruz de Flamel, que combina isso que já comentei, mas no âmbito da transmutação alquímica, da complexa relação da ação do espírito na natureza. Flamel é conhecido pela lenda de ter produzido ouro a partir de bronze. O ouro é conhecido pela sua pureza, e ele o conseguiu de um elemento impuro, de novo a transformação aparece na chave de nossa interpretação. A Cruz de Flamel é a busca da sabedoria que transforma, da serpente que se torna remédio, da cruz que mata e dá a vida. Acima dela vemos asas e uma coroa, a liberdade que ela proporciona e a realeza, a pureza, o ouro, transmutado a partir do impuro. A serpente, no entanto, aponta pra baixo, o que indica que essa mesma sabedoria pode nos levar também para a malícia, simbolizada nos opostos do apontamento pra baixo e da coroa alada. Ambos elementos contraditório que se combinam na pessoa humana que, transmutada pelo divino, alcança sabedoria ou perde-se pela serpente do inferno que também oferece sabedoria, o conhecimento de Adão e Eva que foi a causa de sua queda. 

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