segunda-feira, 3 de abril de 2023

Dilema Existencial

Já tratei várias vezes acerca das distâncias entre as pessoas, em como muitas vezes nos tornamos universos incomunicáveis e, mais ainda, o quanto isso impacta e o quão desesperador pode ser viver com a impressão da total solidão e isolamento de todos os outros. 

Mas, tem um aspecto desse fenômeno que só muito recentemente eu observei em Neon Genesis Evangelion, depois de uma aula do Guilherme Freire em que ele comentou essa obra tão fascinante.

No universo de NGE temos um Shinji que sente a dor do confronto com o outro, e como ele prefere fugir a esse confronto para, assim, evitar a dor que ele causa. Em um período já bastante crítico eis que aparece Kaworu, um garoto misterioso que estranhamente se aproxima do protagonista e consegue se tornar próximo dele como nenhum outro personagem, até mais do que as outras protagonistas, que levaram vários e longos capítulos para criarem intimidade e, ainda assim, causavam dor ao pequeno garoto assustado. 

Nesse ponto Kaworu se torna uma doce companhia para Shinji que se vê no meio de uma luta que parece impossível de ser vencida, onde todos estão sem esperança e apenas continuam em frente, mais e mais, e ele já nem tem de onde tirar energia, apenas seguindo. E então eles dão uma pausa, e apenas tomam um banho, conversam antes de dormir, num momento de respiro depois de tantas lutas, e antes da última e mais difícil.

Kaworu se mostra como a possibilidade da negação do conflito, de uma vida onde os opostos de feminino e masculino não colidem, onde esse mundo masculino seria a possibilidade de um mundo em que as pessoas não machucam umas às outras, mesmo separadas e divididas. Shinji sente com força essa possibilidade, percebe pela primeira vez que poderia ser feliz ou, ao menos, levar uma vida mais tranquila. A essa ausência de conflito Kaworu chama de Amor, algo que Shinji não chegou a conhecer, abandonado pelo pai desde pequeno. O conflito é personificado pela Asuka, sempre agressiva, e pela distância com a Ayanami, são duas faces do muro que existe entre as pessoas. 

Essa tentação se manifesta com uma conotação sexual para ele e então se torna essa possibilidade de tranquilidade. No entanto é uma possibilidade carregada de negatividade, tanto pela negação do conflito quanto pela negação da realidade do homem. Esse mundo homossexual que se apresenta ao Shinji é uma promessa de amor mas, ao mesmo tempo, não lhe parece certo. 

Muito embora Shinji esteja num estado de acídia e até mesmo depressão ele consegue vislumbrar um mundo com uma centelha de felicidade, personificada no sorriso doce do amigo que o provoca em alguns momentos criando uma atmosfera descontraída e acolhedora. Eles se deitam ao lado um do outro, como Shinji chegou a dormir com Asuka, mas com uma calma em seu coração que ele não experimentou ao dormir com a amiga, até mesmo sendo assombrado pela tentação sexual de dormir ao lado de uma garota bonita de sua idade. Com o amigo, por outro lado, a tentação sexual é acompanhada pela tranquilidade.

O garoto que olhava para o mundo com pessimismo finalmente vê um pouco de alegria mas parece que algo está errado...

Ele se vê diante da posição de negar a sua realidade mas a realidade que se apresenta em alternativa é justamente fraca em manter aquele fundo de verossimilhança. Em resumo: um mundo sem conflito e sem a necessária dualidade entre o feminino e o masculino é irreal, é incompleto.

Isso porque não é simplesmente a ausência de conflitos que significam uma vida feliz mas, uma vida completa é formada também por conflitos que fazem parte da natureza mesma das coisas. É por isso que apenas fugir e se refugiar num mundo imaginário sempre acaba em desilusão, justamente por isso ao vislumbrar esse mundo nele não há nenhuma felicidade.

A morte de Kaworu significa para Shinji o fim da linha, e ele entra em estado de profunda depressão, só conseguindo reagir muito depois de iniciado o projeto de Instrumentalidade Humana. A pergunta "por que você o matou?" se repete indefinidamente na mente do jovem que tenta a todo custo se livrar da culpa de ter nas mãos o sangue da pessoa que, pela primeira vez, lhe deu a visão da alegria. 

O dilema existencial é então apresentado por meio dessa tensão entre o real, o sonhado e aquilo que podemos equacionar das duas coisa, uma síntese, por assim dizer, do sonho que não se perde da realidade. A representação desse dilema na angústia depressiva é uma boa imagem e reflete com verossimilhança a experiência comum a todas as pessoas. 

Parece-me, uma vez mais, que as pessoas comuns não esperam mais de si mesmas e dos outros nada além de que trabalhem vorazmente e que intercalem longas jornadas com alguns poucos momentos de alegria, muito limitados tanto pelo tempo quanto pelo cansaço, sem esquecer do pouco dinheiro, e que logo se esvai perdido entre os alarmes de uma nova semana que se inicia, e se inicia com extremos dos contatos entre o eu e o outro, causa das dores das incompreensivas relações, da incapacidade de conhecer e tocar o outro, de entender suas dores e alegrias e também pela fuga constante da realidade em recortes muito diminuídos, como ações técnicas e de limitada exigência intelectual.

As pessoas refugiam-se então nesses recortes da realidade. Se perdem em e-mails que ninguém lê e listas de tarefas que, se deixassem de ser feitas, não fariam nenhuma falta. Essas coisas são a falsa promessa de alegria, uma alegria por conta do sentimento de dever cumprido, se esse dever é importante não importa, contanto que sirva para silenciar o coração das angústias, das vozes que repetem "do que tem medo?" e "por que você o matou?" incessantemente. Esse é o mundo sem conflitos que as pessoas buscam e nele vivem, ignorando as dúvidas e as dores reais.

Acho que não preciso me demorar mais a dizer que isso é uma forma muito diminuída de existência.

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