quarta-feira, 31 de março de 2021

Você está bem?


"Você está bem?"

Eu já não estou bem tem um bom tempo, e já nem sei mais dizer quando foi que isso começou, ou quando foi que se tornou pior. A única coisa que me lembro é de ser lançado naquela água fria e, pouco a pouco eu fui afundando, sem conseguir mais enxergar a claridade muito bem, as coisas foram ficando cada vez mais escuras e, bem, a sua mão estava esticada em minha direção mas, de algum modo, nossos dedos não estavam mais entrelaçados, eles deslizaram uns pelos outros e nós fomos nos afastando, eu cada vez mais sem respirar, já não via você, apenas sentia o frio congelar os meus braços e pernas, como se milhares de agulhas fossem colocadas em minha carne. E então eu me acostumei, com o frio, a solidão, o silêncio desse espaço infinito onde apenas a sua voz ecoava gritando meu nome de maneira desesperada, distante, com suas lágrimas se misturando com as águas dessa imensidão que me engolia por inteiro, me tirando de ti, de suas mãos, e me levando pra mais profunda escuridão, donde jamais poderei sair, ficando apenas com a lembrança do seu abraço, da sua e do seu carinho, aqui, como num núcleo de fogo em meio a esse mar congelado.

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*Baseado na cena da morte de Su-Ho, de The Uncanny Counter

segunda-feira, 29 de março de 2021

Mais um

Alguns dias se passaram e ele não responde mais as minhas mensagens, e eu admito que não tenho mais nenhum pretexto pra tentar puxar assunto. Ficamos naquele silêncio desconfortável e nos afastamos, parece simples mas ainda assim me machucou. Me machucou porque mais uma vez pareceu simplesmente que eu não tenho nada de interessante a dizer, e que nada na minha presença parece convidar alguém a ficar. Me machucou porque outra vez eu me senti tão dispensável, um nada, alguém completamente sem razão para ser, por simplesmente não significar nada ao outro e, sendo sincero, ainda menos para mim. 

O ativismo do amor próprio pode me corrigir dizendo que o primeiro a precisar encontrar significado em mim sou eu mesmo, no entanto, para alguém que há tanto tempo mergulhou num pântano de depressão, eu já nem sei mais o que é amor próprio. Eu não me amo, de modo algum, senão que me amaldiçoo diariamente desde o primeiro respirar da manhã até o fechar dos olhos antes de dormir.

E isso porque alguém como eu, que nunca conquistou nada, apenas vê os outros se afastarem como eu mesmo faria se pudesse, e como o fiz de algum modo, separando meu corpo que vive num torpor constante da minha mente que habita um mundo de histórias onde me refugio do frio e do vazio que é habitar meu próprio ser. 

Ele é só mais um que se foi, mais um que havia me conquistado com um sorriso e um pouco de atenção, algo que minha carência tomou para si e moldou como uma miragem que se mostra pra alguém que vaga no deserto. Mas agora a miragem se desfez, e eu volto a encerrar-me em meu próprio coração, como num deserto. Eles sempre vão embora, deixando comigo apenas a lembrança, daquele sorriso e da esperança que fez brilhar em meu coração, antes de me tornar a lançar na obscuridade total. Ele é só mais que se foi, não o primeiro e certamente não o último. 

sábado, 27 de março de 2021

Chatice

Todos os anos, antes do início da Semana Santa, eu sou tomado por uma crescente ansiedade que só termina no Domingo de Páscoa, após a última missa, quando tenho certeza que tudo acabou e que não preciso mais me preocupar com formações, reuniões, antever tudo o que possa dar errado, dividir tarefas, pensar em cada detalhe das celebrações... É sempre um grande evento que demanda, além de tempo, paciência e nervos de aço pra lidar com tanto contratempos. Sendo sincero muito me surpreende que alguém tão desequilibrado quanto eu consiga lidar com isso, ou talvez eu não seja tão desequilibrado assim, apenas exagerado no perceber o mundo ao meu redor. 

Esse ano, no entanto, no lugar da ansiedade o que sinto é um tanto quanto diferente. Muito embora no ano passado a responsabilidade tenha sido ainda maior por não ter ninguém além de mim servindo nas missas, o que definitivamente foi difícil, esse ano elas serão com a participação do povo, com apenas alguns ritos omitidos devido o tempo e a necessidade de obedecer as medidas ditatoriais que o governo impõe pra controlar a pandemia. A pressão esse ano é maior, mas eu não consigo responder à altura. Quero dizer, tudo o que poderia fazer estou fazendo, as formações foram feitas, os subsídios prontos, as orientações dadas... Agora é esperar que sejam executadas. 

Talvez uma parte de mim tenha percebido que de nada adianta estudar sozinho e esperar que todos façam o mesmo, por isso o que foi de minha possibilidade eu fiz, de resto escapa as minhas capacidades. E tudo bem, se algo der errado eu vou tentar de boa com isso. 

O que mais me chama atenção é que, ao pensar nessa semana que se aproxima, além de não sentir aquela ansiedade me dizendo que tudo vai, de algum modo, dar errado, é a lente cinza com meus olhos enxergam essa possibilidade ou até mesmo a possibilidade de que tudo corra bem. Não é que esteja confiante de que tudo vá dar certo, antes disso, conheço bem todos os envolvidos pra conseguir saber que muitos ignoraram o que eu disse e que em cima da hora algumas coisas podem desandar mas, de qualquer modo, quando penso nisso, só o que sinto é um enorme vazio. 

Talvez seja aquele questionamento sobre a validade das coisas que fazemos, não no sentido espiritual da liturgia em questão mas no sentido humano mesmo, de que servem todas as nossas preocupações, todos nossos anseios se, ao fim do dia, apenas a morte nos espera numa alcova fria, onde se silenciará toda a gritaria dessa multidão confusão, dessa turba que agora me tenta a paciência e os bons modos. 

Acho que o que se passa comigo é que já não vejo sentido nenhum em nada que faço de modo que, não importando o que aconteça, eu não dou mais à mínima. Tudo é vazio e sem contorno, as convicções se esvaem como fumaça no tempo, não há o que nesse mundo possa dar valor as ações de um homem, todos somos, no fim, patéticos e dignos de pena, por nossa imensa pequenez, de pó que não deveria ter deixado de ser pó.

É isso o que vejo, um mundo que, como uma duna, se ergueu da poeira mas que pode desaparecer no próximo instante, e seria melhor se desaparecesse porque, por enquanto, nada que ele fez foi sólido o suficiente para trazer algum sentido a essa nossa existência miserável. 

Quem pensa assim de si mesmo e do mundo já não pode mais temer nada, senão que apenas espera pacientemente pelo fim que, pelo menos, findará com toda essa chatice. 

terça-feira, 23 de março de 2021

Dies Irae

"Saturada de males se encontra a minh’alma, minha vida chegou junto às portas da morte. Sou contado entre aqueles que descem à cova, toda gente me vê como um caso perdido!"

Cansado. Não, essa não é a palavra certa, eu estou exausto de tudo e todos, nem meu corpo e nem a minha mente aguentam mais esse suplício constante que é viver nesse inferno, e meu inferno são os outros. Me encontro no meu Dia da Ira, aquele dia, que todo meu ser se consome num fogo de ódio até se transformar em cinzas frias. Não, eu não estou apenas cansado, estou no meu limite, a beira de um colapso, como um navio prestes a afundar num ponto remoto do oceano que, num ímpeto de superioridade quase divina, o engole sem deixar vestígios. Assim meu sentimento, esse rancor que há muito se acumula, vem me engolindo, me abarcando e envolvendo de tal modo que, como o fogo que converte tudo em fogo, vai transformando cada fibra do meu corpo em puro ódio. 

Estou cansado de fazer o meu melhor, de me esforçar e ainda assim ser tratado como se não fizesse nada, sem consideração alguma, cansado de ser tido como um estorvo durante todo o tempo que não precisam de mim, mas que tão logo precisam, amansam a voz e me procuram com um sorriso amarelo nos lábios. Falsos, monstros. Quero distância ou, se não for possível, apenas ficar perto o suficiente para ouvir os gritos desesperados de dor enquanto são destruídos pelas chamas da ira que eles mesmos ajudaram a despertar. 

O que pensam que eu sou? Alguém que apenas vive para tentar satisfazer seus caprichos, como um escravo ou uma concubina? É só isso, eu devo fazer as suas vontades como um cãozinho que recebe os afagos do dono quando devolve a bolinha que jogaram longe?

"Moribundo e infeliz desde o tempo da infância, esgotei-me ao sofrer sob o vosso terror. Vossa ira violenta caiu sobre mim e o vosso pavor reduziu-me a um nada!"

Já há muito minha forma de relacionar com o outro se baseia na paciência, em tentar compreender as dificuldades e limitações, em tentar ajudar sempre que possível, mas todos estão apenas usando isso como forma de me humilhar, de querer que eu as sirva, o que seria nobre de minha parte se eu não estivesse me matando e ainda sendo obrigado a ouvir as risadas malignas, metálicas como as do demônio, pelas minhas costas, como se eles todos se divertissem com meu esforço.

Após a Titanomaquia os Titãs, em suas existências colossais foram condenados aos mais terríveis suplícios pelos deuses. Cronos fora amarrado ao Templo de Pandora e forçado a vagar sem rumo no Deserto das Almas Perdidas. Ele, que um dia fora o maior de todos os Titãs, agora apenas serve ao deleite de seu filho, que se regozija em vê-lo sofrer diariamente, sem esperança de libertação nem mesmo pela morte, haja vista que sua vida não tem um fim natural e, mesmo quando parecem morrer eles permanecem como uma sombra do que um dia foram, numa existência perene tão ou mais sôfrega do que aquela imposta pelos olimpianos. 

Os Titãs, no entanto, haviam perdido a guerra, e Cronos devorara todos os seus filhos antes de ser destronado por um deles. Cronos recebeu a paga devida pelos crimes cometidos em nome do medo que tinha de perder o seu trono como Governante de Todo o Mundo. Mas e eu, que pecado eu cometi que fosse tão grande a ponto de ser obrigado a viver como humilde servo de humanos tão baixos e imundos quanto eu? Somos todos iguais, então por qual razão eu deveria suportar calado as humilhações descabidas, como se tivesse cometido algum erro? Só estava fazendo meu trabalho, só estava dando o meu melhor que, aliás, é melhor do que aquilo que os outros sequer fizeram. 

"Todo dia me cercam quais ondas revoltas, todos juntos me assaltam, me prendem, me apertam. Afastastes de mim os parentes e amigos, e por meus familiares só tenho as trevas!" 

Não quero mais servir a ninguém. Só quero fazer as coisas certas, de modo a tentar melhorar até que fique de algum modo feliz comigo mesmo. Mas não quero a aprovação deles, pelo menos não de todos eles. 

Alguns eu gostaria de fazer feliz, alguns eu gostaria de agradar, mas apenas se isso os fizesse me notar, me enxergar como alguém de verdade. Mas não importa o quanto eu tente, não importa o quanto eu me esforce eles só percebem o que eu posso fazer, mas não em enxergam. E quem eu sou de verdade? Quem eu vejo ao me olhar no espelho? 

Eu só alguém que, perdido no mundo, tenta compreender um pouco a realidade que me cerca. Estou perdido mas tentando me orientar de algum modo. Mas eles não enxergam isso, e eu deveria relevar as pequenez de suas mentes que não se importam com nada disso. No entanto, eles me tratam como lixo, um nada. Comtemplar a minha imagem no espelho é ver um nada, eu vejo um homem destruído por uma ira violenta, sequer reconheço o que sou, um homem, besta, fera? Esgotado sob o peso que joga sobre mim. 

Gabriel refaz isso, compra aquilo, isso não tá bom, isso pode melhorar. E ninguém pensa no quanto deve ser difícil pra mim, ninguém sequer considera que o que eu faço, é meu melhor. E eu não posso fazer mais do que lamentar que o meu melhor não seja suficiente. O meu grito de desespero não é ouvido por ninguém. 

"Moribundo e infeliz desde o tempo da infância, esgotei-me ao sofrer sob o vosso terror. Vossa ira violenta caiu sobre mim e o vosso pavor reduziu-me a um nada!" 

Infelizmente o que me resta agora é apenas o ódio. A vontade de sumir, não apenas ir para outro lugar mas de desaparecer completamente, de sumir sem deixar vestígios e deixar que se virem, que se lasquem. Não para prejudicar o santo serviço da igreja, mas para que aprendam que na dificuldade nem sempre conseguimos corresponder aos desejos dos outros, as vezes tudo o que podemos fazer é o nosso melhor, ainda que pareça insuficiente, ainda é o meu melhor. 

Só lamento que meu melhor não seja suficiente para quem eu amo. Que ele não me note mais do que como um conhecido eventual, que ele percebesse a singeleza do meu sentimento mais genuíno. Eu só queria, afinal de contas, sem bom o suficiente para ele, e que todos os outros se explodam. 

Daí o meu Dies Irae, a destruição de tudo, do tudo que retorna ao nada, de todos os seres inferiores sendo destruído, sendo reduzidos a sua insignificância que eles disfarçam de arrogância tremenda. A esses o meus mais profundo desprezo e desejo que de sofram, não por minhas mãos, mas que recebam da justiça divina a paga devida pelos seus desvarios, pelos seus devaneios de grandeza. 

Mas o meu Dia da Ira sempre se volta contra mim, é sempre em meu corpo que se abrem as feridas de ódio, é sempre meu corpo que escorre finas linhas de sangue, é sempre dos meus olhos que escapam as lágrimas. E eles nada sentem. A saúde mental de todos é colocada em primeiro lugar mas, quando eu faço isso, estou sendo preguiçoso, sou culpado, não merecedor de clemência. Tudo o que posso fazer é vagar e meio a uma terrível tempestade, sendo atingido pelos golpes violentos do destino que tentam me destruir completamente. E isso não me entristece, pelo contrário, apenas me faz desejar receber com todo o impacto a força do golpe do martelo de guerra, ser destruído e desaparecer, pouco a pouco, após as últimos acordes descendentes dessa sinfonia trágica. 

~

*Citações em itálico do salmo 87 (88), versão das Completas da Liturgia das Horas.

Páginas

Sonhei com ele durante toda a noite, e acordei como se pudesse sentir ainda o seu corpo com os meus braços ao seu redor, a lembrança da sua voz, do seu sorriso e do seu toque viva em minha mente. Não preciso dizer o quanto fiquei triste ao perceber que tudo não passou disso, um sonho, um produto dos desejos mais profundos do recesso da minha consciência. 

Me recordo de termos nos encontrado em minha casa, eu envergonhado de recebê-lo num lugar tão inadequado, até em sonho eu me recuso a chamar isso de lar. Ele não pareceu se importar. Durante o que pareceu um dia inteiro ficamos juntos, conversamos, brincamos e, ao cair da noite eu finalmente tive coragem de dar o primeiro passo, que ele também estava esperando. A alegria que senti ao perceber que era correspondido me fez vibrar em júbilo. Quando ele segurou a minha mão pela primeira vez eu sorri de forma tão genuína que eu nem me lembrava mais como era um sorriso assim, tão verdadeiro. 

Acordei com esse sorriso ainda estampado, apenas para acostumar meus olhos a escuridão do meu quarto e o vento que barulhava ao entrar na janela e que, tocando meu rosto, me fez perceber que na verdade tudo não passou de um sonho. Quando essa constatação se deu eu senti o frio com ainda mais intensidade, meu corpo se encolheu e eu fechei os olhos, torcendo para voltar a sonhar novamente com ele ao adormecer, num desejo de que ao menos ali, naquele mundo onírico, eu pudesse ser feliz ao lado dele. 

Agora, desperto, eu me pergunto acerca das razões, das raízes por trás desse sonho. Seria um sinal genuíno do sentimento que eu sinto por ele e que, ao meu ver, trata-se de algo verdadeiro, ainda em gérmen, mas que se mostra de um delicado desejo de companheirismo. Ou seria apenas um outro sinal da minha carência habitual e contida, se revelando em sonho após um breve momento de atenção recebida e manipulada pela minha mente distorcida? 

Acredito que seja uma tensão entre ambas as opções. Por um lado a minha carência é sempre responsável por criar ilusões que se desfazem como poeira entre meus dedos, seja ao acordar literal ou figurativamente. De outro modo o que sinto, ainda que fruto dessa carência, é também verdadeiro sob certos aspectos. O encantamento, o carinho que eu tenho por ele ainda tem um caráter genuíno aqui dentro. 

Penso agora na marca que esse sonho deixou em mim. Na forte impressão que ele deixou em mim, tão forte e profunda que eu gostaria de tê-la registrado no momento mesmo em que acordei, mas o desejo de voltar a dormir acabou me dominando e boa parte daquela impressão acabou se perdendo por entre as nuvens do meu sono, como o rastro de luz deixado por um cometa, como as pétalas de uma rosa que se desfez no vento mas que ainda guardo na memória a beleza da flor. Algo sobreviveu, de modo quase perene, e mesmo que eu não consiga mais dizer com precisão tudo o que sinto ainda consigo sentir, lá no fundo e, ao menos eternizar aqui, que algo dele se marcou em mim e provavelmente nunca mais se desfará, marcando-se nas paredes da minha história, escrito com letras imortais nas páginas do meu coração. 

domingo, 21 de março de 2021

Profundidades

Observar, nomear, dar sentido as coisas, essas me parecem algumas das atribuições mais básicas do homem. Desde Adão no jardim que teve como missão dar o nome aos animais a humanidade continua dando nomes e sentido as coisas que a cercam. Eu me pego muitas e muitas vezes tentando entender a razão por trás do ser, claro, quase sempre sem algum sucesso, parece que as coisas existem porque sim e isso é tudo o que eu posso dizer sobre elas. Mas ainda assim não há como evitar esse ímpeto de querer entender, como uma criança que importuna a mãe de perguntas também o simples ato de abrir os olhos me enche de perguntas. 

Me pergunto, nesse momento, da razão para escrever. Mesmo sabendo que pouquíssimas pessoas leem o que eu escrevo, e que deveria investir em algum técnica de compartilhamento pra alcançar mais pessoas, eu ainda continuo sentindo essa vontade. Parece que as coisas se acumulam, de algum modo, dentro de mim. Eu vou observando, meditando, guardando, mas logo transborda, e a única forma que eu conheço para colocar tudo isso para fora é escrevendo. Ainda que minha habilidade seja limitadíssima, e eu sempre repita os mesmos giros de linguagem na tentativa de que eles consigam expressar com a maior verossimilhança possível o que se passa dentro de mim eu continuo precisando me expressar por palavras, cada sentimento que me vem, seja a alegria singela de conseguir uma pequena vitória, como fazer uma maquiagem ou dançar no TikTok, ou as experiências mais cruéis, como sentir-se traído e esquecido. 

Essas coisas se juntam em mim, e parece que só as palavras têm o poder de, como um cálice, pegar um pouco disso e derramar fora do meu coração. As palavras são aquilo que transborda da minha alma e parece que, se não escrever, eu ficaria paralisado com tantas coisas para sentir. 

Muitas vezes é difícil conseguir dizer o que se passa aqui dentro, e me vejo como uma criança balbuciando sem conseguir dizer o que realmente se quer dizer, mas ainda assim é alguma coisa. Ao menos quando leio ou estudo aprendo novas formas de dizer e, pouco a pouco, vou formando minha própria forma de contar ao mundo o que se passa em mim. 

Talvez daqui alguns anos eu consiga expressar melhor a solidão que me acompanha diariamente, o sentimento de vazio e insuficiência, os medos infantis que guardo, a carência que me consome. Mas, por hoje pelo menos, o que me vem é isso: falar sobre a necessidade que tenho de falar, não sobre banalidades o tempo todo, mas sobre as profundidades que há no meu abismo interior. 

sábado, 20 de março de 2021

Interesse

Interesse. É algo que faz com que as pessoas tenham certa força de vontade para realizar, ou não, alguma coisa. O grau de interesse define o comprometimento com a causa, quem se interessa não poupa esforços para realizar o que se propõe. 

Vejo, não sem grande tristeza, que isso faz com que ainda dessa forma o interesse de um não seja suficiente para realizar bem algo que exige o comprometimento de muitos. Quando apenas um se interessa, quando apenas um está comprometido, a coisa não funciona. 

Digo isso em relação as atividades da paróquia. As pessoas parecem simplesmente não ter o mínimo interesse nisso, ao mesmo tempo que querem cobrar que tudo dê certo, que tudo esteja bem e organizado, mas o grau de comprometimento delas não permite que estudem, que se preparem, que façam parte. As coisas ficam então jogadas, como se não tivesse importância alguma. Mas a verdade é que ela continua sendo a coisa mais importante, ainda que ninguém se importe. 

É triste ver que as pessoas ignoram algo tão grandioso como se não fosse nada, como se fosse apenas algo bobo e corriqueiro. É triste ver que a divindade fica escondida por detrás de um vontade pífia, de uma coragem mínima, de um eu que é maior que o próprio Deus. 

Interesse. O único interesse das pessoas é fazer aquilo que lhes é mais agradável, e não o que é certo, e não é preciso ser feito. 

X

Outro aspecto da existência é a forma brutal com que a vida nos faz acostumar com a mediocridade da nossa vida. É quando somos obrigados a acordar cedo pela manhã, olhar ao nosso redor, ver o mundo se despedaçando, e ainda ter de viver normalmente, como se toda a miséria humana que nos cerca fosse tudo o que podemos esperar do mundo. 

O feio, o injusto, o improvisado, a falta de grandeza, de beleza, tudo que mostra o que de pior há no homem deve ser encarado como se fosse normal. E isso me enoja, me irrita, eu tenho pavor de ser homem, tenho horror de ter nascido para ser obrigado a viver desse jeito. Tenho horror dessa mediocridade, tenho horror do que poderia ter sido, do que deveria ser e não é. A potencialidade me enoja. O homem me enoja. A falta de compromisso me enoja. 

X

Eis que de repente o ser é tomado daquela súbita desesperança, daquela vontade de não falar com ninguém, de não responder ninguém. Confrontado com os próprios valores. De que adianta o esforço de acordar cedo toda manhã? De que adianta estudar sem entender, e ainda que entendesse, que resultado isso daria? De que adianta escrever sem ninguém lê, se isso aqui não vale absolutamente nada? De que adianta tudo isso?

É aquela depressão novamente, como uma onda silenciosa porém poderosa como um tsunami, que destrói e leva tudo por onde quer que passe. É de novo aquele vazio, aquela vontade de dormir a não voltar a acordar. Aquela sensação de absoluta falta de propósito, de uma escuridão na alma, um abismo total no lugar da essência. 

E eu só queria ser como os outros. Ter força suficiente para viver um dia inteiro, sem cair, sem desejar a todo momento me desmontar sobre a cama, sem desejar que nada aconteça para que eu não precise me mexer. Eu só queria não sentir esse vazio todo o tempo, não sentir que nada vale a pena, não sentir que tudo, desde respirar até comer é uma grande perda de tempo e um esforço vazio e completamente sem sentido. Eu só queria viver como se cada dia fosse uma dádiva e não uma condenação, e não uma tortura sem fim, eu só queria viver sem desejar que a morte esteja me esperando em cada esquina, amaldiçoando cada despertar, cada novo respirar... Eu só queria viver. 

quinta-feira, 18 de março de 2021

Certeza da Morte

A sentença de morte foi escrita para todo o gênero humano: É homem, deves morrer. Dizia Santo Agostinho: “Só a morte é certa; os demais bens e males nossos são incertos”. É incerto se o recém-nascido será rico ou pobre, se terá boa ou má saúde, se morrerá moço ou velho. Tudo isto é incerto, mas é indubitavelmente certo que deve morrer. (Sto. Afonso Maria de Ligório)

Os dois últimos dias foram, especialmente, mais difíceis e, cheguei a questionar se conseguiria chegar ao final deles, tamanho o desespero que alguns acontecimentos injetaram em mim. 

Como minha mãe não apresentava nenhuma melhora a minha preocupação aumentou e então decidimos pressioná-la para ir ao médico. Qual não foi a surpresa quando o teste apontou positivo para a doença do vírus chinês. O pulmão dela foi bastante afetado, e isso somado a pouca alimentação dos últimos dias resultou na fraqueza que ela vinha sentindo e relutando em melhorar. 

Acho que isso foi um grande choque pra ela. A imagem que se seguiu foi a de minha mãe agarrada a própria existência, como se segurasse com força enfiando as unhas na madeira de um barco prestes a se desfazer em meio as águas revoltas de um oceano em fúria. Elas tinha os olhos marejados, e como sabe que eu sou depressivo tentou esconder, mas sou mais observador do que ela pensa.

Na verdade eu não fiquei triste com isso, pelo contrário, eu vi um brilho no olhar de quem queria viver, de alguém que ainda não tinha desistido. Isso me deixou feliz além da conta, afinal a minha mãe é a pessoa mais importante que eu tenho. 

Ela começou a tomar os remédios corretamente, e a melhora já é perceptível. A apatia lentamente dá lugar a um ânimo tímido mas crescente. Ela comeu bem mais hoje do que nos últimos dias todos, e está se sentindo claramente mais forte e bem humorada. É algo realmente notável. 

Claro que receber a notícia mexeu um pouco comigo, e eu retornei aqueles antigos exercícios espirituais de preparação para a morte. É importante uma visão firme da crença na vida eterna para não se deixar abalar numa situação como essa. O sofrimento humano é parte intrínseca da nossa existência, é consequência do pecado original. A morte, no entanto, não é uma punição, mas uma passagem, e enxergar esse fim é de uma maturidade cristã. Saber lidar com a morte é uma coisa boa, enxergá-la como uma velha amiga, sem desespero, mas com confiança, como ensina São Francisco de Assis. 

No mais agora é esperar que as coisas melhorem gradativamente. Rezar com confiança pois "aqueles que contam com o Senhor renovam suas forças; ele dá-lhes asas de águia. Correm sem se cansar, vão para a frente sem se fatigar." (Is 40, 31) E agarrar-se a vida, não desistir em meio a tempestade, agarrar-se como aquele náufrago que, abandonando tudo ao mar, se prende a única coisa que é verdadeiramente sua: a vida. 

Mesmo sendo eu um niilista que não tem quase apreço nenhum pela própria vida o mesmo não se dá com a vida do outro. O medo se dá em contraste com o medo de perder aqueles que amo, de causar neles alguma dor. Imagine se agora eu desistisse de tudo e desse cabo da minha vida? Minha mãe certamente morreria de desgosto. Ela é tudo o que tenho, e não posso, em hipótese alguma, machucar ainda mais quem tanto se sacrificou por mim. 

Permitir que vos ame, ó Deus digno de infinito amor! Recebei o traidor que, arrependido, se prostra a vossos pés e vos pede misericórdia. Amo-vos, meu Jesus, de todo o meu coração e mais que a mim mesmo. Sou vosso; disponde de mim e de tudo que me pertence, como vos aprouver. Concedei-me a perseverança em vos obedecer; dai-me vosso amor, e fazei de mim o que quiserdes. Maria, mãe, refúgio e esperança minha, a vós me recomendo; a vós entrego minha alma; rogai a Jesus por mim. (Sto. Afonso Maria de Ligório)

terça-feira, 16 de março de 2021

Vontade

Cansado demais para conseguir continuar seguindo em frente. Na verdade já há muito eu não sei o que é seguir em frente. Estou estagnado, sem esperanças, apenas vivendo um dia após o outros, com a simples aglutinação de problemas. 

Pode parecer estranho dizer isso, porque eu não tenho demonstrado a completa desilusão que eu tenho acerca da vida, mas eu posso dizer que nunca estive tão próximo de cometer um suicídio. Isso porque eu me vejo numa situação tão desesperadora que já não é mais possível ver solução. 

Nosso dinheiro é cada vez menor. Continuamos em casa e comendo cada vez mais mas a renda não aumentou, antes disso, diminuiu, e a quantidade de pessoas aumentou. É desesperador e, pra ser sincero, não há uma luz no fim do túnel. Fui tomado por uma desesperança tão profunda que já não vejo nada além da escuridão abissal. 

Mas de onde surgiu isso? De uma aglutinação de problemas: acrescentando um depois do outro e após outro. É a doença dos meus pais, a minha depressão crescente, a desilusão com meu futuro, medo, solidão. carência. São muito elementos, embora eu não tenha forças para descrever cada um deles aqui. Mas são muitos, como um enxame de abelhas ao redor da minha cabeça. 

Eu não sei o que fazer, me encontro completa e absolutamente perdido, distante, aéreo. E não sei o que pode me tirar disso. É um desânimo que não me permite erguer as mãos, dar um passo sequer. É um abismo, caminhando na escuridão sem nenhuma luz que possa me guiar. E agora eu, pobre, que farei, que patrono invocarei? 

Não tenho vontade para mais nadar. Levantar ou ouvir música, ver vídeos, ler ou estudar, enfim, não tenho vontade para mais nada, não tenho...

"Cheguei numa fase da minha vida que vejo que a única coisa que fiz até agora foi fugir, fugir de mim mesmo, do meu nada, e agora não tenho mais para onde ir, nem sei o que vou fazer, fui péssimo em tudo." (Charles Bukowski)

segunda-feira, 15 de março de 2021

Olhos de fera

Eu nunca fui uma pessoa muito otimista, desde bem novo, reclamar sempre foi um hábito, e esperar pelo pior a minha primeira reação. Acho que a melancolia já era algo quase como predeterminado para mim, talvez já estivesse destinado a ter um futuro deveras depressivo.

Hoje eu me vejo obrigado a ficar de pé, já que meus pais estão bem mais doentes do que eu, e tendo que tomar a liderança no comando da casa, por assim dizer. Enquanto eles estão assim é minha responsabilidade cuidar deles, muito embora eu não saiba até quando eu vou conseguir fazer isso. 

Sei que muitas pessoas não tem essa possibilidade, não podem ficar deitadas olhando pro teto sem nenhuma razão na existência pois todas elas precisam se preocupar com uma realidade ainda mais urgente: elas precisam comer. 

Tenho experimentado um pouco dessa realidade. Muito embora ainda esteja longe de precisar trabalhar para comer eu me vejo bem mais apertado do que de costume. A perspectiva de fazer comida, prestar atenção na alimentação dos meus pais, no dinheiro, na arrumação da casa. A responsabilidade de fato é uma coisa que amadure à força, e eu nunca duvidei do motivo para isso, mas ao que me parece chegou a minha vez. 

Não é uma perspectiva nada bonita, muito pelo contrário. Claro que eu também não sou louco ao ponto de ver isso de uma forma romântica, como tantos fazem, cantando as belezas de uma vida em que somos obrigados a levar nosso corpo e mente ao limite apenas para não morrer. Não há beleza nisso.

O que sinto é meu corpo protestar, minha mente falhar por não estar habituado a essa pressão nem essa rotina e, como disse, não sei por quanto tempo. A depressão continua a me rodear, espreitando, esperando o momento certo para me derrubar uma vez mais. Parece que ela está me ameaçando, escuto como uma voz dizendo que não devo me contentar com essa força, que logo mais estarei de volta ao lugar de onde nunca deveria ter saído. Ela me espera lá, no fundo do abismo, me olhando com suas pupilas amarelas, buscando me devorar...

Tigre, tigre, que flamejas

Nas florestas da noite.

Que mão, que olho imortal

Se atreveu a plasmar tua terrível simetria ?

domingo, 14 de março de 2021

Resenha - You Never Eat Alone

A nova produção da COPY A BANGKOK chamou a minha atenção ao apresentar um cast cheio de nomes conhecidos e uma proposta bem interessante: uma comédia culinária, ou quase isso. A série não conseguiu muitos espectadores por aqui, pelo menos eu não vi muita gente comentando e nem os atores, que eu já sigo há um bom tempo, eu vi divulgando muito. Não sei explicar a razão disso afinal eu gostei bastante por vários motivos. 

You Never Eat Alone conta a história de Diew, um garoto que tem uma característica muito peculiar: ele não consegue comer sozinho. Após descobrir que seus pais vão viajar por alguns meses ele se muda para um daqueles dormitórios perto da sua universidade, na esperança de fazer amigos e assim conseguir companhia para as refeições, e é aí que ele conhece uma porção de gente, especialmente Mix, Porsche e Mueang, que são os que mais aparecem, mas quase todo episódio tem uma aparição especial, num grande fanservice, em muitos momentos engraçados e fofos. 

Diew (Peak Peemapol, de Make It Right e Hook) é um menino delicado, curioso e que adora cozinhar, herança de uma antiga tradição de família que considera as refeições como momentos especiais que devemos partilhar com pessoas que nós amamos. Ele aprendeu com a avó então que as pessoas sempre devem comer juntas e, depois do falecimento dela, ele não conseguiu mais comer sozinho. Seu caso acaba ficando ainda mais sério, pois isso não é só uma expressão, ele realmente fica sem comer até o ponto de ser internado por não conseguir comer nada sozinho. Para tentar então resolver isso ele sempre vai atrás de novas pessoas para comer. 

Quem sempre come com ele é Mix (Zee Pruk, de WhyRU), um rapaz com uma veia artística aflorada, que costuma sentar de frente para belas paisagens para desenhar. Ele e Diew se conhecem depois de algumas coincidências, e depois descobrem que são vizinhos, e os dois tem em comum a característica de não conseguirem comer sozinhos, embora fique claro que seu caso não é como o de Diew, já que ele consegue se se esforçar um pouco. 

Mueang e Porsche também moram no mesmo dormitório de Diew e Mix, e comem muitas vezes com os amigos também. Eles são engraçados, mesmo diferentes continuam juntos e se preocupam muito com Diew, além de sempre aproveitarem as deliciosas refeições que o amigo faz. 

O que mais me chamou atenção foi justamente a superação do trauma de Diew. Depois de alguns episódios eu comecei a traçar um paralelo com o Transtorno de Personalidade Borderline, que nele se manifesta como uma monofobia, um medo mórbido da solidão. Acontece que, nesse transtorno, a pessoa tem uma sensibilidade afetiva tão grande que seus relacionamentos e comportamentos se tornam todos extremamente instáveis, o que causa muitos prejuízos a todos aspectos da vida da pessoa. Geralmente o Borderline possui instabilidade emocional, uma recorrente sensação de inutilidade, insegurança e muita impulsividade. 

Diew se sente uma pessoa incompleta por não conseguir fazer algo tão simples quanto comer sozinho. Ele se culpa e se entristece muito por isso. Ele chega a tomar atitudes como vigiar um garoto nos arredores de um templo só para descobrir se ele tinha com quem comer, ou então pedir comida e pagar a mais para o entregador apenas para não ficar sozinho. Muitas vezes isso é seguido por crises existenciais, em que ele termina uma refeição já pensando na próxima e se culpando por não ter conseguido comer só. Isso dá uma profundidade a mais pra série, mas sem esquecer que é uma comédia quase pastelão, eu mesmo só percebi isso depois de refletir um pouco e me deparar com um vídeo sobre o assunto, que é um dos meus interesses já que eu também tenho um transtorno de personalidade. 

Nas aventuras do nosso protagonista nós temos a presença de muitos convidados especiais. Temos, de modo quase recorrente, Muse (Leo Peerapun, de Friend Forever) que é primo de Mix, um rapaz grande mas muito mimado e que precisa dos cuidados do mais velho. Também tem Dang (Tai Thanaphat, Friend Forever), priminho de Diew, muito elétrico e uma coisinha fofinha, mas que vive as implicâncias com Muse.


Dos outros convidados temos Boom Krittapak, que foi par de Peak em Make It Right, num episódio bastante nostálgico. Foi muito bom ver os dois juntos depois de tanto tempo e ver que ainda tem bastante química. Também tivemos Jimmy e Tommy e MaxNat de WhyRU, Boun e Prem, de Until We Meet Again e Title, de Love By Chance. Isso deu uma dinâmica muito legal pra série. Cada personagem tem uma paleta de cores diferente, o que deixa tudo mais bonito e, junto com os muitos pratos que todo episódio aparecem, tornam a experiência bem interessante. Aliás, a fotografia da série é linda, além de que todos, mas especialmente Peak e Zee estão simplesmente lindos nessa série, e todo episódio tem muitas razões pra gente suspirar pelos dois.

Infelizmente a história não evolui muito e, com exceção de dois ou três episódios é sempre a mesma coisa, Diew surtando, procurando alguém pra comer e, eventualmente, se sentindo mais próximo de Mix. A gente até chega a acreditar que o lance entre os dois vai evoluir mas não, nem se iluda, tudo fica só na sugestão, mesmo que tenha ficado bem óbvio que os dois se gostam. Poderiam ter explorado um pouco mais a superação do trauma do protagonista, e não só estagnado na problemática, bem como no relacionamento dos dois. Okay, talvez não quisessem tornar um BL, mas se não fosse assim não haveriam tantas cenas com trocas de olhares e gestos sugestivos entre eles. Não fosse isso a série teria conseguido combinar bem a comédia com um drama real na medida certa e uma pitada de romance. 

Nota: 07/10

quarta-feira, 10 de março de 2021

Dessas coisas

Parece que o felizardo vencedor da roda da fortuna nessa semana aqui em casa fui eu. Depois que os meus pais começaram a se recuperar eu passei a sentir as primícias dos sintomas, os mesmos já tão habituados da gripe típica dessa época do ano. Afora a febre do vírus que faz as pessoas se esquecerem que existem outras doenças e absolutamente tudo é sinal de coronavírus eu estou bem, não é a primeira e decerto não será a última gripe do professor que ora vos fala. 

Desde ontem comecei a sentir uma pequena pontada na cabeça, fina e contínua, lá no finalzinho. Hoje já amanheci com algumas dores pelo corpo e uma dor  de cabeça bem mais presente. A dor foi aumentando gradativamente ao longo do dia, deixando meus membros um pouco mais pesados e vários pontos, como costas e músculos dos braços, já bastante doloridos. Uma vontade de ficar deitado se apossou de mim, o que é bem estranho de se notar visto que a depressão já faz isso por mim normalmente. Um desconforto geral apertando a garganta e me impedindo de dormir, embora ao mesmo tempo me impeça de fazer qualquer coisa. A despeito disso ainda consegui assistir duas aulas com excelente rendimento. Doente sim, burro nunca!

A preocupação, mais dos outros que minha mesmo, me fez decidir ficar em casa alguns dias, fazendo a difícil escolha de me abster da igreja, o que certamente vai resultar em resultados péssimos, sempre acaba acontecendo algo errado quando eu falto e dessa vez não vai ser diferente. 

Só espero ainda ter forças para terminar de acompanhar os lançamentos BL dessa semana, podendo ficar dormindo durante o dia e só disposto por algumas horas à noite, não é um negócio ruim, espero que o charme da minha dopada candura colabore. 

A dor, física, é um momento particularmente especial para se refletir acerca da presença física do ser. Quem nunca percebeu da falta que faz uma respiração decente quando o nariz fica entupido? O mesmo se dá numa gripe, quando o corpo todo protesta contra uma coisa tão pequena dentro de nós que parece até que está combatendo a si mesmo, querendo se desfazer nos suores de uma forte febre. Mas é só a natureza fazendo seu estranho trabalho de combater uma infecção aumentando a temperatura do corpo ainda que isso também mate o corpo, a vida tem dessas coisas.  

X

As dores pioraram ainda mais hoje, após uma noite conturbada entre febres e delírios, acordado de hora em hora incomodado pelo frio ou calor repentinos. O resultado é uma fadiga crescente que, no entanto, não pode ser contida dormindo, visto que o incômodo nas articulações e músculos não me permitem relaxar de modo algum. 

A sensação geral é a de que meus ossos estão sendo arrancados de mim, e que a minha carne está sendo rasgada por archotes em chamas. É uma agonia crescente, bem como uma sensação de tédio que não diminui de modo algum, aumentando ainda mais a saudade de quando estava tudo bem, mesmo que eu saiba que já faz tanto tempo que nada está bem, apenas força de expressão. 

Os chás, unguentos e caldos já me enchem também, tudo muito quente e temperado, com o mesmo cheiro enjoativo daquelas comidas de hospital, já que minha família debita toda e qualquer doença na conta da fraqueza por não comer direito, coisa que eu realmente não faço. A minha única vontade é de dormir e acordar novamente daqui uns cinco dias, quando as dores já começarem a diminuir e eu pare de andar como quem acabou de ter um filho ou passou por um cirurgia complicadíssima que pode se abrir a qualquer momento. Frescura. 

Percebi hoje o quanto aquela crença geral de que mulheres são mais fortes está coberta de razão: minha mãe doente ainda se esforça ao máximo para fazer as coisas, ela mesmo sem nenhuma disposição ainda cozinha, lava e passa, até nos piores dias. Eu, no segundo dia, já estou levantando as mãos pro céu pedindo misericórdia. Resistência zero, uma vergonha. 

segunda-feira, 8 de março de 2021

Como criança

Acho que o contato do homem com a perspectiva da própria morte é algo de singular poder sobre o homem. É o momento de repensar o que se fez e, não sendo mais possível fazer planos, fazer um balanço da própria vida. Felizes, penso, aqueles que podem morrer tendo realizado aquilo que buscaram, que sentem ter alcançado o que queriam, mas me refiro especialmente aqueles que tem uma visão realista de si mesmos e do mundo que nos cerca, que tem consciência do que se pode fazer e do quanto se pode alcançar. 

Um fato que me chamou particular atenção nos últimos dias, e que comentei num texto anterior, é a perspectiva de uma doença que afetou os meus pais. Ambos são bastante difíceis de se abater, dificilmente demonstram algum tipo de fraqueza mesmo quando a situação transcende obviamente as suas capacidades. Ao contrário de mim eles não costumam demonstrar apatia e nem mesmo mesmo desespero, tampouco completa desesperança. 

No entanto, nos últimos dias, vi algo que nunca tinha visto ou sentido de verdade, o sentimento de perdê-los, uma vez por todas. 

Admito que minha relação com a morte não é algo que me apavora a ponto de nunca tocar nesse assunto, como muitos que conheço que preferem fingir que ela simplesmente não existe. Eu, por outro lado, sou até mesmo mórbido às vezes. Mas, pela primeira vez na vida adulta eu senti essa insegurança ante a perspectiva da morte dos pais, algo que certamente marca o amadurecimento de todo adulto. Eu me recordo bem da postura dos meus pais quando meus avós faleceram. Vi a tristeza no olhar, claro, mas também vi que a força que precisariam para continuar já estava ali com eles, adquirida dos muitos anos de vida e experiência. Eles não se desesperaram, antes disso, ergueram-se e seguiram em frente. Como adultos. 

Minha mãe ficou de cama alguns dias, reclamando de fortes dores e indisposição, como uma gripe bem forte. Claro que em meio a pandemia a preocupação caiu logo no vírus, muito embora eu não veja motivos pra pensar nisso, dado a convivência que tivemos com várias pessoas contagiadas desde o ano passado. A probabilidade de não ter sido infectados é baixíssima na realidade, eu mesmo fiquei em contato próximo com o padre e com pessoas da saúde que tem contato diário com os doentes. Não foi possível o isolamento total mas não fomos displicentes. 

O meu pai também sentiu as mesmas coisas, mas ele não parou quando o corpo pediu e continuou trabalhando, o que só piorou o cansaço e as tosses fortes, especialmente pela terrível mania que ele tem de andar na chuva. Agora está ali, na cama, enquanto minha mãe tenta uma consulta no hospital. 

Eu disse tudo isso, na verdade, para chegar ao episódio breve em que minha mãe revelou ter medo de que pudesse ser a doença da moda e que, se assim fosse e ela viesse a falecer eu deveria ir morar com a minha tia e tentar seguir a vida de algum modo por aquelas bandas. Foi uma conversa de fato breve e eu logo cortei o assunto. Mas, claro, isso me marcou, principalmente o fato de que, em perspectiva da própria morte ela se ocupava de pensar em mim primeiramente. Isso me deixou com um gosto bem amargo na boca, admito, e queria, por um momento, como uma criança, simplesmente resolver as coisas com o poder de uma mente imaginativa que conserta tudo com algum poder mágico. 

Percebi, bem aí, o quanto eu ainda sou imaturo. Mórbido o suficiente pra falar da minha morte, e de como minha existência sem sentido pode ser facilmente desfeita, mas e a dela? Trataria sua vida com a mesma falta de valor? Eu realmente acho que a vida de todos poderia ser tranquila sem mim, eu não sou importante, mas eu conseguiria viver sem ela? Pensar em cada uma dessas perguntas me causa arrepios, o que só marca mais profundamente em mim a constatação de minha imaturidade, da forma estúpida como eu encaro as coisas e que, na realidade, mesmo filho de pessoas fortes eu sou só um moleque chorão, deprimido demais pra conseguir ajudar ou ser realmente útil e que ainda treme, como se tivesse doe anos, ao pensar na possível e absolutamente provável morte dos pais. 

sexta-feira, 5 de março de 2021

Futuro incerto

A situação é absolutamente calamitosa. De um lado vemos uma população despreocupada com a situação da saúde pública no país e, de outro, uma sensação geral de medo e apreensão crescente, para não falar do desespero declarado. 

As pessoas têm uma capacidade muito limitada de suportaram as adversidades, com o tempo a normalidade toma conta da percepção e o senso das proporções fica prejudicado. Nos acostumamos com os altos números de mortes, tornou-se normal ouvir dizer que fulano morreu por causa do vírus. Até na igreja as pessoas se preocupam com a quantidade de pessoas na assembléia. 

Por outro lado, aqueles mais sensíveis voltam a fazer com que o medo paire pelo ar. Aqui em casa, os sintomas fortes de uma gripe em minha mãe nos deixou em estado de alerta. Ela foi acometida pelo compreensível medo, já fala coisas sobre o que fazer após a sua morte, um sinal claro de desespero junto com uma morbidade já compreendida. 

É uma situação amarga, o desconforto é tão grande que o normal é colocado à força por medo, as aglomerações se multiplicam e é nítido que o desespero vem piorando ainda mais a autoimpregnação de que está tudo bem, mesmo quando as coisas ficam cada vez piores. 

E as previsões são ainda piores. A vacinação tem sido pífia, aqui na cidade o prefeito comemora a aplicação de pouco mais de 2.500 doses num município com 200 mil habitantes. É, no mínimo, lamentável. As notícias tentam fomentar a conscientização mas acabam piorando tudo, as brigas políticas custam vidas e mais vidas. O nosso futuro é incerto, claro, como sempre o foi, mas parece ser ainda mais cinza do que esperávamos... 

O que podemos fazer? Depois de um ano ninguém aguenta mais falar sobre ficar em casa, ninguém suporta mais reunião online e lives toda hora. Depois de um ano ninguém sabe mais o que fazer, o novo normal tornou-se andar brincando face a face com a morte, não que antes já não fosse assim, mas a situação hoje é bem pior, com um vírus letal somado a todas as outras adversidades que já enfrentávamos... 

Mais um sonho

Foi um daqueles sonhos eróticos que marcam, mais pelo sentimento que deixam no peito apertado, do que no arfar da respiração ao acordar. Eu já deveria estar acostumado a sonhar com você, até porque penso em você durante boa parte dos meus dias, mas ainda assim a impressão que fica é bem forte. 

Rememorar aquelas cenas, cada toque, movimento, as palavras e sorrisos que eu não poderia descrever aqui. Essas coisas fazem meu coração partir-se em dois. Se, por um lado, me sinto aquecido ao sonhar com você, especialmente depois de estar realmente contigo, é como se meu corpo atestasse que o que sinto é verdadeiro. Mas, de outro modo, eu sinto que esses sonhos só me enchem de uma esperança fugidia, que eu não deveria alimentar em hipótese alguma. 

Eu sei bem que você tem mentido pra mim, escondido seu relacionamento para não me machucar ou para que não surte como já fiz antes, mas eu sei da verdade e apenas finjo não saber porque, pelo menos por alguns instantes quando estamos juntos, eu posso fazer de conta de que realmente não sei de nada e que você está aqui por mim. 

Sempre que acordo eu sou tomado por uma violenta sensação de vazio. Vazio por saber que esses sonhos são apenas isso, e nunca se concretizarão, pelo contrário, é provável que eu seja um condenado a solidão, que esteja aqui apenas para ver os outros, sem viver um amor eu mesmo. Sou apenas um observador, da sua vida aliás. 

Até quando, me pergunto, eu serei obrigado a viver esse vazio? Até quando serei um mero coadjuvante inconveniente na vida de tantos? Até quando viverei entre príncipes não sendo eu mais do que uma longa coleção de fracassos e desistências? E meus sonhos, como esquecer? 

quinta-feira, 4 de março de 2021

Vento e mar

Os últimos dias têm sido particularmente difíceis. Tenho experimentado uma estranha combinação que, no entanto, não é nova mas ainda causa grandes estragos em mim. É um amálgama de tesão ocasionado por hormônios descontrolados desde que parei de tomar os remédios do psiquiatra, bem como uma crise depressiva devastadora. E é estranho sentir essas forças conflitantes dentro de mim, uma delas me forçando a completa apatia, enquanto a outra se comporta como uma fera sedenta, com todos os adjetivos que isso possa implicar. 

Me tornei apenas um campo de batalha, e não consigo reagir contra nenhuma dessas forças, estou passivo observando essa tempestade, mar e vento, brigando entre si pelo controle do meu ser. 

Sinto, por várias vezes, que estou prestes a enlouquecer, quando o desejo se torna forte demais para controlar, ou quando não consigo sequer lavar o rosto ou me olhar no espelho sem enxergar um monstro, muitas vezes completamente despersonalizado, sem reconhecer o que sinto, penso ou faço. 

Já não sei mais quem eu sou ou o que estou fazendo da minha vida, tem dias que eu quero estudar, voltar a dar aulas, e tem dias que eu só quero desaparecer, voltar ao nada. Quem sou eu? O que eu devo fazer nessa vida? Onde está o sentido? Para onde me levarão essas forças conflitantes? O que eu deveria fazer? 

Ao mesmo tempo que eu gostaria de poder dizer isso a alguém, além de apenas escrever aqui, eu acho que seria melhor se nem mesmo escrevesse. Ninguém entende, não é possível que entendam esse ímpeto demoníaco que está prestes a se romper, e quantas vezes já não interpretaram errado o que disse? Apenas serviria de mais confusão. Mesmo eu querendo dizer a ele o que sinto, mas sem saber realmente o que sinto, se é amor ou apenas uma desejo monstruoso. Eu não quero ser um monstro. Também não quero ser esse ser homem sem forma largado na chuva, chafurdando na lama. 

E me sinto sozinho. Todos os dias, desde o momento em que acordo até o anoitecer, como se mesmo numa casa cheia eu ainda estivesse jogado num deserto sem ninguém, sem saber para onde devo ir. Me tornei apenas uma confluência de confusões que já não consigo mais rastrear a origem e que apenas me dão uma sensação geral de que estou completa e absolutamente perdido, sem saber o que fazer da vida, sem razão alguma para continuar vivendo, apenas como um desperdício de espaço. Para que serve uma pessoa que não faz nada? Não há razão para minha existência, eu sou um erro. Minha vida é um livro fechado que não admite que eu escreva nada nele. E eu sequer saberia o que escrever pois nem mesmo sei quem sou... Eu já não sei mais nada. 

quarta-feira, 3 de março de 2021

Nada mudou

Tenho lutado contra algo dentro de mim. Já há alguns dias eu sou assolado por pensamentos ruins, daqueles que me fazem querer desejar o fim. Pensar na morte é, para a maior parte das pessoas, algo temeroso, mas eu penso nela como algo libertador, penso nela como algo capaz de me livrar das coisas horrendas que eu sou obrigado a ver diariamente, como se ela fosse a rainha com poder de executar os meus algozes, que me maltratam com uma miséria moral e espiritual sem tamanho. A depressão veio mais forte do que eu esperava sem os remédios.

Mas pensar na morte dessa forma é renegar o dom da vida, algo que deveria ser o bem mais precioso de todos os homens. Acontece que eu não consigo de forma alguma ver a vida desse modo, antes disso, eu a vejo como um eterno suplício, dias e dias de sofrimento, dor, incompreensão, desespero e falta de amor, intercalados por brevíssimos momentos de luz, que me dão alguma nota de esperança, apenas para me fazer mergulhar novamente no oceano de horrores que é enfrentar a realidade. 

Estou paralisado, em cima de uma cama, sem forças sequer para sorrir ou responder em voz alta quando me perguntam. Meu coração foi tomado de ervas daninhas que sugaram todas as minhas forças, e elas não floresceram, antes disso, tornaram meu peito um pântano onde nada de belo pode nascer. 

Muitos são os meus desejos, ficar famoso escrevendo, conseguir cantar bem uma missa, ou apenas aproveitar bons momentos com meus amigos. Mas para nada disso me restam forças. Eu sequer consigo compartilhar as coisas que escrevo, sendo que já isso me consome uma enorme quantidade de energia. E tudo me causa desânimo, tudo me faz querer desistir, mas desistir do que, se eu nada possuo, se eu nada realizei? Desistir do simples respirar pela manhã ao abrir os olhos, desistir do ser, retornar ao nada, de volta à inexistência. É isso que sinto. 

A lâmina guardada com esmero me chama, com voz de sibila, tentando me convencer que isso é resultado de um veneno que circula em meu sangue, e que fazer esse sangue se derramar pode dar fim a isso. E imagens do meu sangue escorrendo pelos meus braços e formando pequeninas poças pelo chão tomam a minha mente, como se de repente eu passasse a ver o mundo por uma lente carmesim. 

Sinto uma vez mais a tentação de pôr fim a minha vida ou, ao menos, substituir a dor da minha alma pela dor dos cortes no meu corpo, mas até para isso me falta a força necessária para erguer a lâmina e desferir um golpe certeiro. Tudo o que consigo fazer é olhar o teto, olhos distantes, e imaginar uma realidade tão distinta desta que me perco em meus próprios sonhos, até adormecer, e ter a infelicidade de acordar uma vez mais, e ver que nada mudou. 

terça-feira, 2 de março de 2021

Desejo Violento

- Ó tu que entras no asilo da dor - disse Minos ao me ver, interrompendo seu ofício -, vê bem em quem confias e como entras aqui. É fácil de entrar, mas não te enganes! (Dante)

Não tenho mais conseguido me controlar, apenas uma pequena parcela do meu eu protesta sem, no entanto, nenhuma vitória. Todas as fibras do meu corpo rejeitam a virtude, a minha vontade se curvou aos apetites mais baixos da minha alma, todo meu ser se consome em um ardor de desejo. 

Amor ou luxúria? 

Me encontro perdido no deserto da noite escura, de amor em vivas ânsias inflamada, mas essa não é uma ditosa ventura, antes disso, é como se andasse continuamente, com os pés descalços, sobre as areais escaldantes e os ventos impetuosos do segundo círculo do inferno, como Semíramis e Tristão, sendo violentamente lançado contra pedras e rios de lava, levado pelos ventos das minhas paixões, pelos impulsos irrefreáveis da minha carne, ouvindo a risada maligna do juiz do inferno, divertindo-se como minha existência movida apenas por esses apetites sexuais, por esse medo da solidão que me faz protagonizar tantas cenas de lamentável visão. 

Esse pecado, esse vício que me consome até o tutano, é como um doce perfume de flores, um jardim de beleza inigualável que atrai o pobre homem. Uma vez ali dentro, inebriando-se daquele odor que lhe é tão caro e precioso ele se esquece de tudo o mais. Esquece de sua virtude, de suas obrigações, esquece que pode perder-se a sua alma e seu corpo, mas já nem liga, senão que adentra, cada vez mais, no profundo daquele jardim. 

Quando já se embrenhou tão profundamente nesse bosque de delícias, quando se compraz nos delírios das orgias e no perfume dos corpos suados ele se dá conta de que já não sabe mais por onde voltar. Mas por qual razão voltaria? É apenas uma lapso, um lampejo de sanidade que lhe passa a mente, que logo torna-se a entorpecer em outro orgasmo. 

Figuras surgem, e lhe seduzem com toques, carícias e promessas. E ele se entrega, completamente, aos desejos mais obscuros e primitivos que havia em seu ser. Membros deleitosos, corpos fortes, homens belos, todos dispostos aos prazeres mais imundos sem nenhum limite, sem nenhum pudor. 

Depois de alguns anos, que não lhe pareceram mais do que alguns poucos minutos, ele finalmente se dá conta de que busca cada vez no profundo daquela floresta pelo perfume que lhe faz sentir tão bem. Mas mesmo que esteja num recanto tão obscuro que nada enxerga além das flores, elas já não lhe entregam perfume algum. Cessou o prazer. 

Passado o torpor ele sente que caminhou por entre as rosas por tanto tempo que seus espinhos lhes comeram as vestes e rasgaram seus pés e mãos de tal modo que as pétalas de várias delas estão salpicadas com gotas de seu sangue. Esse sangue que escorre pelos seus membros se mistura com suor de seus orgasmos e começa a ser devorado por vermes que revolvem aquela terra fria. Já não sente o perfume mas percebe que uma névoa, carmesim como o seu sangue, se aproxima, impedindo que veja qualquer direção. 

Os espinhos lhe doem o corpo, e um barulho ensurdecedor aparece longe dali e vai aumentando, fazendo com seu coração bata cada vez mais rápido. Já não há mais figura que lhe ofereça prazer, apenas gemidos e gritos de medo, alguns dos quais ele percebe saírem de seu próprio peito. Com efeito, o medo lhe vem aumentando, conforme sua visão se torna enevoada, e conforme a brisa, que antes lhe trazia o doce perfume, sopra friamente contra seu corpo nu, fazendo arder as feridas causadas pelos espinhos. 

E então todas as rosas vão aos céus, juntamente com outras mil almas, num golpe violento das asas de um grande homem que ele vê acima de uma grande montanha, até então escondida pela névoa. Ele é lançado com avidez aos céus, e se vê rodopiando como as pétalas, com a mesma leveza que elas, e a força daqueles ventos infernais é tão esmagadora que seus músculos se rompem, e ele urra de dor, mas seus gritos são abafados por aquela tempestade, que logo cessa, lançando-o ao chão com violência, fazendo dezenas de espinhos rasgarem com brutalmente a sua carne e seus ossos se partirem com o impacto. 

Mas, sequer teve a chance de se recompor e ele logo sente seus ossos se refazerem, sua carne ser costurada novamente, pondo-se de pé com dor e desespero, sem forças para gritar, a boca cheia de sangue. O homem torna a abrir as asas e mil almas atormentadas são lançadas novamente, trucidadas pelos seus pecados, tendo a carne rompida e lançada aos quatro ventos e os ossos triturados pela força daquele vendaval de pura ira e vingança cósmica que, agora ele o percebera, jamais terá fim. E ali ele se dá conta, finalmente, de que este é seu destino: fora condenado pelo juiz a ser torturado no vale dos ventos, sendo essa a paga devida pelos seus desvarios. 

É assim que me sinto: preso num vórtice infinito de desejo que esmagam todo o meu ser, cuja existência se explica apenas pela condenação eterna do pecado de desejar. 

Me sinto assim cada vez que penso nele, ao fechar os olhos e imaginar a sua pele negra, o seu perfume e seus braços ao meu redor, o seu sorriso. É assim que me sinto, condenado ao inferno, de modo que aquele bater de asas infernais me atinge a todo momento que sua imagem aparece em minha mente, queimando meu coração, fazendo tremer os meus músculos. 

E o meu desejo se encontra dividido, também há outro que aparece nos meus sonhos mais alegres, nos meus devaneios mais coloridos, apenas para que perceber o contraste que é sonhar ser amado e viver num mundo cinza sem amor. E não me importo que sinta nojo de mim pelo desejo que tenho de ti, eu mais do que qualquer um tenho um nojo profundo e genuíno por esses meus desejos e não há um só dia que não pense em findar os horrores que habitam o meu coração com uma faca afiada encravada bem no meu peito. Ambos são os homens que amo, e ambos são aqueles que batem suas asas com violência para me maltratar numa tortura infindável, sem nunca me dar a clemente morte, sem nunca permitir o fim tão desejoso. 

Mesmo depois deste desterro, no que já há muito tornou-se um vale de lágrimas, com o perdão de Virgem Mãe por usar de seu hino em tão desprezível escrito de minha parte, o que sinto por eles eu preciso expressar, como ardente coração que quer dar-se sem cessar, que precisa demonstrar sua ternura. 

Quero dizer que te amo, que preciso de ti, comigo, aqui do meu lado, segurando a minha mão e deixando que apoie a minha cabeça em seu ombro, sentindo seu peito forte me protegendo dos ventos uivantes da perdição. Quero dizer que te amo, e te desejo desde o primeiro momento que acordo até aquele último pensamento enevoado antes de dormir. Quero dizer que te amo e que me dói saber que você não sente o mesmo por mim, que cada vez que o vejo com alguma garota é como se novamente fosse lançado ao céu, tendo meus ossos quebrados para serem reparados e quebrados novamente. E eu quero dizer que te amo, com tanta força que me pergunto se se trata realmente de amor ou obsessão, se talvez tenha sido dominado de tal modo pela luxúria que nada mais enxergue senão pelas lentes das chamas bruxuleantes das masmorras onde homens perversos satisfazem os seus fetiches mais sombrios, sorrindo com o mesmo riso metálico que o diabo dá ao ver um novo homem entrando em seus jardins. 

E eu não tenho mais conseguido me controlar, apenas uma pequena parcela do meu eu protesta sem, no entanto, nenhuma vitória. Tudo o que há em mim é desejo, desejo violento por você! Tudo o que eu penso é em cravar as minhas presas na sua carne, devorar você até os ossos e ouvir os seus gritos clamando por misericórdia, enquanto me delicio com cada gota refinada de seu prazer. 

Já não sou mais torturado por um demônio, acho que já me tornei, eu mesmo, um demônio!

segunda-feira, 1 de março de 2021

Todas as vontades

O velho Buck disse certa vez que as palavras que ele escrevia o protegiam da loucura. Por muito tempo eu concordei que as coisas fossem assim. e talvez ainda o sejam de algum modo, olhar para as palavras e tentar buscar em seus significantes um último elo entre o meu ser e o mundo que me circunda. Talvez as palavras que eu digo sejam as únicas coisas entre mim e a completa loucura pois, enquanto consigo dizer como a minha mente pouco a pouco se desfaz e se esfacela por entre os meus dedos, como as cinzas de um grande palácio que se desfez em ruínas e, depois, sumiu rodopiando ao vento, sendo esmagado pelas areias da história. 

Mas comigo a tensão que há no meu íntimo é ainda mais complexo. As palavras, embora cumpram seu ônus protetor, também são uma declaração, um atestado escrito de próprio punho de que minha sanidade pouco a pouco se esvai, dando lugar a um grande caos, que se contrapõe timidamente ao pequeno contingente de ordem que há em mim...

Sinto-me cada vez mais inútil, e uma conversa que tive com um amigo ainda hoje me fez sentir ainda pior. Eu sou tido como alguém sem nenhuma preocupação, que consegue ser eficiente por não ter nada mais com que me preocupar, e isso é um engano tremendo. Se eu consigo alguma eficiência, o que questiono veementemente, é porque meu foco ali se instala de modo que eu possa fugir do completo caos que habita meu coração. 

A verdade é que me sinto completamente perdido no mundo, me agarrando aos sinais de ordem que consigo ver, para fugir da entropia que governa a minha vida. A verdade é que eu não sei de mais nada, e apenas me dedico a cumprir o que me é proposto de forma a não demonstrar que, no meu íntimo, tudo já está desmoronando. É o tudo que retorna ao nada. É a carência, o desejo, o medo, a perspectiva do fracasso, a paralisia, tudo se esconde numa atitude proativa, mas esconde com uma máscara um homem destruído que, sabendo como resolver os problemas da igreja, não tem sequer a menor ideia de como resolver os mais simples problemas do meu ser. 

Eu não sou inteligente como pensam, me esforcei para conseguir entender algo do mundo, em sacrifício de qualquer entendimento de mim mesmo. Eu sou um homem que estuda e que se contenta em aprender, conhecer, mas que percebe que isso não me traz resultados na esfera social. Continuo desempregado, a escória dos homens, e até como escritor um fracasso, sendo que quase ninguém lê o que escrevo, que não passam de lamentos após lamentos. 

Contemplo a grandeza da minha mediocridade quando, num empreendimento simples, vejo que tiro 100 ou 200 fotos e nenhuma delas eu tenho coragem de postar. Me sinto incrivelmente martirizado pela minha feiura, pela minha incapacidade de fazer algo bem feito, uma composição decente, uma maquiagem decente, e me sinto ainda pior depois de uma dose enorme de remédios continuar acordado, sendo obrigado por algum sádico a pensar em quanto eu sou um fracassado. 

E me encontro perdido, ignorando os conselhos dos outros pois sei que ali não há respostas para mim, senão que eles mesmos se enganam em falsas verdades. Eu procuro algo, alguém, que me entenda, que entenda que eu preciso caminhar ao seu lado, que eu não sei viver sozinho, que esse Transtorno Bordeline não permite que eu seja um homem completo sozinho, preciso de alguém. Não sei por onde vou, não sei para onde vou, mas sei que não vou por aí. 

A confusão total me apavora, e eu sei que não posso fugir dos meus fantasmas dormindo, mas ao menos posso passar algum tempo sem prestar atenção neles. A ira tem tomado conta de mim, e tenho me estressado com coisas pequenas, como a demora em dar a essa espelunca a aparência de uma casa decente. 

Ainda assim, mesmo que as palavras me protejam da loucura, eu me sinto cada vez mais rumo ao abismo da completa insanidade. Cada dia me odiando mais, descobrindo uma nova razão para justificar a minha extinção, para justificar que eu nunca tivesse existido e, no entanto, continuo existindo contra minha vontade, num mundo que ignora completamente todas as vontades.