terça-feira, 2 de março de 2021

Desejo Violento

- Ó tu que entras no asilo da dor - disse Minos ao me ver, interrompendo seu ofício -, vê bem em quem confias e como entras aqui. É fácil de entrar, mas não te enganes! (Dante)

Não tenho mais conseguido me controlar, apenas uma pequena parcela do meu eu protesta sem, no entanto, nenhuma vitória. Todas as fibras do meu corpo rejeitam a virtude, a minha vontade se curvou aos apetites mais baixos da minha alma, todo meu ser se consome em um ardor de desejo. 

Amor ou luxúria? 

Me encontro perdido no deserto da noite escura, de amor em vivas ânsias inflamada, mas essa não é uma ditosa ventura, antes disso, é como se andasse continuamente, com os pés descalços, sobre as areais escaldantes e os ventos impetuosos do segundo círculo do inferno, como Semíramis e Tristão, sendo violentamente lançado contra pedras e rios de lava, levado pelos ventos das minhas paixões, pelos impulsos irrefreáveis da minha carne, ouvindo a risada maligna do juiz do inferno, divertindo-se como minha existência movida apenas por esses apetites sexuais, por esse medo da solidão que me faz protagonizar tantas cenas de lamentável visão. 

Esse pecado, esse vício que me consome até o tutano, é como um doce perfume de flores, um jardim de beleza inigualável que atrai o pobre homem. Uma vez ali dentro, inebriando-se daquele odor que lhe é tão caro e precioso ele se esquece de tudo o mais. Esquece de sua virtude, de suas obrigações, esquece que pode perder-se a sua alma e seu corpo, mas já nem liga, senão que adentra, cada vez mais, no profundo daquele jardim. 

Quando já se embrenhou tão profundamente nesse bosque de delícias, quando se compraz nos delírios das orgias e no perfume dos corpos suados ele se dá conta de que já não sabe mais por onde voltar. Mas por qual razão voltaria? É apenas uma lapso, um lampejo de sanidade que lhe passa a mente, que logo torna-se a entorpecer em outro orgasmo. 

Figuras surgem, e lhe seduzem com toques, carícias e promessas. E ele se entrega, completamente, aos desejos mais obscuros e primitivos que havia em seu ser. Membros deleitosos, corpos fortes, homens belos, todos dispostos aos prazeres mais imundos sem nenhum limite, sem nenhum pudor. 

Depois de alguns anos, que não lhe pareceram mais do que alguns poucos minutos, ele finalmente se dá conta de que busca cada vez no profundo daquela floresta pelo perfume que lhe faz sentir tão bem. Mas mesmo que esteja num recanto tão obscuro que nada enxerga além das flores, elas já não lhe entregam perfume algum. Cessou o prazer. 

Passado o torpor ele sente que caminhou por entre as rosas por tanto tempo que seus espinhos lhes comeram as vestes e rasgaram seus pés e mãos de tal modo que as pétalas de várias delas estão salpicadas com gotas de seu sangue. Esse sangue que escorre pelos seus membros se mistura com suor de seus orgasmos e começa a ser devorado por vermes que revolvem aquela terra fria. Já não sente o perfume mas percebe que uma névoa, carmesim como o seu sangue, se aproxima, impedindo que veja qualquer direção. 

Os espinhos lhe doem o corpo, e um barulho ensurdecedor aparece longe dali e vai aumentando, fazendo com seu coração bata cada vez mais rápido. Já não há mais figura que lhe ofereça prazer, apenas gemidos e gritos de medo, alguns dos quais ele percebe saírem de seu próprio peito. Com efeito, o medo lhe vem aumentando, conforme sua visão se torna enevoada, e conforme a brisa, que antes lhe trazia o doce perfume, sopra friamente contra seu corpo nu, fazendo arder as feridas causadas pelos espinhos. 

E então todas as rosas vão aos céus, juntamente com outras mil almas, num golpe violento das asas de um grande homem que ele vê acima de uma grande montanha, até então escondida pela névoa. Ele é lançado com avidez aos céus, e se vê rodopiando como as pétalas, com a mesma leveza que elas, e a força daqueles ventos infernais é tão esmagadora que seus músculos se rompem, e ele urra de dor, mas seus gritos são abafados por aquela tempestade, que logo cessa, lançando-o ao chão com violência, fazendo dezenas de espinhos rasgarem com brutalmente a sua carne e seus ossos se partirem com o impacto. 

Mas, sequer teve a chance de se recompor e ele logo sente seus ossos se refazerem, sua carne ser costurada novamente, pondo-se de pé com dor e desespero, sem forças para gritar, a boca cheia de sangue. O homem torna a abrir as asas e mil almas atormentadas são lançadas novamente, trucidadas pelos seus pecados, tendo a carne rompida e lançada aos quatro ventos e os ossos triturados pela força daquele vendaval de pura ira e vingança cósmica que, agora ele o percebera, jamais terá fim. E ali ele se dá conta, finalmente, de que este é seu destino: fora condenado pelo juiz a ser torturado no vale dos ventos, sendo essa a paga devida pelos seus desvarios. 

É assim que me sinto: preso num vórtice infinito de desejo que esmagam todo o meu ser, cuja existência se explica apenas pela condenação eterna do pecado de desejar. 

Me sinto assim cada vez que penso nele, ao fechar os olhos e imaginar a sua pele negra, o seu perfume e seus braços ao meu redor, o seu sorriso. É assim que me sinto, condenado ao inferno, de modo que aquele bater de asas infernais me atinge a todo momento que sua imagem aparece em minha mente, queimando meu coração, fazendo tremer os meus músculos. 

E o meu desejo se encontra dividido, também há outro que aparece nos meus sonhos mais alegres, nos meus devaneios mais coloridos, apenas para que perceber o contraste que é sonhar ser amado e viver num mundo cinza sem amor. E não me importo que sinta nojo de mim pelo desejo que tenho de ti, eu mais do que qualquer um tenho um nojo profundo e genuíno por esses meus desejos e não há um só dia que não pense em findar os horrores que habitam o meu coração com uma faca afiada encravada bem no meu peito. Ambos são os homens que amo, e ambos são aqueles que batem suas asas com violência para me maltratar numa tortura infindável, sem nunca me dar a clemente morte, sem nunca permitir o fim tão desejoso. 

Mesmo depois deste desterro, no que já há muito tornou-se um vale de lágrimas, com o perdão de Virgem Mãe por usar de seu hino em tão desprezível escrito de minha parte, o que sinto por eles eu preciso expressar, como ardente coração que quer dar-se sem cessar, que precisa demonstrar sua ternura. 

Quero dizer que te amo, que preciso de ti, comigo, aqui do meu lado, segurando a minha mão e deixando que apoie a minha cabeça em seu ombro, sentindo seu peito forte me protegendo dos ventos uivantes da perdição. Quero dizer que te amo, e te desejo desde o primeiro momento que acordo até aquele último pensamento enevoado antes de dormir. Quero dizer que te amo e que me dói saber que você não sente o mesmo por mim, que cada vez que o vejo com alguma garota é como se novamente fosse lançado ao céu, tendo meus ossos quebrados para serem reparados e quebrados novamente. E eu quero dizer que te amo, com tanta força que me pergunto se se trata realmente de amor ou obsessão, se talvez tenha sido dominado de tal modo pela luxúria que nada mais enxergue senão pelas lentes das chamas bruxuleantes das masmorras onde homens perversos satisfazem os seus fetiches mais sombrios, sorrindo com o mesmo riso metálico que o diabo dá ao ver um novo homem entrando em seus jardins. 

E eu não tenho mais conseguido me controlar, apenas uma pequena parcela do meu eu protesta sem, no entanto, nenhuma vitória. Tudo o que há em mim é desejo, desejo violento por você! Tudo o que eu penso é em cravar as minhas presas na sua carne, devorar você até os ossos e ouvir os seus gritos clamando por misericórdia, enquanto me delicio com cada gota refinada de seu prazer. 

Já não sou mais torturado por um demônio, acho que já me tornei, eu mesmo, um demônio!

Nenhum comentário:

Postar um comentário