sábado, 30 de abril de 2022

Caminhos distintos

 "Fui esquecido dos corações como um morto, fiquei rejeitado como um vaso partido." (Sl 30)

Não é de hoje que eu sinto que algo se quebrou dentro de mim. Lembro bem dessa sensação quando aquele relacionamento conturbado terminou e eu senti como como se um cristal tivesse se partido em milhares de pedacinhos que jamais poderiam ser colados novamente. Mas agora o que eu sinto não é como se apenas uma relação tivesse se quebrado, mas sinto que eu mesmo estou partido. Parece que tornei-me nada mais do que aquela imperfeição fundamental, exposta como uma ferida aberta a todos que passam e desviam o olhar. 

Já não me encontram mais entre os sorrisos e as brincadeiras, estou sempre sozinho, soturno absorto em minhas próprias histórias e pensamentos. Já não me junto aos outros, para quem me tornei estranho, e de fato o sou. Já não compartilhamos mais dos mesmos interesses, já não rimos das mesmas piadas. Os caminhos que tomamos são tão diferentes que já não se cruzam mais, e eu nem de longe consigo ver suas centelhas. Apenas vez ou outra escuto suas risadas altas, mas elas logo se calam, e eu volto ao silêncio e a minha solidão. 

Eles já não se lembram de mim, tornei-me estranho demais para que me reconheçam, já não sabem o que eu faço ou busco, e os ideais de minha vida são demasiado abstratos para que consigam entender o que é importante pra mim. 

O restou foi apenas a lembrança daquilo que fomos um dia, nossas risadas noite à dentro eternizadas em alguma parede da história universal, mas é só isso, porque todo o resto se desfez e desapareceu como poeira ao vento.

Eles não me entendem mas eu sim, compreendo que cada um trilhou o que achou certo para si e eu, igualmente o fiz, acabei me afastando cada vez mais, por causa dos caminhos que tomei. Eu matei minha vontade e me tornei um defunto para eles, que viraram o rosto em agonia.

Não lamento, não os amaldiçoo, apenas reconheço que o tempo se encarregou de nos encaminhar para lugares diferentes, eu ainda buscando meu lugar, em busca de um objetivo e eles também, cada um em busca da própria realização, seja ela qual for, mas que não tem mais nada a ver comigo. Foi um tempo bom que não volta mais, e está tudo bem, um vaso partido já perdeu sua utilidade e estou ciente da minha incapacidade.

Outros, no entanto, cravaram a adaga da traição nas minhas costas e, uma vez livre desse ataque eu escolhi apenas seguir em frente. Claro, a ferida ainda dói, mas eu não desejo retornar para quem me machucou, quero apenas seguir sem olhar para trás. Nesse caso basta o meu absoluto desprezo, o desviar do olhar, até que eu esqueça de suas existências porcas e miseráveis. 

sexta-feira, 29 de abril de 2022

A prisão mais profunda

"Das profundezas eu clamo a vós, Senhor." (Sl 129)

Ontem foi um dia de grandes trevas em meu coração, como se o sol tivesse perdido a batalha contra a escuridão e o mundo tenha sido mergulhado na mais absoluta obscuridade. Eu não conseguia nem mesmo imaginar a luz, meu coração havia sido capturado pelos tentáculos gelados e me levado para as profundidades de um mundo de horrores que me levou ao desespero. Não consegui ver nem sequer uma centelha de luz, tudo era apenas frio e escuro, e nem lágrimas haviam em mim para que eu pudesse derramar. Os sinos que tocavam se silenciaram e eu fiquei em completo silêncio, nem mesmo meus gritos de desespero emitiam sol algum. De repente eu me vi cheio apenas de medo e incertezas. 

Incontáveis horas na cama, atônito, embebido em torpor, sem conseguir fazer nada  além de contemplar o imenso vazio para o qual me abri e que me engoliu, fazendo-me cair em queda livre sem nunca chegar a lugar nenhum mas sempre a descer, e quanto mais descia mais de mim deixava o meu ser. Fui perdendo pouco a pouco tudo aquilo que me definia e me diferenciava, como se escamas deixassem meu corpo, até que não restasse nada além de uma massa disforme, que já não era mais humana, apenas uma emaranhando de sentimentos conflitantes, pairando na escuridão de um infindável oceano, desse Ápeiron, que me deixa sem palavras ao ver que não há horizonte nem perspectiva de um fim. 

Das profundezas eu lancei as minhas preces, que subiram e desapareceram como a fumaça do incenso, e eu espero que elas tenham sido ouvidas, que eu possa ver novamente a luz, que eu não esteja perdido eternamente nessa prisão tortuosa, donde se grita mas ninguém vem acudir, donde se entra mas é quase impossível sair. 

E então tudo passou apenas quando eu finalmente consegui adormecer e me esquecer de tudo isso, foi quando meu corpo relaxou, acordando hoje num novo dia mas ainda com o gosto amargo da experiência de ontem. E por isso hoje não me restaram forças pra nada além de continuar deitado, esperando que algo aconteça para que eu saia desse torpor. Por isso hoje eu só clamo por mais sono, para que não seja novamente capturado por meus inimigos e lançado no Cocytos, onde as minhas lágrimas se congelaram e me aprisionaram nesse cenário de horrores que é o nono círculo do Inferno. 

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Depois de acordar

A parte negativa de tomar remédio pra dormir é acordar e ver que a vida continua, ver que aquele momento de paz e absoluto silêncio acabou e que eu sou obrigado a olhar novamente para o mundo, voltar a ver as pessoas, voltar a pensar nos problemas, na insegurança, na ingratidão que há no coração dos homens. É ver que a lua logo vai dar lugar a luz do sol e que outro dia, outro dia terrível, logo vai começar, com todo o barulho que ele traz e a mesma sensação de estar sozinho no meio de uma multidão. Mesmo que eu nem saia direito do quarto há dias. 

Minha família faz planos, meus amigos tem sonhos e esperanças, e eu fico observando a todos pensando no seu amanhã, eu só consigo pensar no quanto gostaria de estar dormindo nesse momento, no quanto gostaria de não sentir mais nada e nem me preocupar com mais nada, porque minha capacidade de resolver o que quer que seja se esgotou. Eu sei que é muito cedo pra isso, mas eu não tenho como contornar essa situação. Quadros coloridos não me encantam mais e palavras de encorajamento são apenas vazias pra mim, tão vazias quanto meu peito. 

Queria ter a profundidade poética pra descrever melhor o que se passa comigo, mas nem isso eu sou capaz de fazer, sendo a única coisa latente em mim a incompetência. Falhei, em todos os aspectos da vida, e me encontro agora só, lamentando o que poderia ser e que não fui e sem forças para reagir e ser alguma coisa. E eu que falava da mediocridade com desdém me tornei pior que os medíocres, me tornei nada, abaixo do nível humano. 

Eu fecho os olhos enquanto escuto alguns clássicos da musica chinesa, e me vejo no alto de uma grande montanha, com um mundo inteiro se estendendo a minha frente, dezenas de outras montanhas encimadas por picos verdes acima das nuvens, um mundo belo e gigante, repleto de possibilidades. Mas, por alguma razão, eu não enxergo mais possibilidades na minha vida. Estou tão imóvel quanto aquelas montanhas. 

Não consigo achar uma razão para ser, só vejo o teto do meu quarto e imagino que o mundo lá fora continua correndo e eu continuo só, sem objetivos, sem algo que me faça querer sair daqui, sem crer que possa existir que faça valer a pena de viver. Eu só vejo intermináveis decepções, só vejo desilusões. 

E fico então me esforçando a descrever continuamente o vazio que me consome, que me faz sumir lentamente, mas sem nunca me deixar desaparecer de verdade, e a essa altura, tudo o que eu queria era desaparecer. 

Só me resta então voltar a me dopar e retomar para o meu recesso das nuvens, entrando num ciclo vicioso, cada vez mais preso, cada vez mais dependente a esse breve momento de paz, a esse breve momento em que o pânico não toma conta de mim, a esse breve momento em que eu sou feliz justamente por não estar consciente da miséria que é estar estar vivo, que é existir nesse mundo de hostilidades. Só me resta isso, nenhuma gota a mais de esperança. 

Uma vez mais do alto da montanha eu só consigo, tomado de horror por mim mesmo, pensar em me lançar daqui até lá embaixo. 

Me desculpe por ser assim, por ser tão fraco, por ser tão desiludido, mas eu não aguento mais, eu não consigo mais. Só o que posso pedir é Deus tenha piedade da minha alma porque, de resto, não vejo nenhuma esperança pra mim nessa vida. 

Eu só quero desaparecer, voltar ao nada, retornar a inexistência. Eu só quero morrer. 

"Realmente, minha vida se consome na amargura, e meus anos em gemidos. Minhas forças se esgotaram na aflição, mirraram-se os meus ossos." (Sl 30)

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Sonhos e Futuro


"Porque em minha mente nada dura... 
Há contos de fadas na minha cabeça, 
contos de fadas nos quais eu não acredito." 
(Henry Lau)

Numa súbita tomada de consciência de mim mesmo, deitado no escuro ouvindo uma música romântica, e os músculos dos meus braços se retesaram como que para abraçar, mas não havia ninguém ali comigo, a cama fria e vazia, o meu quarto parecia exalar seu cheiro, mesmo eu sabendo que se tratava do meu próprio perfume, mas ele só me lembrava você, e seu sorriso tímido naquele dia, instantes antes da missa, com o céu cinza e barulhento, você encostado na parede cor de mostarda numa túnica preta. 

Fechei os olhos tentando esquecer a sua imagem mas ela só se tornou ainda mais forte e clara. E então não só os músculos dos meus braços mas todo meu corpo se retorceu, e eu suspirei, num desejo silencioso, um clamor na noite escura. Estendi a mão e toquei o vazio ao meu lado, e foi aí que a sensação de solidão se tornou ainda maior, e eu me perguntando onde você poderia estar numa hora dessas... Outro suspiro, e com o ar quente saindo dos meus lábios eu desejei sentir o seu hálito em minha boca, tendo você under my skin, como diz a música. 

Meu delírio luxurioso terminou brevemente, mas a sua imagem ficou, bem como o som doce do seu riso, e agora eu pretendo dormir e sonhar novamente com eles, já que apenas em sonhos eu posso realmente ter você comigo. 

X

Lembro como a gente se deitava pra ver um filme ou simplesmente ficar conversando por algumas horas. Sempre gostei de deitar sob seu peito, ouvir os batimentos do seu coração, segurando firme a sua mão. Ali sorríamos, o tempo passava sem que a gente percebesse. Mesmo quando não dizíamos nada, apenas ouvindo a trilha sonora de fundo, algo como Maria Bethânia ou Tim Bernardes, nossos pensamentos voando entre o passado que nos feriu e o futuro que desejamos...

Mas você parou de compartilhar seu sofrimento comigo, e me trocou por outra pessoa, e de repente eu já não sentia mais seu coração, não tocava sua mão, você passou a se sentar longe de mim, perto dela, e ali tudo começou a se desfazer. Tomamos caminhos diferentes. 

Eu agora procuro meu próprio caminho, recomeçar. Espero conseguir reunir forçar pra lutar lá, para encontrar quem eu sou e encontrar quem possa caminhar comigo. 

Não é que eu queira ficar preso ao passado relembrando esses momentos, mas é que foram esses momentos que me trouxeram até aqui, não que eu esteja satisfeito com isso, mas é onde estou e de onde devo partir sem me preocupar com o que fica pra trás, levando no coração aqueles que ficaram nos momentos mais difíceis. 

Guardadas as devidas proporções entre mim e um gigante como S. Tomás eu me vejo como ele, deixando tudo em Roccasecca rumo a Universidade de Paris, um caminho sem volta que permitiu a ele ser o gigante que é. É preciso seguir em frente sem olhar pra atrás, trazendo no peito os ideais de "Idem velle, idem nolle".

E no meu coração eu guardo agora apenas um desejo: o de ser o real protagonista da minha história. Não mais um auxiliar, alguém que fica ao lado e faz o melhor sem receber nem sequer um obrigado. Não que eu precise desse reconhecimento, mas é que a cada vez que passam por mim sem ver nada do meu esforço é como se eu não existisse. Mas também peço a graça de me contentar com o último lugar, aquele que ninguém briga para ter, mas mesmo ali, sendo eu mesmo, e não um fantasma. 

Agora eu me imagino no chão, com espadas em minhas costas, que foram empunhadas por aqueles que se foram deixando em mim a dor lancinante de um buraco que se abriu no meu ser. Só desejo, de algum modo, me curar dessas feridas e fazer das minhas cicatrizes tatuagens que contém a minha história, dessa vez sem que outros me digam o que fazer ou que menosprezem a minha presença, que não diminuam a minha existência e o meu esforço em fazer algo quando não tenho forças pra mais nada mas que ainda consigo lutar ali, mesmo que ninguém veja.

terça-feira, 26 de abril de 2022

Em algum lugar

Vem aumentando a vontade de me isolar numa casinha no interior, de frente pra uma bela paisagem com um violão e simplesmente ficar cantando, sobre coisas alegres e tristes, sem ninguém pra me interromper, sem ninguém pra me fazer pensar, sem coisas a mais pra me distrair, sem um monte de informações pra processar. Sem grosserias, sem exigências, sem ingratidão... Somente a minha voz e um céu claro, eventualmente um pássaro voando e o balançar das árvores e, claro, o infinito horizonte onde posso me lançar em sonhos e devaneios, sem que ninguém venha violentar a minha vontade. Só queria sentir a liberdade da solitude, de estar comigo sem precisar lutar com nada e nem ninguém. 

Tudo que eu queria era ajudar, ser melhor, tornar as coisas mais belas. Mas em algum ponto eu me perdi. Me perdi de mim mesmo. Não consigo agradar, ser bom o bastante, continuo sendo repreendido. Por isso eu queria deixar de ser um peso, queria sumir, voltar ao nada...

Mas, existem tantas coisas que me impedem de desaparecer. Infelizmente não é possível que eu me desfaça numa nuvem de pétalas de flores de cerejeira, ainda tem aquele sorriso bonito que eu consegui tirar de um menino especial antes da missa que faz meu coração bater mais rápido, ainda existem músicas que eu gostaria de cantar. 

Consegue perceber o quanto eu estou à margem da vida? Não tenho objetivos ou metas a cumprir, só continuo sorrindo gentilmente pra quem se aproxima de mim, e ajudo no que posso, seja ficando em silêncio ao lado de quem precisa ou tentando tornar uma missa mais bonita e organizada, é o que eu posso fazer. Mas não é como se eu ainda estivesse tentando, eu já desisti de tentar, de sonhar. 

Fico sozinho, penso no sorriso doce que ele meu deu antes da missa, lembro das histórias de amor que eu posso ver quando chegar em casa, nas músicas que posso ouvir antes de dormir num sono artificial e isso me basta, não vejo como a vida pode me oferecer mais do que isso. 

Busco entender um pouco mas não compreender totalmente as verdades metafísicas, os princípios fundamentais e axiomas, o trabalho do Kalam, da Filosofia Escolástica e da Filosofia Especulativa que eu começo a investigar lentamente, mas isso é algo que acrescenta à minha alma, que aumenta minha capacidade de penetração da inteligência nas coisas, é algo pra eternidade, e não para agora. O agora é permeado de tédio e terrores. E eu já aceitei que as coisas são assim. 

Talvez aquele sorriso me faça conseguir levantar mais um dia, a isso posso chamar de esperança? 

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Sem sinais

Ela veio sem nenhum aviso, não houveram sinais e nem rumores, ela apenas chegou drenando as minhas forças e silenciando o mundo ao meu redor, me colocando no escuro e me deixando sozinho. E assim ela chegou, silenciosa porém destrutiva como um tsunami.

Depois de mais de um mês num episódio misto por causa da suspensão da minha medicação eu entrei na primeira crise depressiva dessa fase, e agora preciso lidar com ela, e com minhas obrigações, sem a ajuda de nenhum remédio. 

O que me vem é aquela vontade de desligar o celular, ligar o som num volume alto e fingir que o mundo não existe, dormir e esperar que ela passe, que eu recupere a visão de sombra e luz que tinha até então. Só queria desaparecer, como as notas que somem no ar ao fim de uma bela canção, deixando apenas a impressão no coração de quem ouviu, queria ser a derradeira nota de uma sinfonia da vida, desse adágio lamentoso que começou com a chegada da melancolia que dormia no íntimo do meu ser. 

É isso, não me restaram forças pra terminar de escrever, pra elaborar isso de uma forma poeticamente memorável, não me restou nada, ela veio de novo e levou tudo. Eu vi a luz desaparecer lentamente no horizonte, senti cada fibra do meu corpo ceder sem possibilidade de revidar, sem chance de me levantar e lutar contra. Ela simplesmente me agarrou e me levou pro fundo do oceano, e sinto que só o que poderia me resgatar seria um abraço apertado, uma companhia silenciosa, alguém ao meu lado nessa noite escura. 

Olhei pela janela afora e vi um emaranhado de fios numa bagunça, e senti que o mesmo se passava dentro de mim, que pouco a pouco as coisas foram se enrolando até que o início e o fim já não pudessem mais ser distinguidos. 

De repente eu olho com pesar o dia de amanhã, já de luto por precisar sair da cama e ver outras pessoas, dar ordens, ouvir sermões, quando só queria o silêncio do meu quarto. De repente eu precisei me apoiar na parede pra não cair no chão. E de repente tudo retorna ao nada. 

"Olhe profundamente dentro de si mesma. Você nota a presença quase intangível e invisível que espreita sob o seu desperto no interior dos seus sonhos mais sombrios." (Neon Genesis Evangelion)

sábado, 23 de abril de 2022

Terra Seca

'Cause I'm the beast and you are the... Beauty! (The Rose)

De repente parece que a quantidade de informações começa a colapsar a minha mente. O volume de coisas pra estudar, o bombardeio das redes sociais, tudo vai se acumulando numa velocidade mais rápida do que eu consigo processar, dai a mente mergulha numa escuridão, eu começo a ficar nervoso e preciso me isolar, preciso ficar sem contato com as informações até que consiga voltar ao normal. 

Isso acontece algumas vezes quando, por algum motivo, eu exagero no tempo online, e daí o fluxo de informações acaba me deixando meio catatônico. Foi o que aconteceu hoje, e é um sinal claro de que eu preciso diminuir um pouco o ritmo. 

O Instagram tem me chateado, e eu passo muito tempo lá. O contato exagerado com a perfeição de homens cuja beleza eu nunca vou alcançar tem afetado a minha autoestima. Eu olho para aqueles corpos perfeitos, aqueles sorrisos lindos e me sinto o pior homem possível. E eles estão por toda parte, esculpidos como anjos, sem imperfeição, e então eu me olho no espelho, podendo enumerar infinitamente os desmantelos que vejo, e então o simples ato de abrir a tela do celular torna-se uma tortura. 

Foi então que, sem aviso prévio, eu simplesmente quis fechar os olhos e desaparecer. As letras do livro que eu estava lendo perderam o sentido e se embaralharam, misturaram-se com as vozes do telejornal e as cores do bordado da minha mãe de repente me atacaram. O Instagram me derrubou e o Twitter terminou de finalizar. Muita informação, gente demais, com tempo demais, falando demais, como diz a música. 

Sabe, eu preciso ser sincero, as pessoas dizem que eu sou uma boa pessoa, que sou bonito por dentro, e eu sei bem que isso não é verdade porque conheço bem os meus defeitos e os meus vícios, mas pelo menos por fora eu queria ser bonito, pelo menos por fora eu queria ser como os modelos perfeitos que vejo na internet. Fico grato que me vejam assim, talvez não seja de todo um monstro. Mas queria ser agraciado como eles, os perfeitos, que foram presenteados com belas vozes, corpos esculturais, aparências encantadoras, mas parece que não mereço nada disso. Quanto mais vejo os anjos mais me convenço de que sou fera. 

E olhando em retrospecto agora eu percebo os motivos de ser tão pessimista, o mundo ao meu redor é muito feio para que eu acredite em algo bom de verdade. É por isso que quando me olho no espelho não vejo brilho algum, só vejo o retrato antropomorfizado da desesperança. É como se olhasse pra terra seca onde não pode mais nascer nada, e isso destruiu o sonho que eu tinha de ser um jardim florido. 

Bem sei que, se bem cuidada, até a terra seca pode dar flores um dia, mas quando eu penso no meu coração, quando me volto pra dentro de mim, eu sinto que nada mais pode nascer daqui. E o exterior está tão ruim quanto, na verdade acho que até pode ser reflexo do interior, já nem sei mais como essas coisas se retroalimentam. Só sei que anda tudo meio sei lá, e tudo tem me cansado.

Planejava cortar o cabelo, fazer a barba, quem sabe testar aquele novo produto pra pele que comprei semanas atrás, mas de repente eu desisti de tudo isso, enfiei goela abaixo um monte de comprimidos e estou esperando eles fazerem efeito. E isso tem se repetido cada dia mais. 

Antes pelos menos eles me inspiravam a escrever melhor, faziam parte da construção de um personagem bucólico, de um eu lírico que se baseava no próprio vício pra fazer sua arte, mas agora tornou-se apenas vício, não consigo tirar nada de bom daqui além da profunda experiência humana do sofrimento e da fragilidade da nossa vontade, humilhada pelo universo e sua indiferença essencial. 

Em alguns momentos eu sinto meu coração arder, bater mais rápido, e parece que um pouco de vida é insuflada nos meus pulmões, mas ela se esvai num expirar, e com essa mesma fugacidade a desesperança se instala em mim. Queria poder amar de novo, sentir um abraço apertado de novo. Logo eu que queria ser motivo de inspiração para os outros, perdendo toda a perspectiva de futuro, logo eu que vejo a beleza em todos me achando o mais horrível, logo eu que tentava ver o lado bom da vida em tudo, amar o sofrimento, não consigo fazer disso mais do que um discurso ascético bonito mas que, na minha carne, não se cumpre. 

Será que um dia eu serei um deles? Ou posso me contentar em morrer como um desconhecido, quase indigente, mero moral, fera, entre príncipes e deuses que estão por toda parte?

 Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.

(Cecília Meireles)

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Pela mão

Consegui nesse feriado retomar as leituras espirituais que tinha deixado de lado algum tempo atrás, por conta de uma certa dificuldade em compreender tão altas realidades ali tratadas e, embora tenha compreendido o que li isso só me deixou ainda mais consciente da distância que estou em conseguir alcançar estágios mais elevados de oração.

Muito embora esteja há anos caminhando continuo tão inseguro quanto uma criança que começa a dar os primeiros passos, tenho dificuldade de silenciar a mente e me concentrar no Divino. A liturgia me ajuda muito nesse sentido mas, por outro lado, temo que o barulho provocado pelas minhas preocupações com ela ainda me desviem do que é realmente importante. 

Encontro então uma barreira que me impede de evoluir, a caridade ainda falha e não consigo unir meu coração as palavras que profiro na oração. Aqui me vejo limitado aos livros de oração, especialmente ao saltério, que me dá palavras onde eu mesmo só consigo balbuciar, ao passo que com eles consigo dizer o que se encontra em meu coração, tomando emprestadas as palavras sagradas. 

Sei que muitos santos passaram por essa dificuldade por anos, por isso eu não desanimo, e continuo insistindo na oração vocal e na oração litúrgica, o apoio da comunidade completa o que falta ao meu coração. Como se fosse uma longa noite escura eu tento sobreviver a aridez. Digo como se fosse porque a noite escura é própria de almas mais elevadas, e eu sei bem que não me encontro entre elas. A minha aridez vem diretamente dos meus pecados e dos meus vícios. Mas livros me ajudam a rezar com as mesmas palavras que a Igreja rezou através dos séculos e essa é minha garantia de que estou no caminho certo. 

Claro que isso não diminui o meu desejo de me unir mais profundamente ao Amado, de cruzar as escadas na Noite Escura e encontrar com ele no jardim fechado da minha alma, no entanto, enquanto isso não acontece, eu continuo a me apoiar na Igreja e deixar que ela me tome pela mão e me conduza no caminho da oração, até que um dia, quem o sabe, meu coração possa se abrasar em união com o Amado.

Laço

Escrevendo porque não quero incomodar ninguém que eu conheço com o significado dessas palavras, tão contraditórios a mim mesmo que pareceriam loucura aos outros. Mas para mim não, estou ciente das tensões que permeiam o meu ser e das vontades que brigam dentro de mim pela posse das minhas ações. 

Em noites como hoje eu tenho vontade de sair por aí sem rumo, como muitas vezes fiz, e fui parar em lugares aleatórios como o Parque da Cidade ou o Pontão do Lago, a questão é: eu não estava sozinho, alguém me acompanhava enquanto eu fazia reflexões ou apenas ficava em silêncio, aproveitando a brisa da noite e as luzes das casas ao redor desses lugares. Em noites como essa eu gostaria de ver um filme ruim, um daqueles gênero terror bem chatos e que não assustam ninguém mas gera divertidos comentários. Mas eu sorrio levemente e me lembro de que estou sozinho, e mesmo que ainda tenha alguns episódios de BL salvos pra assistir não é a mesma coisa. 

Muito embora eu tenha optado pela solidão em alguns momentos ela se torna um laço apertado ao redor do meu pescoço. 

Estou então em estado de confusão: não sei se preciso aumentar o antidepressivo, se preciso me apaixonar novamente ou simplesmente arrumar um emprego. Não sei como fazer para conhecer novos amigos, visto que nenhum dos antigos parece mais caber em minha vida, e eu nas deles. 

Por isso me vem também uma ânsia de revolta: eu sei que nenhum deles se importa, por mais que pareçamos próximos tudo pode acabar de um dia para o outro, com um segredo revelado e uma traição manifestada. A dor que fica no meu peito não dói neles pois eles tem quem os console. Percebo então que estar sozinho, no meu caso, significa também estar paralisado e não conseguir seguir em frente de maneira alguma.

Em noites como essa eu gostaria de sair sem rumo, mas é aí que percebo o quão sem rumo eu já estou. 

"Ah! Eis que um clamor se ouviu por toda Ramá; lamentação, amargura e muito pranto: É Raquel chorando por seus filhos; não quer consolação, porque eles já não existem!” (Jr 31,15)

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Esquecer

Eles continuam aparecendo na minha mente, mesmo que eu não feche os olhos, mesmo que tente me concentrar nas palavras de algum livro ou na voz do meu professor eles ainda estão lá, não importa o quanto eu tente fugir. E, mesmo sem perceber, eu pego o celular e começo a vasculhar mas na realidade estou esperando por uma mensagem, um sinal que eu sei que nunca vai chegar, e com isso fico atualizando toda hora, o coração inflamado numa esperança senil, ardendo em um desejo profundo que eu gostaria de destruir, de fazer sumir no ar. Eu sei que eles não vão aparecer, eu sei que acabou, mas eu não consigo esquecer totalmente, não consigo fingir que não existiu aquele passado em que ficamos de mãos dadas antes de tudo dar errado, onde ele admitiu sentir algo por mim e onde eu admirava o outro por ser tão bom naquilo que eu me esforçara sem conseguir resultados. 

E talvez seja essa a fórmula para chegar a loucura, esperar por aquilo que sabe que nunca vai acontecer, e não conseguir enterrar esse fantasma que teima em me perseguir. Fecho os olhos, tento pensar em outra coisa, fecho o livro sobre meu colo, a música continua tocando, mas eles continuam lá, e eles riem de mim. Mas isso é apenas a minha imaginação, imagens do recesso da minha mente que espreitam o meu eu desperto. Na realidade eles sequer se lembram que eu existo. Não imaginam que ocupam um lugar tão importante na minha história, que mesmo depois de tantos anos as suas imagens ainda aparecem com tanta clareza na minha mente. E como posso fugir, onde devo me esconder? Estou preso na névoa ilusória criada pelo meu próprio coração, e que destino terrível quando o coração se recusa a esquecer...

Só resta-me refugiar-me num recanto seguro, num mundo só meu, numa criação minha, onde eles não podem me tocar, onde eles não podem se aproximar. Não tenho outra escolha, não tenho outro lugar para ir além desse meu exílio. Eles não estarão do lado de fora da janela, do outro lado da plataforma de trem, não estarão embaixo das cerejeiras em flor. Se eu pudesse pedir um milagre eu pediria que eles não estivessem mais também no meu coração. 

"A lua desenha seu rosto na janela
Sempre que eu o esqueço
Seus olhos assombram meu coração e ele para.
Então até logo,
Até a próxima vez que você vier
Até eu enfim não o ver mais."

Delia Owens

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Descanso

Hoje foi o dia em que consegui finalmente descansar, o corpo e a mente. Depois de uma boa dose de remédios pra dormir eu passei o dia todo na cama, acordei uma vez para comer e voltei a dormir, acordando só agora, já escuro. Parece muito mas eu precisava desse tempo depois de dias com o corpo no extremo da tensão pelas celebrações da Semana Santa. Agora que passou eu posso finalmente relaxar, e fiz isso do melhor jeito, dormindo profundamente, aproveitando também o clima fresco com o qual fui presenteado. 

Agora posso retomar também a minha rotina, voltar a ler com calma e assistir minhas aulas com atenção e dedicação, sem me preocupar. Meu corpo não dói mais e a minha cabeça parou de pensar em ritmo frenético, finalmente tudo se encaixando. 

Minha companhia nesse dia foi uma playlist especialmente escolhida com músicas que me fazem sentir bem, me ajudando a descansar num tranquilo abandono. 

Agora penso com mais clareza sobre os últimos dias e consigo enxergar melhor tanto os frutos espirituais colhidos nas celebrações quanto os outros sentimentos que tive entre uma missa e outra. É boa essa sensação das coisas se organizando, se acomodando, o universo se alinhando de algum modo. 

Sinto-me grato pelo sono de hoje, pela paz revigorante que colocou um sorriso leve no meu rosto e deu adeus as dores e as preocupações que eu tinha., agora elas se foram, restando apenas uma tranquila alegria, como o final da 4° Sinfonia de Mahler, ouvindo os anjos cantarem as delícias do Paraíso. Paraíso esse que visitei durante o sono, e delícias que eu experimentei num mundo distante só meu muito distante desse aqui. 

Quanta paz eu encontrei nesse dia de silêncio, onde as palavras dos últimos dias finalmente foram absorvidas e eu consegui compreender melhor o que vivi, onde as coisas ganharam maior significado e eu pude realinhar os eixos do meu pensamento. Finalmente paz! Finalmente um mundo onde as coisas têm sentido, onde o amor encontra sua realização, onde as amizades não terminam em traição e onde o desprezo não passa pelos umbrais dessa realidade. Finalmente!

Never mind I'm neverland!

domingo, 17 de abril de 2022

Redescobrir

Finalmente a maratona terminou, posso então descansar, e me joguei pesadamente sobre a cama quando finalmente cheguei em casa pela última vez nesse fim de semana. Depois de dias intensos eu consegui chegar ao termo das minhas obrigações. Agora eu experimento as sensações que ficaram; Não me referindo ao lado espiritual muita coisa marcou os últimos dias, a dificuldade de manter a paciência e a tranquilidade quando tudo parecia exigir que eu entrasse em fúria e largasse pra lá meus compromissos. 

Revi pessoas que já não via há anos, e foi estranho como isso mexeu comigo, algo se contorceu dentro de mim de uma maneira que eu não esperava. Senti sobre mim aquele olhar de desprezo, e não pude deixar de sentir isso no peito, onde um dia senti por essa pessoa carinho e admiração. Uma confluência de sentimentos contrastantes se apossou de mim, se por um lado eu queria abraçá-lo e pedir que me perdoasse por algo que eu tenha feito e o incomodado, ao mesmo tempo eu queria fugir e fingir que esse encontro nunca existiu pois eu não deveria me envergonhar e me desculpar por ser quem eu sou, o olhar gelado me paralisando. 

Também vi alguém que me lembrava uma pessoa bem importante que se afastou de mim e que com certeza não pensa mais em mim, mas ver seu irmão sentado ali, nos bancos da igreja e caminhando nas estações da Via Sacra, me fez lembrar daquele tempo, antes de eu estragar tudo com meus sentimentos. Irmão daquele que amei, e que se foi pedindo que o esquecesse, mas como esquecer o que se marcou tão fundo no coração com uma amizade sincera que depois tornou-se um sentimento ainda mais forte? A semelhança desconcertante me desconfigurou, me recordou aquela tristeza que senti quando ele me pediu que, a partir daquele momento, voltássemos a ser estranhos. A assim o foi. Mas ainda dói, ele ainda tem um lugar dentro de mim, mesmo depois de tantos anos. 

Vi muitas pessoas desconhecidas, rostos bonitos que me encantaram, e que se foram de modo fugaz deixando apenas os meus olhos brilharem enquanto meu coração se apertava um pouquinho. 

Não consigo dizer muito o que se passou, o cansaço ainda é maior que a inspiração, mas o meu coração guardou essas três sensações, e agora elas rastejam dentro de mim enquanto eu busco encontrar um lugar pra elas. 

Não posso me esquecer, no entanto, do que me ajudou a descansar no auge desses dias atipicamente difíceis. As brincadeiras e sorrisos doces dos vídeos de OhmFluke, um casal fictício de atores que eu acompanho e gosto muiyo, que me alegraram quando eu nem conseguia mais falar ou andar, trouxeram pra mim um pouco de vontade de continuar, me trouxeram naquela beleza singela força. Também me comovi com o delicado crescimento do relacionamento de Tofu e Nut em The Miracle of Teddy Bear, uma série tailandesa que tem me encantado, que insisti em ver mesmo quando chegava cansado à noite. Ver o amor crescer entre os dois também foi motivo de inspiração pra mim, a forma como eles vem descobrindo a importância um do outro em suas vidas e como isso vem sendo importante pro crescimento de ambos é algo que tem me marcado bastante. 

Essas experiências, as felizes, belas singelas e sublimes com o sagrado, e aquelas que me trouxeram algum tipo de desconforto, ambas se incorporaram no meu ser e agora caminham comigo na construção do meu eu. Tenho percebido que redescobrir nessas a mim mesmo nessas vivências é um processo constante. 

sexta-feira, 15 de abril de 2022

Um pouco da dor

Segundo dia do Tríduo Pascal, dia em que a atmosfera ganha um ar pesado e o silêncio se torna cheio daquela agonia que Jesus passou até o momento em que entregou o seu espírito num "Consummatum est". A leitura da Paixão, a longa reflexão proposta na liturgia com o cântico dos Lamentos do Senhor e as tradicionais procissões penitenciais meditando a Via Sacra são cansativas, fazem a gente sentir um pouquinho do que foi aquela dor do calvário, por isso quando finalmente silenciaram-se as matracas hoje após as celebrações, o cansaço gritou, e cada fibra do corpo reclamou e então eu me senti grato por poder sentir na minha carne um pouco daquilo que Cristo sofreu na cruz. 

Amanhã é o último dia do Tríduo, mas ainda restam três grandes celebrações a preparar, as laudes, a Vigília e a Missa da Páscoa do Senhor, ainda há um longo caminho a percorrer, há que se cantar a esperança na ressurreição, acompanhar o povo santo transpondo o Mar Vermelho a pé enxuto, até finalmente cantar "Salve ó vitima pascal!". Meu corpo precisa aguentar mais dois dias, e então finalmente poderá descansar. 

Claro que em alguns momentos bate aquele cansaço extremo, como foi nas últimas estações da Via Crucis quando eu já não conseguia mais cantar ou responder e custava a me lembrar quais eram os detalhes que devia preparar nos próximos momentos, mas no fim as coisas se encaixam de um modo ou de outro. 

Por fim ecoam em minha mente as palavras dos Lamentos "Que mais eu poderia ter feito?" e então recordo as pequenas consolações que recebemos do Senhor ainda nesse dia, mesmo estando ele tão chagado na árvore da cruz, pendendo como fruto da nossa Salvação. Sejam trechos de algumas das belas canções de hoje que nos inspiram a caridade e a virtude, ou um sorriso num momento de dificuldade quando todos parecem confusos com suas funções, até aqui o Senhor nos cumula de graças que vertem como verteram sangue e água de seu lado aberto. 

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Resenha - Cherry Blossoms After Winter

Contém SPOILERS!

Os coreanos têm investido pesado nas produções BL ultimamente, aumentando em número e qualidade das obras, os que começaram timidamente agora já tem mais tempo de tela e começam pouco a pouco a furar a bolha do streaming, como foi com Semantic Error (você pode conferir a resenha aqui) e agora essa obra que, embora não tenha chamado tanta atenção merece todo carinho pela história maravilhosa que traz.

Seo Hae Bom (Ok Jin Uk) é um jovem que ficou órfão muito cedo, tendo sido acolhido pela melhor amiga de sua mãe que também tinha um filho da mesma idade, chamado Jo Tae Sung (Kang Hui). Embora tenham sido bons amigos na infância eles foram pouco a pouco se afastando até que, no último ano do colégio, ele acabam na mesma sala, o que faz com que eles se reaproximem e que sentimentos que vinham sendo reprimidos acabem surgindo com mais força.

Hae Bom é tímido e sofre bullying, até que seu irmão (pois pra todos os efeitos eles são uma família adotiva) começa a intervir pra ajudar o menor, e com isso eles vão ficando cada vez mais próximos. Tae Sung se dá conta da realidade de seus sentimentos primeiro e além de cuidar do outro passa também a se aproximar dele em casa, não demorando muito até criar coragem para demonstrar o que sente de verdade. 

Ao contrário do maior, Hae Bom fica confuso quanto ao que sente e incialmente rejeita o outro, mas não consegue ignorar o que seu coração pede, mesmo que ele tenha medo de não corresponder completamente aos sentimentos do outro, bem como o medo de decepcionar a mãe da família que o acolheu quando ele ficou sozinho. 

O desenvolvimento dos personagens é mostrando com muita delicadeza, e assim como eles vamos ficando cada vez mais apaixonados, a medida que eles percebem que já não podem mais viver sem o outro. 

A forma como eles se comunicam em pequenos gestos é muito significativa, um abraço, um olhar carinhoso, um momento de companhia tomando cerveja, é assim que eles vão descobrindo o valor do seu amor e a forma como vão mostrando isso com tanta delicadeza é notável. A séria também aborda levemente o assunto da aceitação dos pais e a preocupação da aceitação da sociedade.

A produção segue o alto padrão coreano, é tudo muito bonito e faz a gente suspirar, desde a fotografia até a interação entre os atores principais que é excelente. Um dos diferenciais é que essa série mostra bem o desenvolvimento da Coréia em obras com conteúdo gay, já que aqui eles não tem vergonha de demonstrar seus sentimentos, em ficar juntos, segurar as mãos ou dar beijinhos como um casal de verdade. A intimidade deles é mostrada de maneira bem leve e natural, e o relacionamento deles é de dar inveja, Hae Bom e Tae Sung se apoiam e dão força um ao outro com carinho e dedicação, crescendo juntos também, até assumir seu relacionamento. 

É uma obra com um plot simples, sem grandes reviravoltas, mas com muitas cenas fofas, e com uma beleza que a torna indispensável para os fãs de um bom romance que mostra o amadurecimento dos sentimentos e o crescimento dos personagens de um jeito acolhedor e muito aconchegante. É o tipo de série pra ver acompanhado, com uma xícara de chocolate quente num dia frio e que te deixa suspirando quando termina. Excelente!

Nota: 10/10

terça-feira, 12 de abril de 2022

Do novo amor

Eles já sentem o coração bater mais rápido quando estão perto um do outro e, ao se afastarem, sentem o coração se aquecer. Aos poucos percebem que suas vidas foram se entrelaçando, os laços foram se apertando e agora um sentimento nasceu, um sentimento simples, que acalma as turbulências, que torna o dia mais belo, que faz as cenas de amor brotarem com a mesma beleza e singeleza de uma flor. O abraço agora não é mais apenas um desabafo, é uma troca, é um tocar de dois corações, duas almas, é um encontrar finalmente o que tanto se buscou, a resposta silenciosa para todas as perguntas, o achar daquilo que estava perdido entre memórias amargas, é o retorno da doçura num beijo tímido e úmido pelas lágrimas, é o que fica gravado no ser por toda a eternidade.

Depois de se conhecerem de um jeito inesperado, com um aparecendo na vida do outro sem aviso, aquele sorriso doce e aquele carinho, aquela vontade de ficar próximo do novo afeto de olhos encantadores foi ficando mais forte, o sorriso aos poucos se tornou irresistível, mesmo no meio de toda a dificuldade de uma vida marcada por traumas e separações. Era a primeira vez que o amor surgia da sutileza de um abraço num momento difícil, de uma palavra de apoio quando tudo parecia perdido. 

E então o coração endurecido pelas experiências tristes e traumáticas aos poucos vai se amolecendo ante o calor daquele abraço, daqueles olhos tão sinceros. E o rosto que há muito havia se esquecido de rir ou sorrir voltou a esboçar alguma alegria. É um coração que começa a se abrir, uma vida que envolta em sombras começa a achar a luz, mesmo com os desafios que vem pela frente. O amor, o amor sincero, o cuidado, a dedicação, tem o poder de vencer as adversidades e se fazer prevalecer. É nisso que eu acredito e é isso que eu espero que aconteça. 

Um sorriso doce pode penetrar o coração mais fechado. Eu não acredito em contos de fadas, mas esse me conquistou, e eu quero chegar ao termo, quero vê-los felizes, superando os fantasmas do passado, sorrindo um pro outros porque ali, naquele momento de intimidade, eles são a alegria um do outro. 


Obs.: Inspirado na obra The Miracle of Teddy Bear

sábado, 9 de abril de 2022

No Jardim

É nesses dias que antecedem a Semana Santa que eu me junto ao sofrimento de Nosso Senhor no Jardim das Oliveiras, onde minha alma se enche de angústia e medo por tudo o que pode acontecer nos próximos dias. Mesmo que esse ano eu não esteja à frente da preparação sozinho muitas responsabilidades ainda sobraram para mim, e eu fico nervoso com os pequenos detalhes aos quais ninguém dá atenção. 

A ansiedade vai crescendo e parece que ocupa um espaço dentro de mim, apertando meu coração e pulmões, me sufocando, me pressionando, e eu não consigo segurar as lágrimas porque parece que tudo vai explodir na minha cara. 

Me preocupo com os textos, com a preparação de cada um, me preocupo com a ordem, com a correta execução dos ritos, vejo a semana no seu todo, mas parece que não é suficiente, me preocupo que não possa controlar o que pode dar errado, e efetivamente não posso.

A preocupação toma conta de mim e eu não consigo me tranquilizar, e todo ano é assim, só o que posso fazer é suportar e entoar uma prece silenciosa para que tudo dê certo e esperar que, no fim, eu possa descansar tranquilo. 

"Vou te oferecer a vida
E tudo que eu já sei viver
Tempo e trabalho, amor que eu espalho
Coisas que me fazem crer."

O cansaço, tanto físico quanto mental, já se faz presente. Depois de um dia longo de preparação e estudos finalmente demos os primeiros passos pra Semana Santa. Já vejo a prefiguração de todos os dias no folhear apressado do Missal em busca de orientações, das toalhas estendidas sobre o altar, as velas, tudo já tem um tom solene de algo diferente está acontecendo. Os ensaios do coral já revelam a alegria que vai ser cantada e celebrada na Vigília, e em todos os cantos da igreja já pesa o ar para os dias da Paixão. São dias intensos, é verdade, e sentimos um pouco do peso dos nossos pecados ao nos depararmos com essas realidades tão fortes, que nos atualizam com as verdades eternas. E eis que então vamos percorrer o mesmo caminho que Nosso Senhor rumo a cruz, mas também rumo a Luz. 

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Instante de Inspiração

Curioso esse momento do processo criativo que a mente tenta recriar aquela inspiração de instantes atrás que não pode ser registrada imediatamente, é como tentar reacender uma centelha que, num átimo de segundo brilhou e resplandeceu, apagando-se logo após e nem mesmo restando as sombras da sua luz para que fique registrada. 

Esses momentos especiais servem para dar ao coração uma nova carga nas suas batidas, são uma inspiração fugidia que vem e desaparece num piscar de olhos deixando apenas a impressão, um calor que pouco a pouco se espalha derretendo o que antes era uma enorme geleira no âmago de um poeta. 

Um amante só precisa do amor de seu amado, afirma aquele que esperou por doze anos para ter seu sentimento reconhecido, e agora agarra-se a ele, pois é o que faz a sua vida ter sentido, é o que faz acordar todas as manhãs com um sorriso no rosto por ver ao seu lado aquele que ama e, ao acordar, aquele instante em que ele observa o semblante tranquilo do amado adormecido é eternizado no seu coração, como se fosse marcado a fogo no profundo do seu ser. E então ele estende a mão e carinhosamente toca uma mecha de cabelo do outro, que lentamente desperta e esboça um leve sorriso, é um novo dia, e ali, naquele recanto, em seu jardim fechado frui desde as entranhas as águas da fonte cristalina de seu amor. 

Momentos que passam sem jamais voltar atrás, a mesma inspiração do poeta que, ao caminhar e ver uma borboleta pousar numa flor é transportado em espírito para um mundo completamente diferente, onde ali contempla uma beleza sem igual e, ao piscar dos olhos, sua visão se esvai na velocidade do bater de asas da borboleta que alça voo e vai para longe dali, em leves rodopios pelo ar. 

É como as longas pausas do Prelúdio de Tristão e Isolda que dão sentido ao conjunto poderoso da orquestra que avança lentamente como os movimentos da alma, uma pausa, um silêncio, que completa o que todos os instrumentos demonstram com sua paixão. Precisamos desses momentos de silêncio, mesmo que a inspiração pareça se perder no ar, mesmo que ela pareça se esvair é algo que permanece no coração, uma impressão, um sentido daquilo que há de mais elevado, algo anterior a própria experiência, algo do Logos que se imprime permanentemente na alma. 

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Máscara

Em profundo desacordo comigo mesmo, como se vivesse duas vidas distintas, uma repleta de mentiras e teatro, uma máscara que esconde minha verdadeira face. Na verdade a minha face é a da desilusão, a que vê o mundo e suspira de tédio, é uma face de desesperança, que já cansada dessa existência espera ansiosamente pelo silêncio da morte, pelo retorno a inexistência. Só o que eu consigo imaginar é que eu gostaria de me enfiar num buraco e desaparecer, sem que ninguém me encontrasse. 

Os dias estão cada vez mais chatos, eu não consigo ficar muito tempo sem recorrer aos remédios, eu só queria que o sono deles durasse pra sempre. E tudo está uma bagunça, desde minha cama até o meu coração, e as pessoas continuam esperando organização de mim, e não percebem que minha mente já não aguenta mais nada. É como se ela se desfizesse entre meus dedos, reduzindo-se a cinzas e sumindo no vento.

Mas todas essas metáforas eu já sei de cor, parece também que não há nada de novo sob o sol, sempre os mesmos dias irritantemente entediantes permeados de conversas sem sentido e sem profundidade alguma, uma vida superficial que, no entanto, me arrasta cada vez mais para o fundo, para outra metáfora já conhecida, um abismo onde não há luz, apenas uma escuridão sufocante e cada vez mais profunda onde as pessoas já não escutam mais os meus gritos de socorro. 

Do outro lado do mundo eu caminho numa praia iluminada, uma música leve no fundo, sem vozes, apenas o som da maré se quebrando com delicadeza, a espuma dançando com a graciosidade de uma bailarina enquanto o sol toca minha pele como um amante me tocaria. Aqui não há abismo, mas esse mundo não existe, e eu sou lançado de volta para a garganta do demônio, onde o cheiro de enxofre e carne podre infectam o ar, onde não adianta gritar. 

Já não vejo graça nos dias, apenas espero chegar a noite para adormecer e me esquecer da existência, já não tento mais, já não tenho nenhuma esperança. E os outros continuam querendo me tratar como se fosse uma questão de escolha, eu não escolhi ser ou estar assim, a minha história me trouxe até aqui, onde tudo é cinza, assim tão frágil, vazio e sem contorno. Não há como me tirar desse torpor com a força da voz, simplesmente não sobrou nada em mim que seja capaz de lutar. Só posso esperar pelo fim, pelo momento em que tudo retornará ao nada. Aliás, já não me sobrou mais nada, eu não sou mais do que apenas um cadáver adiado.

"Estou muito tranquilo. Que venham os meses e os anos, não conseguirão tirar nada de mim, não podem tirar-me mais nada. Estou tão só e sem esperança que posso enfrentá-los sem medo. A vida, que me arrastou por todos estes anos, eu ainda a tenho nas mãos e nos olhos. Se a venci, não sei." (Erich Maria Remarque, Nada de Novo no Front)

terça-feira, 5 de abril de 2022

Entre o Caos e a Tranquilidade

Minha mente está um caos com a proximidade da Semana Santa, são sempre muitos detalhes a serem resolvidos e geralmente poucas pessoas responsáveis. Minha mente anda caótica demais pra que eu consiga me lembrar de tudo mas tenho feito o meu melhor. Preparei as Laudes do Sábado Santo junto com os Ritos de Preparação Imediata para o Batismo, estou ainda trabalhando nos detalhes do Ofício das Trevas e, claro, da Vigília Pascal. Preciso encomendar velas, ensaiar coroinhas, orientar cerimoniários... Todo ano o caos se instala nessa época.

Me sinto bastante perdido, mesmo que nem toda a responsabilidade tenha caído sobre mim eu ainda sinto o peso, e por isso não posso abandonar, pois se eu me afastar, mais cansativo será para os outros e eu quero agir como na música, "que meu cansaço a outros descanse", e dar o meu melhor.

Algo mudou dentro de mim quando vi uma foto no Instagram, não era nada de muito especial, apenas um rapaz numa pose comum numa foto comum, mas ela me tocou, porque ele transmitia uma paz e uma tranquilidade que me parecem tão distantes quanto impossíveis no momento atual. Era uma calma que me contagiou, e me deixou com certa inveja. Aquele sorriso discreto, aquele olhar simples, aquela aparência angelical, era um quadro que mostrava uma beleza encantadora, e eu desejei ser aquele rapaz, aparentemente sem preocupações, bonito, sendo elogiado por todos. Fui dominado pela vaidade, admito envergonhado. 

Tento escapar por meio da música, me distraindo, mas não consegui me furtar ao ímpeto de apelar pros remédios, ou o caos na minha cabeça só iria piorar e eu não conseguiria fazer nada, o que seria bem pior. Tento escapar por meio do sono, onde me refugio num lugar que ninguém me encontrar, um lugar só meu, nos recessos da minha mente, um jardim fechado onde ninguém pode entrar, onde apenas eu contemplo a fonte cristalina que há ali. 

Preciso me acalmar, retomar as rédeas, e lembrar que não sou o único responsável por essas coisas, por mais que pese eu não posso me responsabilizar sozinho. 

Mas não posso deixar de desejar aquela beleza, aquela paz e tranquilidade... Bem distintos do caos em que me encontro. Quero chorar, quero ficar sozinho, quero silêncio, quero um abraço, um beijo apaixonado, quero alguém que me diga que tudo vai ficar bem. Queria a beleza que nunca vou alcançar. Queria me libertar, não das minas obrigações, eu amo o que faço, mas queria me libertar do peso que é sempre me achar inferior e incapaz, e de invejar aquelas pessoas que parecem ter uma vida melhor. 

Eu sei que eles devem ter seus problemas, sua falta de privacidade, o medo de desapontar, mas algo naquele sorriso, naquele rosto tranquilo indicam que o caos deles é mais ordenado que o meu que não consegue nem mesmo fingir que está tudo bem. 

E foi por isso que eu não pude deixar de fugir mais uma vez, eu já não consigo viver sem fugir da realidade, minha vida tornou-se absolutamente insuportável. Eu não consigo ficar acordado vendo o mundo ao meu redor sem beirar a loucura completa. A vida desperta não faz sentido, somente no silêncio do sono eu encontro algum alento nesse universo miserável.

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Visões do Amor

Almas que se reencontram depois de muito tempo, corações que se inquietam, inflamam de amor e nas adversidades do ser encontram a tranquilidade num olhar, num abraço apertado que junta de novo todos aqueles caquinhos que foram se espalhando pela dureza dos anos. 

Todo mundo devia merecer um amor assim, alguém eu fosse paciente e lutasse para compreender os momentos mais difíceis da sua alma. Todos deviam ter um abraço para retornar ao fim de um longo dia, alguém que secasse suas lágrimas que brotam e caem como gotas de chuva no terreno do coração. Todos deviam ter alguém capaz de sorrir mesmo depois de se machucar. Todos deviam ter um lugar para retornar quando tudo o mais parece estar perdido. Todo mundo devia poder se perder nos braços do amado ou nas curvas de um sorriso carinhoso onde se é compreendido e amado.

Digo isso enquanto me abraço mentalmente e busco, de algum, ser esse lugar para mim mesmo, tomado de uma profunda desesperança de que todas as pessoas um dia cheguem a viver isso. Todo mundo devia mas poucos são aqueles que conseguem alguém que se esforce para os entender de verdade e apoiar quando tudo parece desmoronar. 

Por isso acho bonito que nas histórias as almas destinadas se encontrem e se completem de algum modo. A minha inspiração pra pensar na beleza disso é a série que tenho assistido, The Miracle of Teddy Bear, e que mostra como o carinho por alguém pode fazer toda a diferença quando se trata de um coração maltratado pela vida. Um abraço reconfortante pode render lágrimas que curam e que colocam pra fora aquela mágoa antiga, aquela dor que se instalou no profundo do ser e que vai sendo exorcizada, eliminada pelo poder do amor. 

Por mais pessimista que eu soe eu sou uma pessoa que ainda acredita no poder do amor, só não acredito que todos consigam esse poder. A maior parte de nós tem de viver apenas com a própria esperança, e os que perdem até mesmo isso se tornam vagantes sem rumo. Me encontro dentre esses. 

Pensava nessas coisas enquanto assistia ao último episódio lançado e ainda tentava me recuperar do impacto que foi o filme que escolhi pra ontem a noite, Como Pétalas Que Caem, e que me mostrou, de certo modo, justamente isso, que algumas pessoas, mesmo destinadas ao amor, ainda sofrem para tentar encontrá-lo e ainda mais para que ele permaneça em suas vidas. O amor é como uma pétala que cai, florescendo brevemente para depois se perder, e apenas às vezes se mostra firme como a rocha. Nossa sina é conviver com essa verdade. 

Isso não significa, no entanto, que tenhamos de deixar de perceber a beleza da estação das flores, enquanto não caem as pétalas ainda são lindas de se ver e merecem ser contempladas. Como um amor que  não acabou, ou uma amizade que ainda não encontrou outro caminho. O amor deve ser vivido, e admirado como como uma pedra preciosa, enquanto ainda está aí. Por isso me lembro daquela passagem de Khalil Gibram que disse "Quando o amor vos chamar, segui-o". 

Não ficou clara a minha posição não é mesmo? É porque ela é turva também para mim, ao mesmo tempo que considero o amor uma dádiva a ser cultivada eu penso nele como uma arma que nos leva ao desespero. E é nessa tensão que eu me encontro. O amor é uma espada de dois gumes, uma estrada por agrestes escarpados mas com um brilhante céu pavimentado de miríades de estrelas. A mesma quantidade de sentimentos que podem caber num abraço apertado ou num sorriso sincero. 

domingo, 3 de abril de 2022

Outro Dia


A indisposição me capturou desde cedo, não queria sair da cama, não queria entrar na faixa de conflitos que se formava do lado de fora do meu quarto, tentei voltar a dormir algumas vezes mas a pressão dos compromissos me pesou a consciência e eu me obriguei a levantar. 

De cara já me lembrei da triste constatação de que não poderei dormir hoje o dia todo, pois já tomei remédios pra dormir duas vezes essa semana, o que significa que terei de encarar o hoje com a secura da realidade como uma lente em meus olhos. Odeio dias assim, pois eles passam com a lentidão de uma lesma, e eu sou forçado a suportar cada minuto como se uma a adaga me perfurasse o corpo, cada instante é uma longa tortura. 

Queria poder mais uma vez me entregar ao torpor do silêncio que ignora todo o mundo ao meu redor. Aquele mundo onírico é muito mais acolhedor do que esse aqui, a paz do sono profundo é incomparável com o incômodo que é essa vida, que é apenas uma oscilação entre a dor e o tédio. Queria voltar as trevas primordiais do caos onde tudo era silêncio e não haviam guerras e nem disputas por poder. 

Não queria ouvir bom dia ou ver a luz do sol, só queria continuar a dormir, sem previsão, sem expectativa para despertar. Por mim eu dormiria pra sempre num eterno exílio no mundo de Hypnos.

Não sei se terei forças para resistir, ainda agora o meu corpo clama pelo torpor, para voltar ao nada, cada fibra do meu ser implora pela tranquilidade daquele mar que se espraia infinitamente, e das tantas luzes que vão surgindo, numa paz, numa calma que ninguém estraga porque ninguém pode entrar nesse mundo que é só meu, ondem brilham as minhas cores. 

Qual a graça desse mundo? Qual a graça de estar desperto em meio a esse deserto, como se a qualquer momento tudo fosse desmoronar e se desfazer em cinzas? Nesse mundo não existe música que se compare com a daquele paraíso.

Minhas preces são silenciosas, e das profundezas eu clamo que me deixeis partir, que eu não seja obrigado mais um nascer do sol, o início de outro dia, de outro dia terrível. 

Agora já sinto meus sentidos se entorpecerem, meu olhar pesar, a música começa a fazer a minha mente rodopiar e ver belas imagens, bailes em que príncipes encantados de deslumbrante beleza dançam, jardins onde os casais caminham sem preocupação de mãos dadas, a vista de uma grande cidade iluminada por milhares de holofotes formando uma constelação construída pelo homem. Fecho os olhos por momentos cada vez mais longos, e cada vez mais sinto minha mão ser tomada por Oneiros, me conduzindo ao meu idílico paraíso de muitas formas. E então, como o ritmo já me conduz a uma cornucópia de sentimentos que acreditava estar bem no fundo do meu coração eu me despeço em direção a minha cama, donde espero não me levantar tão cedo, onde possa desfrutar desses mesmos sentimentos, e ver sua beleza brilhar como jóia, nos recessos mais obscuros do meu coração. 

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Resenha - My Ride

My Ride não prefigurou entre as séries mais populares por aqui, não por não ter uma boa proposta, mas pela quantidade de séries com casais mais famosos sendo lançadas ao mesmo tempo, facilitando que algumas boas obras passem despercebidas. 

Mork (Fluke Pongsakorn) é um mototaxista que terminou seu namoro repentinamente, já que sua namorada não via um futuro estando com alguém modesto como ele, deixando-o senspivel desde então. Enquanto isso Tawan (Fame Chawinroj, de My Dream) é um médico residente que acaba de começar um namoro que parece ser o relacionamento dos sonhos com Por (Pat Chatburirak) que trabalha no mesmo hospital que ele.

Tawan e Mork acabam se cruzando algumas vezes quando o médico contrata o rapaz para leva-lo ao apartamento do namorado, e daí os dois acabam se aproximando, ao passo que o relacionamento de Tawan com Por rapidamente começa a se deteriorar, fazendo com que o jovem médico encontre consolo na amizade com o mototaxista, que lentamente vai percebendo seus sentimentos pelo amigo mudarem em algo mais forte. 

A série gira em torno das dificuldades de Tawan em conciliar o trabalho com a atenção para aqueles que ele ama e com Mork, até então hétero, lidando com os novos sentimentos. Para isso ele conta com a ajuda dos tios, um casal gay que já está junto há muito tempo e que lhe oferecem bons conselhos. 

Mork e Tawan vão se apoiando e se aproximando cada vez mais, até que percebem que o sentimento de amizade que tinham se transmutou em algo muito mais poderoso, mas Mork ainda é inseguro para demonstrar e Tawan ficou traumatizado com o fim do namoro, sendo esse outro obstáculo que eles devem superar.

A história é de uma doçura ímpar, Mork está sempre pronto a cuidar de Tawan e é muito presente sempre que o doutor precisa. Tawan, ainda inocente, tende a se machucar com facilidade, precisando da ajuda do amigo para se reerguer. A construção do relacionamento deles foi muito bem feita, com cada episódio mostrando um pouquinho da evolução dos sentimentos deles. Eles constroem então uma amizade baseada no companheirismo e no carinho da cumplicidade, encontrando um no outro aquilo que precisam para superar as suas dificuldades.

O casal secundário é formado por Boss (Best Cholsawas de My Dream), um veterano rígido e disciplinado que sempre chama a atenção de Toy (Yoon Phusanu, de Y-Destiny e YYY), o calouro despreocupado que sempre chega atrasado e não faz a lição de casa. Os dois vivem em atrito até que uma situação engraçada coloca Toy em posição de chantagear o veterano, e então os dois começam a se aproximar. Embora não tenham um desenvolvimento tão bom assim a história deles é ainda fofa de se acompanhar.

Voltando ao casal principal, Mork é simplesmente apaixonante. Doce, cavalheiro, atencioso  (com as covinhas mais fofas do mundo) preocupado, ele acaba se sentindo inseguro quanto aos sentimentos por Tawan, primeiro por não entender ainda que pode se apaixonar por outro homem como se relacionar com alguém com um status superior, ele se sente insuficiente para Tawan que, por outro lado, é carente e só precisa de alguém que tenha paciência par cuidar dele, justamente o que ele acha em Mork.

My Ride traz então uma história doce, que avança lentamente mas sem perder o ritmo e cativa o espectador como carisma dos personagens. Um ponto negativo é a timidez com que trataram o relacionamento do casal principal, considerando que ambos são adultos e que Tawan já é bem seguro da sua sexualidade os beijos poderiam ser mais do que aquelas bitoquinhas secas, talvez por conta do horário em que é transmitida, mas isso não prejudica a história, sendo que por outro lado poderia tê-la tornado ainda melhor. Há muitos momentos pra suspirar, sorrir com aquela carinha boba de apaixonado e até tem uns alívios cômicos interessantes, o pacote completo. 

Nota: 9,5/10


Resenha - Enchanté

Contém Spoilers!

Quando a GMM TV anunciou essa temporada de séries Enchanté com certeza foi ofuscada pelo brilho das séries com grandes nomes da empresa. Com o anúncio do primeiro BL do Nanon com o Ohm da série OffGun com uma proposta completamente nova uma série com um shipp estreante não conseguiu tanta atenção assim, mas posso dizer com tranquilidade que, mesmo não estando no mesmo nível de Bad Buddy e Not Me, Enchanté ainda é uma série que vale a pena. 

Ela conta a história de Theo (Book Kasidet) que morava na França resolve voltar pra Tailândia após o falecimento da sua avó. Ele logo reencontra Akk (Force Jiratchapong), seu melhor amigo de infância, e um porto seguro num país que ele ficou distante há muito tempo. Theo cursa Literatura na universidade que seu pai é dono e, triste com a baixa procura de novos alunos e potencial fechamento do curso ele tem a ideia de promover um evento para mostrar aos resto da universidade o lado bom desse curso, pra isso ele vai contar com a ajuda dos quatro embaixadores da instituição, alunos famosos que representam a faculdade nos eventos. 

Chateado com a situação do seu curso e ainda sentindo-se solitário no país ele, num dia de tédio na biblioteca, escreve na última página de um livro e, no dia seguinte, descobre que alguém respondeu se oferecendo pra ser a companhia de Theo, se apresentando como Enchanté. Theo fica curioso para descobrir quem é e então Akk tem a brilhante ideia de espalhar uma convocação na faculdade inteira, marcando um encontro com Theo na biblioteca. Tudo parecia que daria certo, se não fosse o fato de que apareceram quatro rapazes dizendo ser o tal Enchanté e que começam a flertar com Theo.

O primeiro é Phupha (Aou Thanaboon), um aluno inteligente e mentor de Theo que é o primeiro a se apresentar como Enchanté e a dar em cima do garoto, tentando se aproximar dele de qualquer jeito. Depois temos o misterioso Natee (Fluke Pusit, de The Shipper), membro do clube de artes e talentoso desenhista que encontra em Theo uma inspiração para seus quadros. Wayo (Boom Tharatorn) é o capitão do time de futebol e um cavalheiro prestativo, que parece querer cuidar de Theo com carinho. Por último temos Saifa (Fluke Gawin de Dark Blue Kiss e Not Me), um músico popular que conquista a todos com sua voz. 

Os problemas começam quando os garotos começam a competir pra mostrar quem é o verdadeiro Enchanté, e Theo e Akk se esforçam para descobrir, no processo desmascarando alguns interesses por trás da tentativa dos meninos em se aproximar. 

Akk e Theo tem uma amizade muito íntima, os dois tem um relacionamento de confiança e carinho, e um pouquinho de implicância pra dar o tempero. Akk faz de tudo por Theo, que se sente deslocado e usado, e a todo momento demonstra carinho pelo amigo, e na busca pelo verdadeiro Enchanté a amizade vai se tornando algo mais poderoso. 

A série tem um visual impecável, as locações da universidade são belíssimas e a fotografia de uma claridade acolhedora. O desenvolvimento da amizades de Akk e Theo e o carinho que eles tem um pelo outro é belo de se ver, bem como a linha tênue entre uma amizade íntima e um sentimento romântico. A trilha sonora é um charme a parte, com o toque francês que deixa tudo mais romântico. As faixas principais são cantadas pelo Tay Tawan e pelo Fluke Gawin, que simplesmente arrasaram. 

Aos poucos o roteiro vai mostrando quem é quem, e os candidatos a Enchanté podem não ser o que parece, e enquanto vamos percebendo que nenhum deles é o melhor para Theo, Akk vai conquistando espaço com sua personalidade carismática que é, aliás, um dos pontos altos da série. A química dos dois é impecável e a amizade deles belíssima de se ver.

O que temos é uma temporada extremamente romântica, com muitos momentos fofos que deixam o coração quentinho. Perfeito pra quem procura uma série leve e com um desenvolvimento tranquilo, sem grandes reviravoltas mas perfeito pra maratonar naquele fim de semana frio ou ao lado do mozão. Embora não seja tão impactante quando o romance avassalador ou a baita crítica social das suas antecessoras Enchanté é uma excelente pedida e uma grande obra. 

Nota: 10/10