sexta-feira, 30 de junho de 2023

O que me faz apaixonar?

O que te faz apaixonar? Nunca te perguntei isso

A aparência de que nunca vai querer nada comigo. Eu me atraio por coisas como a aparência de doçura, simplicidade. No caso dele, a combinação da pele delicada com o formato firme do rosto, as veias na mão ali, os óculos grossos, essa junção de força, virilidade e, ao mesmo tempo, fragilidade, alguém de quem eu precisaria cuidar...

Fiquei pensando nessa resposta, um dia inteiro depois da conversa que tive com um amigo, e percebi que, embora tenha sido incompleta, assim como a avaliação que eu faço a seguir, ainda contém alguns elementos de verdade. 

Bom, o fato é que eu não sei o que me faz apaixonar. Eu realmente já tentei sondar mas não consegui saber de onde vem essa carência tão forte e profunda, daí então tentei examinar um pouco as características dos rapazes que costumam me atrair para, daí, tentar delimitar algo. 

Esses elementos que citei, a aparência de delicadeza, de simplicidade, são algumas das coisas que me atraem. Muito embora eu goste de fotos de homens fortes sem camisa eu sempre acabo gostando mais dos que não aparentam essa força. Eu gosto dos meninos mais delicados, até frágeis, com sinais de fofura, que aparentam precisar de cuidados, que demonstram fraqueza, seja moral ou física mesmo (okay psicólogos, me digam o que pode ser isso).

Algumas hipóteses podem ser extraídas então disso: talvez eu tenha essa propensão a gostar de pessoas mais frágeis por medo de ser dominado, pelo desejo de dominar, mas ao mesmo tempo eu percebo a facilidade com que essas, e outras pessoas, acabam me dominando. Será que eu busco a fraqueza porque a vejo em mim e então passo a querer cuidar como eu gostaria de ser cuidado? 

Apenas dizer isso já foi um esforço pra mim. 

Poderia estar em busca de alguém que necessita de cuidados por um instinto paternal que se revela justamente por ausência de paternidade no meu amadurecimento? Sempre me vi, desde que me lembro, com mais delicado do que os outros meninos, sempre me identifiquei mais com o feminino, com o belo, com o mutável, e então quando cresci percebi que, embora o forte me atraia, não me atrai tanto quanto o delicado. 

Então os corpos belos, esculturais, eu admiro, mas não os desejo. Ou talvez algo em mim já aponte tanto da minha insuficiência que acabo por nem sequer me autorizar a desejar alguém assim. Por outro lado a aparência de delicadeza tem um encanto quase hipnótico sobre mim, basta ver o quanto eu já me dediquei a escrever sobre belos rapazes aqui, sempre com descrições semelhantes, como no caso que deu início a essa investigação.

Ele apresenta uma pele clara, de aparência macia, leve como uma pétala e flor, ao mesmo tempo que seu rosto tem um formato duro, forte. Também comentei das mãos, as veias que saltam com força, enquanto a cor rosada da pele apresenta contraste suave. Gosto desse quadro, gosto de como posso ver isso e de como me encanta, e me vejo então querendo abraçá-lo, querendo sentir o cheiro da sua pele, me vejo querendo fazê-lo sorrir baixinho no meu ouvido, ao mesmo tempo que sinto sua mão firme em minha cintura ou se abaixando. 

Mas acho que isso me levanta mais perguntas possíveis do que respostas. Claro. 

Sou carente afetivamente por alguma ausência e demonstro isso em busca de querer cuidar de alguém? Mas é justamente a carência que me torna tão frágil e dependente que acabo por afastar as pessoas que fogem assustadas.

Que outras possibilidades posso tirar disso?

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Manhã de Corpus Christi

Foram dois momentos que me marcaram essa manhã de Corpus Christi. Levantei um pouco atrasado, cansado demais pra ir fazer tapetes às 5h da manhã na rua ao lado da matriz, e fui mais tarde envergonhado por não ter ajudado em nada mas, ao menos, consciente de que eu realmente precisava descansar. 

Aquele acólito passou por mim, mais uma vez me ignorando completamente ao falar com uma moça com quem eu conversava, e eu me senti invisível, de novo. E durante aquela missa, enquanto uma mulher conseguia estragar todas as músicas oitavando a voz principal num agudo insuportável, eu fechei os olhos e fiquei me perguntado, de novo e de novo, tentando descobrir a razão de tanto querer alguém assim. É ridículo, é horrível, é patético, e mesmo assim eu continuo tendo que lutar contra essa vontade, essa necessidade, contra essa imperfeição fundamental que se revela como um vazio que parece que só pode ser preenchido com outra pessoa. 

Essa questão já me persegue há muito tempo, já pensei nisso tanto e nunca entendi, de onde vem tudo isso? 

Mesmo agora eu me entristeço com o fato de que não sou prioridade na vida de algumas pessoas, como se isso fosse normal. Eu continuo desejando, e querendo ser aceito, respeitado e, principalmente, amado. Mas nada funciona nunca, e aí eu me odeio mais e mais. Odeio  meu reflexo, odeio minha sombra, odeio meu corpo, minha voz, minhas ideias, odeio tudo sobre mim...

Não encontrei nenhuma resposta, quase entrei em desespero. Aproveitei que estava tirando fotos da Missa e andei um pouco, me concentrando em pequenos detalhes da liturgia que, pelo menos, me renderam boas fotos. Um cacho de flores, a forma como a chama da vela nas mãos de outro acólito crepitava em frente ao altar, a disposição dos coroinhas em frente ao presbitério que, como eu fotografei contra a luz deu um ar quase beneditino ao arranjo...

Ao fim da procissão eu voltei para falar com aquela moça e aí se deu o segundo momento, quando ele se aproximou de nós e disse meu nome, e a conversa simplesmente aconteceu, entre risos e piadas, enquanto eu me controlava para não sorrir demais. Mas era incontrolável, eu estava em êxtase, estava que não me cabia em mim e, ao voltar pra casa, eu senti invencível, como o velho Yamamoto caminhando vitorioso por entre o exército inimigo derrotado aos seus pés. 

Queria dormir um pouco mas acabei fazendo um compromisso de sair com aquela moça, um pequeno preço a pagar por finalmente conseguir falar com ele diretamente, e por conseguir ouvi-lo dizer o meu nome. 

É, um dia com dois momentos diferentes... Talvez hoje, pela primeira vez em vários meses, eu durma com um sorriso no rosto. 

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Tortura e veneno

Acabei mergulhando de cabeça num grande pântano de rancor, sim, esse sentimento que me é novo acabou me dominando, e eu pude sentir os vermes daquele lodaçal rastejando em direção a mim, os tentáculos gelados do desprezo foram me envolvendo. É que aquele olhar de peixe morto, aquela voz irritante me penetram na alma até o tutano e, do âmago do meu ser me vêm uma violenta vontade de gritar e disparar como um São Tiago em direção aos mouros. 

Em outros momentos, de consternada ira, eu me vejo nos cenários mais pavorosos onde aquele sorriso idiota seria substituído pelos gritos lancinantes de dor. Talvez num quarto escuro, talvez com insetos rastejando sobre seu corpo, lançada ao desespero, com partes de seus membros lançados de qualquer jeito pela violência brutal daquela vingança. 

Essas imagens habitam no profundo da minha imaginação, mas eu sei bem que eu não sou uma pessoa ruim por isso. Não, isso é só reflexo de uma deficiência, de um medo, de uma insegurança boba de que alguém me seja superior. Na realidade eu prefiro a confortável posição de não precisar tomar decisões, de não me incomodar. 

Mas parece que ser simpático com todos é uma coisa ruim, quem diria que a educação atrai o desprezo? Eu devia ter aprendido melhor com Santo Tomás e internalizado de vez que é precisa ser amigável com todos mas não permitir a intimidade em exagero pois ela leva ao desprezo. E é nesse ponto que eu sorrio, de modo irônico, sabendo que as trevas no meu peito logo vão se dissipar e que eu devo colocar em lugar delas a maturidade séria que me convém. 

Se bem que, mesmo assim, seria muito bom colocar ela no seu lugar, recolhê-la a sua insignificância, talvez ver rolar algumas lágrimas naquelas bochechas que mereciam umas boas bofetadas e uma cusparada de desprezo. Que raio de pessoa inconveniente! Qual a dificuldade em saber seu lugar? Qual o problema de entender, coisa que qualquer criança deveria entender logo que chegasse aos dez anos, que nem tudo é do jeito que a gente quer? 

São pessoas frustradas, e eu também sou, mas pelo menos eu sei disso. Só me assusta um pouco como a pessoa consegue estar completamente fora da realidade em seus juízos e, justamente por isso, se achar dona da razão. 

E eu então, que não gosto de embate, fico na defensiva, ou melhor, fico fingindo que não existo e que ela também não existe, porque, no fim das contas, se eu só me preocupo realmente com as coisas que importam, com as que, confrontadas com as ideias dos náufragos têm algum valor, ela realmente não importa. 

Até poderia tentar acrescentar alguns parágrafos mais gráficos destilando esse veneno, mas estou cansado demais pra isso, ganho mais tomando um bom gole de vinho e indo dormir, afinal amanhã vou acordar de novo não é mesmo? 

Um último acréscimo, que eu só percebi quando já me aproximava da cama pra dormir, é que, no fundo, o que eu sinto é uma vontade tremenda de ser mais forte, reconhecendo que o outro, por mais idiota que  seja, sempre consegue defender as idiotices em que acredita, por mais estúpidas que sejam. Eu, por outro lado, fico a sonhar que um dia poderia sorrir no meio de um combate como aquela Kenpachi Unohana que, de braços abertos, esperava qualquer um que ousasse cruzar espadas com ela justamente por confiar que, sendo mais forte do que qualquer um, o resultado seria sempre o mesmo: a morte dos seus inimigos, desfiados ao fio de sua lâmina ou brutalmente derretidos pelo veneno de sua Bankai. Mas Unohana era uma guerreira realmente formidável, esses idiotas são apenas idiotas que falam alto demais. Eu, por outro lado, não consigo nem gritar, estando por baixo da pilha de corpos da maior assassina de toda Sereitei ou correndo dos embates com um idiota qualquer. Um covarde de marca maior.

Daí eu também sonho, meio bêbado já depois de uma ou duas garrafas daquele vinho, em deslizar minha mão por uma espada mágica e fazer dela escorrer um veneno capaz de derreter a carne de todos os inimigos. É, é uma convalescença leve e demente, de um pobre covarde antes de dormir. Fecho os olhos e sinto as lágrimas brotarem, tento conter mas é em vão. E, se me afasto, para tentar não ser grosso, continuo sendo interpretado assim. 

Bom, meu olhar indolente esconde uma aura assassina ou apenas mais uma camada antes da covardia de um gatinho assustado? Eu sou patético!

terça-feira, 27 de junho de 2023

Aforismos

Não sei se eu ciclei, se eu estou reagindo de uma forma péssima ou se isso é um episódio misto e eu tô, ao mesmo tempo, querendo morrer e com energia pra construir uma hidrelétrica ou se eu simplesmente endoidei. Queria muito tomar um porre de rivotril e capotar, apenas isso, e dormir por uns três dias, e voltar ao normal, mesmo não sabendo quando é que eu fui normal. Droga. Hoje vai ser um dia daqueles...

Muita informação. 

Muita. 

Ao mesmo tempo. 

Na minha cabeça. 

Exposição abrindo no trabalho, solenidades na paróquia, minha saúde andou dando uma derrapada esses dias, eu tô ignorando a vida amorosa por um tempo porque sem condições de pensar nisso e outras questões não tão bem resolvidas estão vindo todas ao mesmo tempo. E eu preciso respirar, mas ao mesmo tempo fazer mil postagens diferentes, cuidar de textos, fotos, coordenar, sorrir, falar, comer, pagar algumas dívidas e fazer outras. 

Minha cabeça deu um pequeno nó, e eu não tô conseguindo processar quase nada, devo estar com cara de retardado ou emburrado quando, na real, eu só tô confuso mesmo. Nem é nada pessoal com ninguém, só que as coisas estão indo rápido demais, e eu não consigo acompanhar. 

Simplesmente não dá.  

Tá tudo uma bagunça. 

X

É errado eu imaginar um momento simples, numa tarde de domingo, você e eu organizando livros, os livros que prometemos ler e usar para crescer, os livros que contém as incontáveis vidas que vivemos, os livros que contam histórias que absorvemos e que agora povoam nosso coração, que fazem nosso julgamento não ser bobo e superficial, mas ser amparado por séculos de tradições dos maiores que já existiram. Mas é errado pensar em fazer isso com você? Nós dois usando moletom, você numa regata branca larga e eu já sem camisa, sorrindo enquanto comento sobre alguma passagem específica de uma obra que li há alguns anos... Duas taças de vinho sobre a mesinha de centro, um beijo simples entre um gole e a retomada da organização, um sorriso calmo e numa tarde de temperatura amena. É, eu acho que é errado, você não gostaria nada disso, mas eu posso pelo menos sonhar isso na intimidade do meu sono?

X

Ele passou por mim como se eu nem existisse e, embora conversasse com sua mãe, ele agiu como se não estivesse ali, ao lado dele, há pouco centímetros do seu ombro, e tudo que vi foi um pequeno olhar na minha direção, um mero reflexo, quase imperceptível, que durou uma mínima fração de segundo... Isso só confirma o que eu já sabia, tomando-o como exemplo singular de uma situação geral: eu sou insignificante. Se alguém não precisa de mim não vai se lembrar da minha existência patética. Não sou o amigo dos bons momentos, sou aquele em quem as pessoas descontam as suas raivas e frustrações, aquele que não reage, que nunca revida, que sempre apanha. E ele se foi, como uma sombra, passando por trás de mim. 

Depois disso eu me sentei no banco da igreja, fechei os olhos e teria conseguido rezar se não fosse a música exageradamente sentimental que tocavam que mais me irritou do que conseguiu me fazer rezar. Por outro lado ela me emocionou e eu vi que as pessoas ao me redor, todas elas, confundiram a emoção da música com alguma ação do Espírito Santo. Me pergunto se algumas delas percebe que se colocasse uma música tipo aquelas da trilha sonora de 50 Tons de Cinza elas ficariam excitadas... Acho que não. Mas, de todo modo eu fiquei ali. Apenas uma sombra, imperceptível e insignificante, como sempre. 

Teria tomado uma boa garrafa de vinho quando voltei pra casa mas fiquei com uma crise de alergia insuportável durante todo o dia e só consegui chegar e dormir. Minhas semanas têm se resumido a isso: trabalhar com um sorriso no rosto enquanto aguento o mau humor dos outros como se eu mesmo não tivesse nenhum problema, onde todos podem ficar de cara feia menos eu porque ai eu sou grosso e, no fim de semana, eu fico doente e não consigo descansar nada... É, é uma boa rotina. Será que alguém vai descrever isso ao escrever como foram meus últimos dias? 

X

Todos eles são iguais. Me machucam com um olhar alegre, com prazer sádico, como se meus sentimentos não fossem nada. Foi assim anos atrás quando aquele homem me pediu, enquanto eu chorava em seus braços, que eu me desculpasse com aquela mulher maldita. Agora outro homem me obriga a ouvir sobre ela como se isso não fosse como se ele enfiasse um punhal no meu peito e, tirando-o com violência, lançasse meu sangue como pequenas gotas de rubi espalhadas por um palco de uma peça que ninguém assiste. Cada uma dessas pequenas gotas de rubi estão cristalizadas de meus sentimentos mais profundos, que se derramam enquanto ele ri de mim. 

Nem mesmo posso dizer como o admiro, como seu corpo é para mim tão belo quanto o Torso Arcaico de Apolo, como o admiro de tal modo que ele é quase um ideal, a imagem de um semideus cuja única graça eu imploraria era que me deixasse vê-lo, uma única vez que seja, ou tocá-lo, ainda que isso significasse minha morte.

Eu só tentei amá-lo com tudo que tinha, e o mais que faço não vale nada.

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Um olhar que ela nunca viu

Um deles tinha aquela vida cinza, aliás preto e cinza eram a cor da maioria de suas roupas, e ele sempre aparecia em público com aquele olha vazio que todos achavam sensual, como o homem sério e gentil dos sonhos de qualquer garota. 

Mas tinha outro de olho nele, e aquele via nesse o olhar vazio e distante de um sonho que só ele poderia ajudá-lo a realizar. Por isso quando ela se foi, virando a esquina no luxuoso carro alugado, ele se aproximou do outro, solteiro por alguns dias, e o chamou para beberem juntos, servindo uma generosa dose de whisky assim que se sentaram no bar daquela mansão. Onde estariam os outros moradores daquela casa? Não importava, e ainda que estivessem todos ali ele teria investido do mesmo jeito.

Foi preciso apenar um olhar, os olhos brilhantes e cheios de desejo, e uma frase "você devia fazer tudo o que tem vontade fazer" e, em pouco instantes, os dois estavam de pé contra o batente, as calças abaixadas, e ele estava violentamente fazendo o que tinha vontade, enquanto o outro gemia satisfeito por finalmente conseguir o que tanto queriam. 

Fizeram várias vezes naquela noite, em todas as posições possíveis, todas as inibições esquecidas como as roupas ao chão e, na manhã seguinte, foi como se estivessem ficando juntos pela primeira vez. Um sentado por sobre o membro duro do outro, ambos em uma frenética competição para ver quem fazia o outro ceder primeiro, e pelo visto nenhum dos dois iria se entregar tão cedo. E naquela manhã começaram apenas com um simples gesto da mão dentro da roupa íntima, excitando ainda mais aquele músculo que nem sequer dormira, e que refletia meses de excitação reprimida, que ele apenas aliviava momentaneamente com a namorada. 

Mas ele nunca abrira as pernas dela com aquela violência, com aquele desejo, ele só queria se livrar rápido daquilo, mas ele, ah, aquelas pernas ao seu redor agora, era aquilo que ele desejava o tempo todo. Todos os olhares, todos os toques sutis, durante meses e meses ele desejou aquele momento, desejou ouvir aqueles gemidos, desejou chegar bem fundo daquele jeito, e desejou aquele homem mais do que tudo, mais do que a carreira de sucesso, mais do que o grito das fãs e mais do que a dedicação da namorada em fazer deles o casal perfeito. 

E ela merecia isso. Merecia ouvir cada um daqueles gemidos quando um cravava as unhas nas costas do outro ou quando chegava ao fundo, estocando com força, os olhos fixos um no outro, nenhum flash dela sequer passou pela mente dele. E a culpa não era dela? Naquela manhã, depois de várias e várias rodadas de sexo e whisky, ele queria que todas as mulheres do mundo, manipuladoras, traidoras e sufocantes, se sentissem traídas, assim como ela se sentiu ao abrir a porta, sorridente, e dando de cara com aquela cena, com outro homem cavalgando no pau do seu namorado, sorrindo como uma puta e, pior ainda, ganhando dele um sorriso safado de prazer que ela nunca vira e julgara que ele era incapaz de dar. 

Ele queria que ela sentisse isso, e eu queria também, também sentia em mim aquele impulso vingativo contra as filhas de Eva, num devaneio nada sutil de lançar todas num vale tenebroso de chamas e dor por toda a eternidade, e talvez assim elas sintam um pouco da dor que senti... Isso faz de mim uma pessoa ruim? Esse desejo de querer, por uma única vez, que elas sentissem o que sinto toda vez que um homem me deixar por uma mulher?

Depois daquela manhã de calor, em que ela entrou e viu os dois se desejando profundamente e gritou como louca, eles viraram as costas e saíram, e eles ainda iriam comprar roupas juntos, coloridas dessa vez.

sábado, 24 de junho de 2023

Aforismos

Venho enfrentando quatro dias de uma crise de alergia que parece não ter fim. Cheguei a perder um dia de trabalho na semana passada e não consegui descansar nada no fim de semana que se seguiu. Hoje, voltando a rotina normal, estou exausto. Até me sentei pra escrever mas as distrações do trabalho fizeram tudo ruir... Droga! Minha atenção está mínima, e ainda tenho um monte de coisa pra fazer, quando minha única necessidade era ficar uns três dias dormindo direto. 

Preciso de um café bem forte, e quem sabe dormir um pouco. Em vão, eu não vou poder fazer isso tão cedo... 

X

Foi uma tarde cruelmente difícil, e surpreendentemente eu consegui tudo que pretendia, organizando e adiantando alguns trabalhos mas, por fim, acabei me deitando num sofá na minha sala e apenas de olhos fechados, me concentrei nas dores que sentia no corpo todo, em como estava enjoado e muito tonto e como as cores estavam manchando na minha visão. Queria, mais do que tudo, sair e dormir.

Felizmente eu consegui chegar em casa mais cedo do que esperava, e um banho quente me ajudou a relaxar, assim como um copo de leite e um relaxante muscular antes de deitar. Consegui dormir e descansar ao menos um pouco. Vou dar três palestras hoje e amanhã mas, pelo menos, estou bem mais disposto do que ontem. Não sei se é um episódio misto ou resultado dos muitos remédios que andei tomando, alguns com cafeína porque antialérgico costuma dar bastante sono, mas eu me sinto estranhamente revigorado. 

Revigorado também está meu pessimismo e, embora eu esteja fisicamente disposto, eu continuo olhando pra tudo ao meu redor com ceticismo brutal, não esperando nada de bom, nada mesmo, e talvez por isso eu consiga aproveitar ainda algumas coisas, como uma caneca de chocolate quente ou uma música nova... Coisas assim. De resto, nem os homens bonitos das ruas despertam mais a minha atenção. Apenas olho por um ou dois segundos e só... Não há poesia em mais nada. 

Até tive um encontro com um cara esses dias e, embora ele seja muito simpático e um completo fofo, eu não consegui sentir nada. Eu poderia, durante o beijo, virar os olhos para o mar e simplesmente ficar ali olhando aquele imenso cinza. Aqui dentro também é tudo cinza. 

Os versos da música da Roberta Campos são aqui bem ilustrativos:

"Eu tenho andado tão sozinho ultimamente
Que nem vejo à minha frente
Nada que me dê prazer
Sinto cada vez mais longe a felicidade
Vendo em minha mocidade
Tanto sonho perecer..."

X

Disse a você esses dias que, em alguns momentos, sentia meu coração inflamar assim de repente, e me vinha uma vontade incontrolável de dizer que te amo. É um ímpeto, vem assim, do nada. Geralmente acontece no meio da manhã, se fecho os olhos rapidamente ou até mesmo enquanto converso com alguém... Meu peito se enche e eu sinto a respiração falhar, e tudo de repente se torna amor, só amor, numa ânsia infinita que vem como uma onda, impossível de se parar. Você disse que me entendia, mas eu sei que seu peito se enche de amor por ela, por outra... 

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Atentado

O que aconteceu com a Igreja no Brasil é lastimável, sério, e a cada domingo eu sinto isso cada vez mais.

Existem alguns grupos católicos mais fiéis a Tradição e que normalmente mostram suas celebrações, sóbrias, dignas, belas, cheias de zelo. E então comparamos com as nossas celebrações cotidianas: a música brega estourada, a falta de organização, o excesso de decorações afetadas e coloridas, apelos sentimentalistas e vazios nas homilias... As pessoas enfiam tanta coisa na liturgia que ela se torna uma festinha piegas, uma série de homenagens, de momentos kitsch e é só isso. 

Se cantam alguma coisa as pessoas já começam a bater palmas, ninguém entende a sacralidade do momento e ninguém, tenho certeza, reza abanando os braços numa música música de tradução duvidosa e ritmo exagerado, além de voz estridente. 

O mesmo vale para a nossa arquitetura. Durante séculos as igrejas foram o centro da vida da cidade, os sinos ditavam as horas do trabalho e as celebrações eram ditadas pelo ritmo das estações, tudo buscando refletir o máximo da ordem e da harmonia. Todos se reuniam para rezar na época do plantio e depois na colheita, para agradecer. Nos países mais frios todos rezavam e acendia inúmeras velas pedindo a volta do calor, e o sol era símbolo do Cristo ressuscitado. Se o sol trazia nova vida a comunidade Cristo trazia vida eterna aos cristãos. Hoje nossas igrejas são caixas vazias, as imagens foram diminuindo, as velas diminuindo, as cores diminuindo ou perdendo a força simbólica, a cruz foi ficado menor e não mais ocupa o lugar mais alto do altar. Não há duas paróquias no mesmo bairro que alguém diria ser uma igreja, mas prédios de péssimo gosto arquitetônico. 

Aonde foram parar as torres, o formato românico ou gótico, os sinos, os retábulos, o sacrário no centro? 

Mas o homem fala cada vez mais, e a posição de todos é fechada em si, não há abertura ao Divino. Aqueles que, com boa vontade se aproximam do altar com devoção são bombardeados com informações de cunho social e político, com anúncios de virtudes que ninguém sabe mais o que são e intermináveis avisos sobre eventos que ninguém sabe o que é e cujas inscrições são feitas com alguém que eles também não conhecem. 

É um verdadeiro show de horrores. E então se olhamos aquelas belas celebrações, como no Vaticano ou lugares com o Instituto Bom Pastor, e vemos a beleza das igrejas, dos paramentos, da música sóbria, do silêncio e da profundidade das homilias, repletas de séculos de tradição patrística e escolástica que realmente nutrem a alma dos fiéis. 

Precisamos voltar! Não ao mero formalismo estético, mas a uma verdadeira aceitação da Tradição que nos foi deixada. As músicas que nossos antepassados cantaram, as vestes que eles usaram e a dedicação em estudar e rezar, todo tempo, em toda circunstância, rumo a uma vida mais santa. 

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Aforismos

Uma figura delicada se marcou na minha mente, como a pétalas de uma cerejeira, de um rosa suave, quase branco, e de pureza indescritível. Assim era aquele jovem, um jovem perdido entre todos os outros, agitados e barulhentos. Ele me sorriu duas ou três vezes, e eu provavelmente fiquei vermelho ao sorrir de volta, e ele andava a passos largos, saltitando, com o cabelo enroladinho esvoaçando, enquanto ele vinha falar comigo. A roupa que ele usava demonstravam certo contraste: a camiseta simples e branca embaixo de uma flanela vermelha, a doçura daquele olhar puro e o sorriso cativante. Tudo que pude fazer foi sorrir em resposta e, fechando os olhos, guardar a imagem dele no coração. É provável que nunca mais o veja, e que ele se esqueça de mim assim que virar a esquina, mas aqui, hoje, ele me fez impressionado com tamanha beleza em figura de delicadeza, não como a força do torso arcaico de Apolo, mas com uma única pena, alva e quase intangível, das asas do Amor. 

X

Olhando pra você eu vejo muito da distância que há entre nós. Eu vejo a sua sobriedade ao vestir, diferente da minha simplicidade, eu vejo o quanto você valoriza a elegância como símbolo da virtude e percebo o quão distante das virtudes eu estou. Vejo como você se porta e, mesmo que alguém aponte que somos parecidos, eu vejo que na realidade nós nos distanciamos cada vez mais. 

E hoje faz um belo dia, choveu um pouco de madrugada e, quando saí cedo, ainda escuro, pra ir à missa, ainda chovia fraquinho, e eu senti a brisa fresca no rosto... Passei agorinha perto da porta e olhei para fora, o céu se estendendo num cinza claro até onde não posso mais ver...

E você sempre me fala dos seus sonhos, e eu digo como são belos, e eu não sonho mais nada, ou melhor, se pudesse me atrever a sonhar algo, sonharia com você, mas nem mesmo isso. Meu sono é sempre profundo e silencioso, escuro e confortável, muito confortável. Mas não há sonhos. 

X

Bem, foi uma preocupação que veio enquanto assistia, ecoando algumas palavras de meu pai de alguns dias atrás. Lembro que ele falava que, depois do divórcio, as coisas começaram a dar errado e nunca mais se acertaram. Ele se juntou com a minha mãe, anos depois eu nasci e, desde que aquela época eles nunca conseguiram se estabilizar, em vários aspectos. Por muitos anos ele teve um grande problema com alcoolismo, depois vieram os problemas financeiros, mais dois filhos, problemas conjugais envolvendo o desgaste das relações e infidelidades, mais e mais dívidas...

Entendo bem o sentimento dele. Meu pai não ganha um salário nada ruim, pelo contrário, mas nunca consegue construir nada, o dinheiro simplesmente desaparece. Mesmo depois de muitos anos, eu já tô quase chegando aos trinta, meus pais nunca conseguiram comprar uma casa, não temos mais carro e as dívidas continuam aumentando. 

Ele apelou para uma explicação que envolve a malícia de uma pessoa que poderia desejar isso a ele e que poderia ter feito algo, bom, eu não sei se é isso e nem tenho condições de investigar o assunto por esse ângulo, mas entendo como ele pode não conseguir nunca se estabilizar porque, em menor escala, acontece exatamente o mesmo comigo. Quando eu finalmente começo a melhorar simplesmente me vem uma ânsia incontrolável e eu acabo gastando o dinheiro todo sem nem pestanejar. No último mês tinha uma promoção numa livraria e, ao invés de eu comprar alguns títulos apenas eu fiz um empréstimo alto comprometendo a minha renda por meses e me prendendo mais uma vez, sendo que eu poderia muito bem começar a juntar para um investimento futuro e mais importante.

A nossa casa atual é realmente pequena pra todos nós, e pelo valor do aluguel aqui em Joinville não vamos conseguir nada barato, e para comprar, bom, seria um investimento ainda maior que no momento não conseguimos fazer. Mas é fato que em alguns poucos meses vamos precisar nos mudar de novo... Essa casa é de madeira que não recebeu tratamento, tem mofo por todo lugar não importa o quanto a gente limpe, há vários dias eu venho tendo crises de alergia... As coisas estão apertadas e não conseguimos arrumar nada porque sempre tudo parece muito cheio. 

Precisamos de uma casa maior, onde possamos limpar as coisas melhor, ou eu precisaria morar sozinho e mais próximo do trabalho... Mas olha, tudo isso já é uma perspectiva grande demais. Eu tenho certeza que vamos sair daqui pra outra casa tão ruim quanto, muito provavelmente num bairro ainda mais distante. Minha mãe deve conseguir mais espaço para as plantas mas o conjunto vai ser horroroso e eu vou ter que fazer ainda mais esforço pra trabalhar...

Claro que isso nos leva há algumas possibilidades: nós realmente temos coisas demais e poderíamos nos livrar de muitas delas. Nós estamos todos cansados demais para realmente pensar em arrumar algo e todos somos descontrolados com o dinheiro. Nossa perspectiva de futuro não é nada boa. Fazendo eco as palavras do meu pai, que eu sempre repeti: parece que pra gente nada dá certo, nunca! 

Que isso possa vir de alguma ação maliciosa de alguém eu não excluo mas, de todo modo, não é pensar nisso que vai fazer a gente resolver. Aliás, nem sequer acho que tem como resolver, pelo contrário, estou até profundamente convencido de que algumas pessoas realmente estão condenadas a não verem nada nas suas vidas darem certo. 

terça-feira, 20 de junho de 2023

Do discurso ordenado

Meu caro amigo e afilhado me procurou com a seguinte reclamação: de que, comparado com outras pessoas, ele tem dificuldade de organizar as ideias na hora de formular perguntas ou de explicar alguma coisa. Percebeu a dificuldade na clareza das ideias e como a sua fala reflete apenas bagunça. 

Bom em se tratando de organizar o pensamento, começando a explicação de modo simples, isso se consegue de duas maneiras: aprendendo a captar a forma do discurso (ao assistir um documentário, por exemplo, ou uma boa aula cuja estrutura permita organizar mentalmente assuntos naturalmente complexos) e o mesmo acontece com o uso das artes, e das faculdades adquiridas por meio das artes liberais, que permitem adaptar as formas complexas dos problemas em estruturas mais organizadas no panorama mental. 

Quando se lê a Ilíada e a Odisseia, e você se dá conta que as ações temporais têm consequências eternas, como o grande dilema da escolhas dos heróis: isso já é uma ordenação do pensamento. Condensa-se então nesse símbolo toda a complexa rede de possibilidades, de duvidas, anseios e toda sorte de dramas humanos que se encontram misturados no coração do homem e então consegue-se mais clareza ao refletirmos sobre esses mesmos dramas que habitam nosso coração. Essa experiência ajuda a ordenar, cada vez mais o pensamento e o discurso. 

Quando, citando outro exemplo, preparo uma aula, eu busco encontrar formas de relacionar o assunto com a sua realidade de modo a fazer com você consiga acompanhar a explicação mas, em outro nível, de modo que você capte também a forma com que estou dizendo. 

Temos então esses dois elementos no discurso: o conteúdo e a forma. Assim como na língua temos uma parte mais ou menos fixa, que é composta pelas regras de morfologia e sintaxe, e uma parte mais móvel e cambiante, todo o universo dos significados, as sutilezas e nuances dos diversos escritores...

Dominar apenas a forma do discurso é algo que o nosso meio universitário faz muito bem, e o aplica até a exaustão: basta ouvir um discurso político ou de algum militante de qualquer causa e podemos perceber que ele apenas decorou uma série de cacoetes mentais e giros de linguagem sem dominar nada do assunto de que trata, pois se o tivesse feito perceberia que, na esmagadora maioria das vezes, os problemas são abordados de forma a justamente nunca terem solução. Isso porque o discurso puramente formal não diz respeito a nada na realidade. Mas isso não significa que a forma não é importante, muito pelo contrário.

Se observarmos as grandes obras de arte poderemos perceber que a forma é tudo! Seja na literatura, na música, na arquitetura, a forma é aquilo que permite com que o conteúdo seja apreendido da melhor forma possível. 

Por isso a minha constante insistência em adquirir o senso da forma por meio da arte, do contato com a alta cultura. A leitura das grandes obras, o contato com as maiores criações da humanidade, essas coisas nos abrem as muitas possibilidades do discurso e, enriquecendo o nosso imaginário, vamos nos tornando cada vez mais capazes de escolher a melhor forma de abordar cada assunto. 

Funciona mais ou menos com um escritor iniciante que tenta imitar as formas dos autores que lê. Se escreve poesia ele tenta imitar a sua métrica, trabalha redondilhas e outras formas de modo a imitar da melhor forma. Ao passar para a prosa vai absorvendo dos autores um pouco de cada, seja a força expressiva dos românticos ou a frialdade dos naturalistas... Assim ele amplia seu repertório de modo que, quando for falar sozinho, ele usa um pouco do que aprendeu com cada um e assim cria seu próprio estilo. 

E nisso as artes são fundamentais. Quando observamos que todo o drama da alma humana se encontra nas estruturas do inferno, do purgatório e do céu de Dante, que caminha deste aos abismos mais profundos, sobe a montanha penitente até chegar aos céus, ou quando vemos a forma sinuosa do Jardim das Aflições que se assemelha com a forma das sinfonias do Sibelius, isso nos mostra como vamos captando as formas e dizendo melhor o que sentimos e o que aprendemos. 

Muitos professores padecem da dificuldade da forma, claro, aprender um assunto já é complicado, aprender a ensinar é outro esforço e nem todos têm as duas vocações, mas é certo que podemos sempre melhorar. 

Daí vemos como captamos uma lista quase infindável de virtudes na obra de Tolkien, e como ele passa longos capítulos descrevendo a beleza de bosques e florestas mas os inimigos de verdade são sempre citados não com a mesma presença forte dos bosques mas como uma força espiritual espalhadas nos ares, vemos um reflexo da mentalidade cristã do autor que enxerga na criação a beleza do Criador e que vê o pecado como essa corrupção que ronda a todos e que, no entanto, não cria, mas justamente apenas corrompe. Essa é uma forma complexa mas profundamente útil de explicar, por exemplo, a dialética negativa de Hegel e da Escola de Frankfurt que buscam destruir e corromper por meio da crítica ostensiva. Num outro nível o autor de O Senhor dos Anéis trata ainda de novo da questão dos dramas eternos, uma vez que as virtudes dos personagens, bem como as suas fraquezas, têm consequências, mas que fazem parte dos planos ordenadores de Erú que, mesmo na revolta dos que ele criou, consegue fazer retomar a ordem. 

Por isso a importância de tomar a todos os grandes como mestres, como a realidade é de complexidade imensa pro homem, buscamos nas diversas linguagens as melhores formas de dizer. Pegamos um pouco de Homero, da profunda consciência do coração de Shakespeare, da sabedoria de Virgílio, da delicadeza quase sobrenatural de Mozart, da força de Rembrandt, da paciência de Sto. Tomás... E assim vamos aprendendo a falar. 

domingo, 18 de junho de 2023

Reorganização

Só estou reorganizando as coisas na minha alma. Sim, na alma pois o amor se dá na parte superior da potência humana e é nela que preciso operar a minha mudança. Eu te disse quando usei a analogia do baú de tesouro alguns dias atrás, se lembra? Eu vou colocar o meu amor por você num baú e guardá-lo como um tesouro, mas isso leva tempo, justamente porque esse baú deve ficar na profundidade da minha alma, em local tão secreto que até mesmo eu tenha dificuldade de achá-lo pois, como não usarei tal amor com você e nem tampouco entregarei a outro, ele deve ficar secreto. Esse movimento da alma requer algum tempo, os movimentos superiores do ser não se fazem no mesmo tempo que as ações temporais e corporais, é um movimento que impacta diretamente na eternidade. Desse modo eu dou mais um passo rumo aquela minha resolução: a de abraçar a minha missão intelectual e não me distrair com coisas do mundo, ainda que essas coisas sejam o amor que, penso, venha do próprio Deus. 

Na busca pela Verdade eu quero encontrar o próprio Deus, e fazer o melhor possível que chegue a hora do fim, e o mais que faço não vale nada. Sendo um movimento interno até a dor precisa ser encarada em espírito de quietude, por isso tenho buscado uma disciplina quase monástica para isso. Não darei esse amor a outro, eu não quero mais me distrair tanto quanto antes e, muito menos, tornar a sofrer num amor unilateral, como o nosso, onde eu me derramo completamente e recebo em troca... Enfim, é assim que as coisas devem ser. Se eu tivesse tido a honra de conhecê-lo, chamaria o velho Buck pra tomar algumas garrafas de vinho agora. 

Isso significa que tenho dado muito mais importância aos momentos de silêncio e solidão, que tenho preferido dormir enquanto trabalho isso profundamente pouco a pouco, construindo um muro ao meu redor que me impeça de sentir a torpeza do amor de novo. Até nos breves momentos de luxúria eu tenho me sentido avesso a todo sentimento, tenho preferido abafar tudo, sufocar e fazer morrer lentamente ao invés de alimentar qualquer um por menor que seja, pois sei que eles crescem rápido e que logo nos devoram, que a fera que nasce de um amor gentil no coração não demora a enfiar suas garras afiadas e suas presas dilacerando esse mesmo coração em busca de sair e se libertar, deixando então uma casca destruída. 

E eles nem sequer percebem, a dor que me causam. Seja nas palavras ásperas, na ânsia por poder e influência ou simplesmente pela insensibilidade. Torno então a pensar nas divisões que há entre todos nós, nos limites de nossa consciência e na dor que há quando duas consciências se tocam, sem conseguir se entender elas se machucam, não raramente sem nem mesmo perceber, cabendo a nós, como no Dilema do Ouriço dito por Schopenhauer, encontrar uma distância segura entre todos. E é interessante como todos os homens sábios ensinam coisas nesse sentido. Me recordo, por exemplo, do conselho de Santo Tomás de ser amável com todos mas não próximo demais, pois a proximidade gera o desprezo e isso dá ocasião para abandonar o estudo. 

Tudo isso mostra então qual deve ser a inclinação da minha alma, que devo buscar a verdade, que devo buscar apenas a Verdade, a Verdade Eterna, e o mais que faço não vale nada. 

sábado, 17 de junho de 2023

Nem mesmo um engano

Percebi isso, talvez definitivamente, quando voltava para casa, já um pouco mais tarde da noite, me escondendo do vento frio atrás de um casaco grosso de lã, e passando em frente a casa dele, acenando brevemente para sua mãe. Mesmo só passando lá, eu senti meu coração bater mais e mais rápido, como se fosse sair pela boca, e de repente eu fiquei eufórico. Me dei conta então do quanto ele mexe comigo, do quanto ele me faz perder o equilíbrio, e isso tudo sem nem saber que eu existo ou, se o sabe, sendo indiferente a mim. Acontece que mesmo que eu só tenha passado na frente da casa dele eu senti como se fosse atraído por um centro gravitacional fortíssimo. Ele já estaria de pijamas aquela hora? Estava iniciando uma partida de algum jogo? Ou estava vendo notícias sobre seu time do coração? De todo modo foi como se ele gritasse meu nome, como se corresse atrás de mim e me puxasse pela mão, num solavanco se lançando aos meus braços depois de me fazer girar nos calcanhares, assustado e paralisado pela sua voz. Foi como se ele tivesse me enfeitiçado, pelo puro prazer sádico de me ver perder o fôlego ao passar pela sua casa, pelo prazer de saber que eu perco o fôlego também antes de dormir somente com a visão do seu sorriso discreto, na minha cama fria, antes de adormecer cansado e inquieto. 

X

E inquieto eu continuo, agora sem nem saber o que se passa comigo com o que parece ser um episódio misto anormalmente longo. Minha mente está desperta, desde o momento que acordo até a hora de dormir os pensamentos vêm e vão numa profusão assustadora. Em contrapartida o corpo está extremamente cansado, tenho acordado todos os dias como se tivesse sido atropelado por uma manada violenta e os próximos dias serão agitados, tanto no trabalho quanto fora, tenho reuniões, grupo de estudos e alguns eventos pra ir, porque ninguém é de ferro e nem só de trabalho consegue viver, ainda que na maior parte do tempo pareça o contrário. 

X

Constantemente lidando com as perspectivas de futuro dos outros, seja dos meus amigos que agora começam a se casar, ou até mesmo só observando as pessoas no ônibus, elas se dividem em dois grupos: ou aparentam apatia e conformismo com o desconforto cotidiano ou demonstram crescente ansiedade, parece que algo no futuro as impele a acordar, tomar o ônibus e enfrentar o dia cansativo. Mas eu, eu não, eu faço isso todos os dias de modo meio automático, só acordo e é isso aí, sem maiores razões, não tem nenhuma força, nada que me leve a continuar. Eu não vejo futuro, não penso no que fazer, não penso muito em nada, apenas me deixo levar pelas ondas, não tenho muito o que esperar, pra ser sincero, só aguardo pelo dia de finalmente colocar um fim, eu mesmo, a essa existência patética. Sou do grupo dos apáticos biônicos.

X

Preciso, urgentemente, dormir. É sério. Não aguento mais a mente em parafuso. Um milhão de pensamentos e sentimentos num décimo de segundo. Vou de uma risada exagerada até uma leve irritação, passando por um obscuro desejo de vingança e até uma certo desejo luxurioso, tudo isso num piscar de olhos, e percebe-se isso pela minha voz afetada. Eu odeio isso, odeio mesmo. Odeio ficar carente, irritado, mandão, querer ficar sozinho e querer um abraço de um estranho, tudo isso enquanto toca uma única música. Não posso ir pra reunião, ou me arrisco a cometer alguma gafe ou, pior, me comprometer ainda mais. Não posso chamar alguém pra conversar porque sei que vou dizer alguma bobagem. Então eu preciso me fechar no meu quarto escuro e apagar, apagar e esperar que amanhã eu acorde melhor.

X

Cá estou agora, esperando que os remédios finalmente façam efeito, depois de um longo dia que parece ter espremido mais três e onde eu fiz todo o caminho da Divina Comédia, indo pelo céu e o inferno, sem esquecer o purgatório, e que me fez ter cada vez mais a certeza que eu não sei nada, confirmou-se na simplicidade de uma viagem abafada de ônibus a minha mais completa falta de perspectiva. Mas então, por qual motivo eu continuo acordando cedo, me esforçando, lutando com toda essa oscilação de humor? É apenas pra chegar em casa e ver algumas cenas românticas que só vão me deprimir mais e mais por saber que nada disso é real e que no mundo aqui fora ninguém nunca vai me amar? Ou será que há em mim ainda uma centelha de esperança, uma pequena faísca que mesmo em meio a tempestade ainda brilha, tímida entre as pedras, prestes a tornar um grande incêndio? Há essa esperança em mim? Eu não a vejo, de modo algum. Só vejo uma profunda e contínua desilusão. Mesmo que a paisagem seja bela, que os homens sejam belos, nada vale a pena, só pensar na morte me oferece consolo. Tudo o mais me parece... chato. E eu sei que meu telefone não vai tocar nenhuma vez sequer essa noite. Nem mesmo um engano.

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Grande fluxo

Uma corrente elétrica passa pelos meus braços e pernas, explode em minhas costas. Meus olhos se movimentam rápido, pensamentos mil, dois mil, dou duas voltas na terra em meio segundo, fiz todo o trabalho que tinha para fazer na semana, torno a olhar o relógio e ainda não deu a hora de voltar pra casa. 

Não gosto de me sentir assim porque esse excesso de produtividade faz com que as pessoas sempre esperem isso de mim, que sempre esperem essa explosão. 

Certa vez ouvi de uma pessoa que também passava pelo Transtorno Bipolar que ela poderia ser inútil durante a fase depressiva porque compensava sendo genial durante todo o resto do tempo. Eu não sou genial mas sou produtivo e isso cai por terra durante os episódios negativos. 

Uma corrente elétrica passa pelos meus braços e pernas, explode em minhas costas. Yoruichi Shihouin diria ser o princípio de Shunko, o que seria ótimo se não fosse apenas trágico o fato de que isso me torna, em real, uma pessoa instável, muitas vezes maluco, completamente desequilibrado. 

O resultado não é fazer de mim um filho da deusa relâmpago, mas, é uma perna inquieta permanentemente, uma dor no peito e uma ansiedade crescente, junto de uma leve irritabilidade. Acho que estou morrendo, seria até um alento na verdade, nada mais de paixões não correspondidas e nem a participação em liturgias horrendas e disformes, somente o sono eterno na frialdade da terra. Até mesmo a poesia se aventura demasiado exagerada nesses dias. 

Eu entendo sua confusão minha mãe, também pensava que tudo se resolveria na labuta diária. Mas as flores não se abriram em abril, a neve não derreteu, os amores não vieram... E então o que mais posso fazer senão sacrificar meu corpo em sagração pela primavera, dançando até cair de exaustão, oblata maculada?

Que Eça de Queiroz, dos ermos túmulos dos grandes escritores da língua portuguesa, me perdoe por tomar de paráfrase a descrição de um de seus personagens como a minha própria. É que ao falar daquele homem ele descreve a mim com mais clareza do que eu mesmo poderia:

Muito inteligente, é o que dizem, estudo desesperadamente, mas, como também o digo, sou uma tumba. Quase aos 30 anos, pobre, com dívidas, já estou farto de morar na casa de meus pais como um verme incapaz, das minhas roupas de segunda mão e, nessa mediocridade, vejo os outros, os mesquinhos, de vida superficial, subir até a prosperidade. Bom, por perceber isso, ando cada vez mais amuado com a vida, cada dia me prolongando mais em silêncios e me incomodando profundamente com o vozerio feliz e desesperado dos tolos.

E então dói algo que aos outros parece completamente comum: o incessante fluxo de informações. Essa torrente estupenda que cascateia como se jamais fosse ter fim. E é absurdo saber que muitas vezes eu sou como as estações que, em alguns meses seca essa cascata, como em outros abunda infinitamente. Preciso, nesse momento, do silêncio e da escassez do deserto. A turba me envolve e me engole, mas ela também machuca porque a sensibilidade continua sendo atacada por todos os lados, ainda que a excitação a encubra. Eu queria, na verdade, não saber e nem mesmo perceber, que eu sou apenas sozinho, fracassado e desequilibrado. 

Nesse momento mesmo eu estou no meio de uma grande confusão mental por causa de um episódio de mania anormalmente grande, que já vai para três semanas, e eu estou ficando maluco com isso, com um fluxo horrendo de pensamentos que chegam a me deixar enjoado. 

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Sem malícia

Eu sei bem que você não faz por malicia, talvez por um reflexo inconsciente de me lembrar meu lugar, de me fazer entender os nossos limites. E você repete que não consegue explicar o que sente por mim e resume isso, numa síntese confusa. Na fórmula "Eu te amo" se condensa toda a sorte de ambiguidades e toda a intensidade que não pode ser dita a não ser por aqueles poetas que aparecem apenas uma vez em várias gerações. 

Por isso você fala dos seus sonhos, do seu amor e admiração por ela, e me pede conselhos, e eu apontei que você dizer isso ao homem que é apaixonado por você é um tanto quanto cruel. Sei também que você não faz ideia da dor que isso me causa, e que cada vez que fala disso você me perfura a carne com centenas de agulhas, como se cortasse com aço frio a carne macia, abrindo longo nacos e fazendo jorrar o sangue como de uma fonte. 

Mas eu não tenho o que fazer, eu jurei que seria seu amigo e seu padrinho e assumi responsabilidades muitos maiores e mais importantes que os desejos de expressão do meu amor. Sim, os desejos de expressão, porque meu amor é maior que tudo isso e, exatamente por esse motivo eu decidi desistir, decidi que vou pegar o amor que tenho por você e guardar num pequeno baú, feito da madeira mais nobre e adornado de pedras preciosas que encontrei no meu jardim mais sagrado. O meu amor ficará nesse baú, guardado e escondido nas profundezas do meu coração como meu tesouro mais valioso, pelo qual eu morreria e, justo por isso, eu vou sacrificar meus desejos para continuar a caminhar ao seu lado, como seu amigo, sendo aquele que você precisa e sempre, sempre te cercando de meu amor mais sincero. Nem sempre funciona mas, ainda assim é o melhor que posso fazer.

E eu sei que nisso eu estou me matando, sei que exagerei em misturar vinho com uma quantidade absurda de Clonazepam, mas eu preciso organizar isso no silêncio profundo do meu sono, eu preciso guardar meu tesouro no mais profundo inconsciente, num jardim secreto e velado, que só pode ser alcançado a longa escada de ditosa ventura, em noite escura de amor em vivas ânsias inflamada. 

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Você nos meus pensamentos

A vida é uma droga, já te disseram isso cara? A vida é uma droga. Parece que a maior parte dela é ficar em pé num ônibus cheio de gente suada, todos com a mesma cara de tédio profundo, sem muita esperança pra nenhuma delas. Até tem uns caras bonitos nesses lugares, mas eles nunca olham pra mim, olham para as garotas, todas feias e medíocres, com a bunda apertada num jeans barato. Todos eles querem foder com elas, e embora eu os ache bonitos estou cansado demais para querer foder com eles, isso porque a segunda parte da vida é chegar em casa cansado demais para qualquer coisa. 

E só o que eu consigo pensar quando finalmente deito na cama, usando um pijama velho que não faço ideia de quem foi e que ganhei de alguma parente, é que eu me odeio. Me odeio com todas as forças porque ela, e eu nem sei quem ela é, vai poder tocar o seu peito peludo, e ela vai poder fazer isso e até mesmo ir além. Enquanto eu, eu nunca vou poder nem sequer tocar você. 

É, a vida é uma droga cara, e eu nem posso encher a cara porque trabalho amanhã cedo, pegando mais um ônibus cheio, e também não posso tomar um porre de Rivotril porque o meu estoque está no fim... A vida é essa porcaria, e no fim a gente morre. Bem, do jeito que estou agora eu queria morrer logo. Como alguém que pula o sexo e vai direto pro cigarro eu queria pular todo esse esforço idiota e simplesmente sumir. Seria bem melhor. 

Hunpf, aquele cara do ônibus deve estar fodendo uma novinha agora ou, se ele tiver um gosto um pouco melhor, deve estar rebolando na rola de algum cara grandão e malhado. Desculpem os pensamentos escatológicos, mas estou com raiva demais pra pensar na beleza lírica da coisa. 

Estou em silêncio. Envergonhado. Eu estou envergonhado, e eu sei que você vai dizer que está tudo bem, mas não está! E você não devia dizer que me ama, não, isso está errado. Você devia me odiar também, devia ter nojo de mim. Você sabe as coisas que eu pensei? Você sabe como apareceu nos meus pensamentos mais luxurioso? Você não devia estar aqui pra mim, devia me deixar como todos os outros deixaram. E eu não culpo nenhum deles, porque eu sou um monstro, eu sou um daqueles demônios que, quando as pessoas descobrem que existem, elas o perseguem em desespero temendo pela vida das pessoas que viajam sozinhas. Mas esses demônios não desaparecem, essa besta feroz apenas muda de forma, como eu mudo: para uns sou só um professor idiota, ou um rapaz de boas intenções, mas nenhum deles vê quem eu sou de verdade pois, se visse, já estariam atrás de mim com lanças e archotes, ou correndo apavorados. 

Você não devia dizer que me ama. Porque eu te amo tanto, mais tanto, que isso me dói aqui sabe? Isso faz com que eu me veja da pior forma possível porque parece que meu amor é errado, é sujo, é um incômodo, uma perversão e nada mais... Mas eu continuo te amando e isso me deixa profundamente envergonhado.

Você entende o que eu quis dizer quando disse que não conseguia parar de pensar em você? Eu estou tão envergonhado ingemisco tamquam reus...

Morrer é a coisa mais útil que eu deveria fazer. Quisera que a tua bondade me deixasse morrer de amor. 

~

Um recado pra minha querida leitora: tenho amado seus comentários, sério, eles me dão um novo panorama e muitas vezes clareiam imagens turvas, penso que é justamente isso que queria, mesmo sem saber, quando comecei a escrever alguns anos atrás. Não se preocupe, essa melancolia, que já deves ter notado, é algo corriqueira mas não somente isso. 

Os posts estão atrasados, eu estou  postando coisas que escrevi há mais de um mês atrás porque escrevo numa velocidade muito maior do que consigo revisar e postar. Então o que se lê é uma impressão também fugaz do que já se foi e que ficou impressa no meu coração. Talvez apareçam alguns mais otimistas, outras conversas com amigos que eu dou uma acrescentada, enfim, spoilers. Por favor, continue me presenteando com sua visão, anônima ou não, pois estou gostando muito dessa interação. Qualquer coisa marcamos um vinho, agora com esse friozinho, ou uma sessão de terapia (deve notar que eu claramente estou precisando).

terça-feira, 13 de junho de 2023

Aforismos

Parecia uma cena daquela série*, em que a mudança de humor acontece tão rápido que é perceptível num instante de dissociação. Eu achava que isso não podia acontecer, mas foi assim. Eu troquei de roupa, peguei uma caneca de chá e, com a câmera em mãos, ia descendo as escadas quando, no meio do lance, parei, a minha mente se anuviou e tudo ficou meio branco. Pisquei rapidamente, depois lentamente, olhei para trás, o prédio de grandes vidros, e depois olhei para baixo, fitei alguns segundos a madeira antiga embaixo de meus pés, amarelada desde a década de 40, e só o que consegui fazer foi voltar, subir os degraus novamente e, na minha sala, me jogar pesadamente na cadeira, o chá agora parecendo bem mais sem graça, as fotos que eu queria tirar me soaram como uma tortura imensa e a água sob a mesa, veneno puro. Tenho certeza que hoje não consigo fazer mais nada. Meus braços ficaram fracos, minha vazia, eu só quero poder ficar quieto no escuro e em silêncio.

E até meus colegas que já perceberam o quanto eu sou estranho e diferente, em como mudo de humor rapidamente, comentam isso, e mais uma vez eu chego ao outro extremo. Se na semana passada estava afoito e eufórico de repente me veio um peso enorme que me deixou prostrado. Aquela disposição se foi, assim, como fumaça da caneca de chá desapareceu no ar... E eu fiquei assim. 

Certa vez Nietzche disse que "a ideia do suicídio é uma grande consolação: ajuda a suportar muitas noites ruins" e penso que essa súbita melancolia possa ser uma boa oportunidade para falar mais sobre essa resolução que tive alguns dias atrás. 

Há alguns dias eu tomei como resolução aceitar a solidão, torna-la solitude e, desse modo, guiar as minhas forças para coisas realmente aceitáveis. Isso significa que meu pensamento deve estar voltado para realidades superiores, a busca da Verdade então no cimo de todo e qualquer esforço. Bom, claro que isso vai levar um tempo indefinido, visto que o homem se aproxima da Verdade como uma assíntota, não é uma busca com um fim que possa ser encontrado nessa vida, ao passo que a própria vida é, em si mesma, finita. Temos então a aparente contradição da finitude da vida e da infinita Verdade que podemos encontrar. 

A finitude da vida vem acompanhada do declínio das forças e, somando então esses fatos: a aceitação da vida solitária como regra, a finitude e limitação do corpo e a abertura para a Verdade eu encontro consolação na ideia do termo da existência quando as forças já não forem o bastante para me sustentar. Então quando atingir a maturidade completa, quando a maior parte da geração anterior tiver ido, quando a minha partida não for mais causa de dor para minha mãe, quando eu mesmo lançar o primeiro punhado de terra sob o seu caixão, aí sim estarei livre, verdadeiramente livre do sentimento de amar e ser incompleto, insuficiente. Até lá me abraçarei com a solidão e ingratidão enquanto busco a verdade. 

X

Achei bonita a visão dele sorrindo logo cedo, pela manhã. Estava com a namorada, já tinha visto-a com ela uma ou duas vezes e também a foto que fica no papel de parede do celular. A aliança prateada brilhante no dedo... E ele se curvou em direção a ela, que estava no banco de frente para ele no ônibus, mostrava algum caminho num mapa online, e sorria gentilmente e docemente, e eu notei a barba por fazer, mais aparente no bigode. Ele usava um casaco bege, o que o deixou com uma imagem belamente fresca, combinando com a manhã um pouco mais fria da meia estação. Fiquei encantado com o sorriso dele, e talvez alguém tenha notado isso mas eu nem ligo, pelo menos eu pude ver essa bela imagem ainda nas primeiras horas da manhã. 

X

Lutei muito pra me desvencilhar das pessoas e finalmente me sentar e fechar os olhos pra trazer de novo aquela visão que tive quando prestei atenção aquela letra pela primeira vez. Eu precisava ter aquela visão de novo. Eu queria ter na vida simplesmente essa visão. Você, no quintal de uma casinha branca, de camisa de flanela e o sol acariciando sua pele rosada, as crianças correndo ao redor de uma grande árvore, uma mangueira acho, e uma bela moça, a sua esposa, a estender um lençol de alvura inigualável, enquanto olha pra você orgulhosa. Você apoia levanta o olhar e passa a mão na testa limpando o suor, e olha pra devolvendo o carinho. Sei que você queria ter na vida, simplesmente, um lugar de mato verde pra plantar e pra colher... É, mesmo que eu não faça parte dessa visão eu admito: é uma bela visão!

 ~

*Modern Love, 3° episódio da Temporada 1.

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Dons

Bem, estamos diante de uma questão que, como toda regra universal, precisa ser avaliada individualmente em cada caso. A questão dos dons então colocada é de que todo dom dever ser posto em virtude de Deus, sendo que é preciso reconhecer nas coisas e na nossa própria capacidade de que modo isso acontece.

Primeiramente pensamos nas pessoas que se colocam a disposição de Deus de modo completo, como os religiosos que se dedicas as práticas de caridade ou aqueles que se dedicam ao serviço do altar. Temos muitas boas pessoas, em todos os estados de vida, que se colocam a serviço do Senhor usando aquilo que receberam e que bem fazem uso dos seus dons. Temos pessoas com o dom de ensinar e que colocam a serviço sua memória, sua inteligência, sua fala, como pessoas que atuam hoje, Pe. Paulo Ricardo, Prof. Felipe Aquino, Guilherme Freire, o próprio Olavo de Carvalho com seu jeito converteu muitas pessoas. Esses últimos inclusive podem ser tomados como exemplos pro ponto que eu quero colocar.

O serviço do cristão está sempre voltado a Deus conforme ele faz o seu trabalho de modo honrado e buscando a virtude, o que significa que todos devem ver no seu ofício um aspecto que traz benefício ao outro. Policiais cuidam da vida das pessoas, médicos curam, professores ensinam, e os cristãos se destacam nisso porque em tudo buscam a excelência. É no quere melhorar sempre, no buscar a virtude em todo estado, em todo momento. Como pode um químico buscar a virtude no seu laboratório? 

Ninguém vive longe dos outros, até aquele que trabalha na solidão em algum momento se relaciona com o outro, então se revela a perfeição cristã na honestidade, na caridade... O cristão se distingue assim. Devem por isso buscar se configurar a Cristo em tudo. Grandes santos viveram seus ofícios na perfeição e por isso foram e são fonte de inspiração para tantos outros. Santa Dulce e Santa Teresa cuidaram dos pobres, os pais de Santa Teresinha cuidaram da família, e assim se fizeram perfeitos. 

Então a questão está em fazer tudo da melhor forma, com a melhor dedicação, tendo em vista as virtudes sempre. Seja nossa memória, inteligência, força... Seja onde estivermos devemos buscar exercitar para que sejamos melhor aos olhos de Deus na caridade com o próximo. Bons pontos de orientação são as obras de misericórdia, as próprias virtudes e, claro, o contato com as coisas elevadas que nos ensinem como ser santos, seja por imitação ou contraposição. Por exemplo, um filme pode nos ensinar a ser um bom pai ou um péssimo profissional. 

sábado, 10 de junho de 2023

Eu, Flaubert e Caio

"(...) A melancolia é um prazer sensual deliberadamente provocado. Quantas pessoas se fecham para ficar mais tristes, ou para chorar à beira de um riacho, ou escolher um livro sentimental! Estamos constantemente construindo e desconstruindo a nós mesmos." (Gustave Flaubert)

X

Não sei dizer bem o que tem acontecido comigo nos últimos dias. Achei que após uma boa noite de sono eu acordaria me sentindo melhor mas isso não aconteceu. Tenho estado com a paciência curta, evitado contato e em silêncio, não contemplativo mas emburrado mesmo, tudo tem me irritado. Hoje não me animo com nenhuma música, nem com fotos e nem conversas. Não sei dizer o que poderia me animar. Ontem ainda pensei em tomar uma garrafa de vinho antes de dormir mas, no fim das contas, acabei deitado e adormecendo de qualquer jeito, sem nem coragem de levantar e a perspectiva do vinho, ou de conversar com alguém, tudo me causava desconforto. 

Talvez seja efeito da minha recente resolução, sobre a qual já falei algumas vezes aqui e que parece ter tomado grandes proporções no meu peito... Acho que eu só queria poder ficar mais deitado. A verdade é que hoje eu estou absurdamente chato, no sentido mais amplo do termo, insuportável até mesmo para mim. 

Hoje já não quero consolo, pois meu amor já não existe, nem beijos ou abraços, quero apenas o silêncio e o escuro. Queria dormir o dia todo, sem me importar com nenhuma mensagem ou com que roupa eu vou usar. Se bem que em casa também tem toda aquela bagunça, e a incompreensão da família em achar que eu tô no auge da vida enquanto eu acho que tô pouco acima do fundo do poço. Até meus colegas de trabalho dizem que, alguns dias, eu chego com "cara de morte" e, bem, é assim que eu me sinto mesmo, não acho que tenha problema em demonstrar isso. Carrego comigo o olhar indiferente e indolente de um idiota, enxergando o futuro com pessimismo e desesperança, uma profunda desesperança que, se a cidade inteira ruísse hoje mesmo, se eu caísse doente de morte, ainda seria um cenário mais bonito do que o que eu imagino e vislumbro. 

Talvez mais tarde aceite aquela garrafa de vinho ou um tiro na perna. Não sei mais diferenciar uma coisa da outra. Tem uma xícara bem grande café fumegante ao meu lado mas eu sei que não é o bastante. Pelo menos a estação já está um pouco mais fresca. 

X

"Reconheço, estou em desequilíbrio, estou me distanciando cada vez mais. Faço este esforço até quem sabe alcançar um ponto tão remoto que não saberei jamais encontrar o caminho de volta, se existe um, e penso que não. Ao pé da escada ele me espera, braços abertos, parado sobre o tapete. Tem o peito largo, sinto, ao afundar de encontro a ele essa parte minha sem forma a que acostumei chamar de face, seus braços podem dobrar-se apertando minhas costas enquanto sinto seu cheiro, esse cheiro espesso de sal, algas, corais, medusas, águas-marinhas. Quero perder-me nele, como o que nunca terei... fecho também meus braços em torno de suas costas, aproximando-o de mim para que nossos dois corpos se confundam, para que nossos cheiros se misturem, para que pelo menos por um segundo sejam, eu, ele, uma coisa única..." (Caio Fernando Abreu)

~

Imagem: Casey Childs

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Palavras desequilibradas

"Minhas desequilibradas palavras são o luxo de meu silêncio" foi o que disse Clarice Lispector num daqueles lampejos de genialidade atormentada. 

Estou uma pilha de nervos hoje. Já pensei em meter a cara numa dose cavalar de tarja preta umas três vezes, já respirei fundo pra não ser grosso e já fechei a porta pra não ver e nem responder ninguém. Pensei que fosse apenas um efeito do jejum intermitente que tenho feito mas, mesmo depois de comer eu continuo assim. Me irrito com a bagunça da casa, com a indolência da minha irmã, com a minha mãe se intrometendo na minha dieta, com meu colega de trabalho irresponsável me mandando mensagem no dia da folga, com os corpos magros do Instagram, com o meu celular sem mensagens porque eu sou insuportável e sem amigos. 

E de novo eu olhei os números dos acessos desse blog, e das visualizações no meu perfil, e entrava num loop em outras redes sociais, com a frustração aumentando mais e mais a cada ciclo, num retrato bem claro de um inferno psicológico, preâmbulo de um surto psicótico. 

Mas eu não quero entrar num vórtice de loucura, eu quero abraçar o caos e não me importar com mais nada. Que a casa fique um caos, que eu fique com fome e morra doente, contanto que morra magro, que as coisas saiam do trilho, a minha parte eu faço da forma correta, mas não posso obrigar ninguém mais a fazê-lo. Que eu morra sozinho, mas sem chorar pela minha sorte, pelo menos nas séries e filmes os homens têm finais felizes. Na minha vida os homens desejam mulheres ou outros homens que só querem sexo, e enquanto isso eu só queria companhia. Queria, porque hoje eu só quero dormir em paz, sozinho mesmo e, se me pressionarem demais, eu caminho de madrugada até o trapiche e me lanço na água. Sem saber nadar devo durar menos de um minuto me debatendo na água até que essa porcaria toda acabe, até que essa vida miserável termine. 

E parece um exagero chegar a isso, e talvez o seja mesmo, mas é assim que eu vejo, em silencioso desequilíbrio. 

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Imagem: The Drinkers, de Van Gogh

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Aquelas músicas

Algumas músicas me fazem lembrar daqueles dias, dias obscuros, dias tão difíceis que minha carne treme e meu espírito vacila somente em lembrar. Eu tomava um monte de comprimidos pra dormir e escrevia enquanto o efeito começava, geralmente me rendendo bons adágios lamentosos que combinavam com a seleção de músicas que eu montei especialmente para aqueles momentos. Antes eu me limitava a fazer isso uma vez ao mês, depois aumentei para uma vez na semana e, pouco depois, já fazia três ou quatro vezes ao dia, me viciando em fugir da realidade cada vez mais. 

A playlist começava com a inconfundível Utada Hikaru, nas duas músicas usadas nos créditos do último filme de rebuild de Neon Genesis Evangelion, que apesar da arte impecável não me conquistou tanto quanto o primeiro anime lançado, de todo modo One Last Kiss e Beautiful World, que inicia com alguns acordes dedilhados num violão e depois dá lugar aquela voz agradável e romântica, davam o start dessa sessão de hipnose forçada, sempre com bastante angústia, que pouco ia se transmutando pela química em um transe e, depois, em um sono profundo por poucas horas. Ela conseguiu colocar vários elementos que me são profundamente caros e que ditavam a tônica de todas as escolhas seguintes: continua uma alegre esperança no amor, um desejo que se revelava nas formas como a melodia leve dá espaço para as batidas mais marcadas dessas duas faixas pop que são a obra prima dessa artista. 

Algumas faixas mais para frente tinha dois covers na voz potente e soft de Kim Woojin que eu nunca parei pra ouvir no original. Era Before You Go do Lewis Capaldi e Easy On Me da Adele, e mesma ela sendo uma das cantoras mais incríveis que já vi, reconheço que foi a beleza ímpar e a força da voz dele que me conquistaram. Depois, Radio, uma baladinha do Henry em que ele fala de como as coisas são na cabeça dele, me embalando e preparando para o oceano que se seguiriam e uma outra faixa, leve e um pouco psicodélica, com aquele espírito libertador do Holland, numa vibe que começava a bater a dopada candura. 

Depois vinha a doçura do Nunew em My Cutie Pie, uma faixa mais agitada mas com letra tão romântica que ainda combinava com o todo conceitual que criei para aquele momento, permeado de amor não correspondido e uma esperança que me sufocava em meio a depressão. Seguia-se então o charme de Woosung nas faixas do The Rose que eu escolhi, RED com aquela sensualidade alegre, The Beauty and The Beast, apaixonada e ILYSB, melancólica declaração numa noite num bairro distante mas animado por algumas garrafas de Soju. Essas já faziam eu me perder nos refrões melódicos e na guitarra que acompanhava a voz potente do vocalista. Depois disso eu já começava a sentir os primeiros efeitos do Zolpidem e a escrita se tornava mais frenética. Me lembro então de como se misturavam, a voz doce a fofura inquestionável do Nunew que me faziam querer abraçá-lo e o sorriso do Woosung, que combina um carisma impressionante com uma sensualidade simples naquele gestual performático do cantor.

As próximas me levavam quase ao delírio estético, ao mesmo tempo em que derramava em palavras o meu sangue apaixonado, vazio, que se lançava no silêncio e no torpor. Tem a faixa tema de Not Me, meio profusa, na voz de KANGSOMKS, aquela contagem regressiva que confessa o desejo do beijo na trilha de Lovely Writer (1, 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9, 10 and KISS!) do Gavin D, a combinação das vozes dos meninos do F4 Thailand em Who Am I, onde Dew, Nani e Win preparam a base para Bright entrar no refrão mais alto assim como na série os meninos fizeram de tudo para apoiar o amigo a seguir seu amor.

Lembro que, mais ao final, tinha uma combinação inesperada, com Singto, Krist, Off, Gun, Bright e Win cantando OK!, um tema para propaganda de macarrão instantâneo. Rapidinha e engraçada, com um frescor da combinação das vozes e uma pequena modulação no OK! do refrão que me cativou e, mesmo não sendo nada triste, me fez colocá-la aqui. Não posso deixar de citar umas das maiores faixas virais de Tailândia, a faixa DARARI, do grupo coreano Treasure que simplesmente bateu todos os charts do Tik Tok entre os artistas do meio BL, enquanto eu me lembrava, muito vagamente de todos os vídeos que vi dos meninos dançando, com a mão na cabeça, eu então começava a mergulhar na escuridão, a névoa pouco a pouco se tornava mais e mais densa.

Agora eu já tinha dificuldade de escrever coisas com mais coesão, com frequência eu adormecia pouco depois dessa parte, muito embora não estivesse nem na metade e, depois acordando esporadicamente e ouvindo trechos que me faziam voltar a profundidade. A poderosa balada de TAEYANG, Eyes, Nose, Lips e seu refrão inconfundível e sua coda sensacional, sempre cantei com plenos pulmões mas aqui eu só internalizava toda aquela potência, enquanto ele cantava à frente da imagem em chamas de alguém que o deixou... Outra grata surpresa é a faixa que Mix Sahaphap assina para a trilha sonora de Fish Upon The Sky, num MV lindo cheio de matizes roxos realçando a beleza dele e a combinação com a mente confusa do protagonista de série. A partir desse ponto as coisas ficam mais e mais esparsas: Tem a mórbida Mango From The Wrist do Takayan, que canta alegremente sobre cortar os pulsos, ideia que eu respondi algumas vezes, a faixa de LOVE STAGE cantada pelo elenco, numa obra meio frenética que já me fazia mergulhar num oceano colorido repleto de possibilidades. 

Love Area do Jeff Satur me recordando o doce Kaitoon de Pak Chavitpong, um dos personagens mais fofos que eu já vi. STAY do GETSUNOVA e o instrumental arrebatador, me encantou quandou ouvi a primeira vez e algum tempo depois na trilha sonora de My Gear And Your Gown, e aí vem Only You do POLYCAT e Hidden do Fluke Natouch, que formavam uma unidade pela presença do pequeno ator em duas histórias genuínas e sinceras que sempre me fizeram lamentar a superficialidade dos nossos relacionamentos. Closer de Cupid's Last Wish na voz de Mix e Earth numa profusão claramente chapada, ou talvez eu pense isso porque a essa altura já estava sempre chapado. As duas faixas do Project 7, a doce e animadinha Would You Be My Love de Santa e Earth e o rock levinho e fofo de Boom e Peak em Crush on You, rostos pelos quais me apaixonei perdidamente, pela dancinha e pela expressão dos quatro que têm um lugarzinho especial no meu coração. 

Mais ao fim a No Problem do Dvwn, arrebatadora como a série que em que ela aparece, chega sem avisar e, quando menos se espera, te faz mergulhar em poderosa depressão. A seguinte, Warm Heart, se combinava com a anterior em mostrar duas faces do amor: a melancolia e a paixão impulsionadora do espírito. Terminando a jornada encontramos a versão inglesa de My Starlight, na interpretação de Joong e Dunk de Star in My Mind, terminando de modo quase imperceptível com STUTS e Awich, que começa com uma batida inconfundível e uma voz meio entediada cantando amor no meio de palavrões, na faixa que é parte da trilha sonora de More Than Words e outras faixas mais calmas que me faziam cair, finalmente no feitiço irrestível de Morfeu.

Só em lembrar das músicas deles eu já sinto até o gosto meio amargo das incontáveis doses de Rivotril, Diazepam, Zolpidem e Ciclobenzaprina que eu tomava todos os dias, querendo apenas apagar, dormir tão profundamente que não acordasse mais. Mas eu acordava, e continuava acordando, dias após dias, e tinha crises de pânico e uma interminável depressão, e até nos dias em que estava mais disposto caia no terror noturno. Era um inferno. Muito raramente eu conseguia me divertir, e os únicos momentos em que tinha alguma calma eram nas muitas séries que eu via, um manancial de romance que me faziam rir e sorrir, ainda que sutilmente, e que eram a únicas coisas que me mantinham vivo. Saber que amanhã tinha outro episódio era a única coisa que me fazia ir dormir. Acordava infeliz, mas sabia que se suportasse mais um dia eu teria mais um episódio pra ver, seja do doce Tofu em The Miracle of Teddy Bear ou, da força revolucionária de Not Me ou daquele romance irresistivelmente delicioso de Cherry Blossoms After Winter. Mas, mesmo hoje, se eu fechar os olhos enquanto essas músicas tocam, ainda sinto o gosto daqueles remédios que tomava antes de me deitar na esperança, brutal e genuína, de que nunca mais acordasse, a não ser que tivesse mais um episódio. 

terça-feira, 6 de junho de 2023

O único futuro possível

Lamento por não ter me feito entender. É um efeito colateral da nossa comunicação limitada por mensagens: a condensação das palavras fazem com que o intérprete precise ter consigo um repertório correspondente aquele que fala para conseguir compreender, do contrário temos confusão e, como vimos, desentendimento. 

Quando disse que eu desisti, e torno a falar disso pela terceira vez ainda essa semana, eu não dizia que desisti de você, ao menos não totalmente, porque desisti romanticamente, mas eu dizia que desisti de todos, que desisti desse aspecto da minha vida. Eu desisti de buscar alguém, de esperar por alguém, de acreditar que, em algum lugar, eu posso achar uma pessoa que caminhe comigo. 

Bom, ontem você me disse que não havia distinção no amor, e eu sei que você quis dizer que me ama, só não é capaz de expressar isso da forma romântica como eu queria, muito embora algumas vezes a gente fale de forma romântica, mas até isso eu percebi que mudou sutilmente entre nós (fizemos isso de modo consciente?) para que evitemos maiores confusões não é mesmo? Já fomos machucados demais. 

E é por isso que eu desisti. É um realinhamento das minhas prioridades, simples assim. Eu finalmente decidi que buscar num outro homem realização, completude, companhia, e loucura. Decidi abraçar a solidão, solitude intelectual que me coloca na companhia das grandes mentes, dos grandes mestres da humanidade, aos pés dos quais me sento humildemente e lhes peço que me alimentem com migalhas de sua sabedoria como aos cães que rodeiam as mesas dos ricos. Como Avicena me prosto ao obelisco de sabedoria de Sto. Tomás e aprendo o que posso com ele. 

Isso porque, mesmo você dizendo que não há diferença no amor, eu continuo sozinho, no sentido romântico, porque tenho você como amigo, mas por isso eu abraço a solidão romântica e, recolocando meu esforço nas coisas altas, sublimes e verdadeiras, eu me dedico a buscar um sentido maior, que hoje me falta por completo, senão que o vejo apenas como que por um brevíssimo vislumbre em meio a névoa das potências inferiores do intelecto. Não há diferença no amor mas eu continuo sozinho, quando fecho os olhos ao dormir ou quando desperto e vejo a cama vazia, eu continuo sozinho.

Eu não posso namorar, seria um pecado público, então não há razão para que continue buscando isso e, por outro lado, já escrevi uma centena de vezes sobre as dificuldades que enfrentei nessa vida quanto ao amor. É hora de assumir a maturidade e aceitar e abraçar a solidão e me dedicar realmente as coisas do homem adulto, abandonando os sonhos vazios do jovem. Não acredito mais no amor, nesse amor que dói e que só me deixa doente. A solidão é minha única alternativa, mesmo que você diga o contrário, eu continuo sozinho. 

Eu não sou o tipo de amigo que as pessoas mantém por perto. Poderia enumerar vários motivos para se afastarem de mim: alguém que estuda o tempo todo coisas que interessam a bem poucos, que escuta músicas que a maioria considera estranha. Eu desperto estranheza nas pessoas, eu tento ser simpático, mesmo quando meu humor muda drasticamente, tento manter o profissionalismo, tento conversar com carinho e compreensão mas, mesmo assim, quando chega o fim de semana, ninguém se lembra de mim, sem cinema, sem teatro, sem ir no parquinho ou tomar sorvete naquele lugar incrivelmente caro no shopping. Nos momentos de alegria eu quebro o clima, eu sou melancólico, bad vibes, baixa vibração, e ninguém quer pessoas assim. Claro que quem me procura se preocupa com algo que eu tenha a oferecer, e eu sei que muitas vezes é verdadeiro. Quando uma amiga pede um conselho ou desabafa, quando um amigo e aluno me pede pra explicar questões importantes ou quando o afilhado me pede ajuda, esses precisam de mim de verdade como eu preciso deles. E é com isso que eu deveria me preocupar, não em me tornar parte de um grupo, busca típica da 4° camada de personalidade, mas buscar conexões profundas. Mas admito, é uma resolução dolorida e solitária, muito solitária. 

Me sirvo das palavras do Santo Padre, o Papa Francisco, no Regina Caeli deste V Domingo da Páscoa que ilustraram muito bem, com a sua simplicidade pastoral, o que eu tentava dizer em termos existencialistas contaminados pelo meu pessimismo natural e que ele conseguiu traduzir com a completude que se espera do Vigário do Cristo, imensamente maior do que a minha limitada expressão:

"Então, quando sentimos o cansaço, a desorientação e até mesmo o fracasso, lembremo-nos para aonde vai a nossa vida. Não devemos perder de vista a meta, mesmo se hoje corremos o risco de não lembrar, de esquecer as perguntas finais, aquelas importantes: aonde vamos? Rumo aonde caminhamos? Por qual motivo vale a pena viver? Sem estas perguntas, sufocamos a vida somente no presente, pensamos que devemos desfrutá-la o quanto possível e acabamos por viver o dia, sem um propósito, sem uma meta. (...) A nossa pátria, ao invés, está no céu, não nos esqueçamos da grandeza e da beleza da meta! (...) “Eis a bússola para alcançar o Céu: amar Jesus, o caminho, tornando-se sinais do seu amor na terra. (...) Olhemos para o alto, para o Céu, lembremo-nos da meta, pensemos que somos chamados para a eternidade, para o encontro com Deus. E, do Céu, renovemos hoje a escolha de Jesus, a escolha de amá-lo e de caminhar atrás Dele." (Vatican News, 07/05/2023)

Eu sou uma pessoa bem medíocre, é verdade. De nada me adiantaram os cursos superiores, depois de tanto tempo na faculdade eu ainda ganho menos do que uma empregada doméstica. Poucas pessoas leem o que eu escrevo, não tenho nenhuma perspectiva de amor, amigos ou até mesmo de um futuro. Eu sigo estudando, apenas isso, mas não tenho um objetivo a perseguir, somente um vazio, decepcionante, medíocre, esperando o dia que, de súbito, eu tome o suicídio, único futuro possível, de uma vez por todas.

Pode parecer absurdo dizer isso logo depois de uma citação do Papa Francisco repleta de esperança, mas, mesmo tomando essas palavras como a verdade profunda do sentido da vida eu ainda penso no futuro ainda aqui e, não tendo um amor, não tendo amigos ou família, quando já sentir o declínio das minhas forças eu posso recorrer ao abraço afetuoso da morte em vista de me abrir de uma vez por todas para a eternidade. Que busque a Verdade enquanto viver e, quando já não conseguir mais andar por conta própria que ao menos possa partir em paz. Aliás, também sem amor, minha morte não fará tanta diferença assim e que, dessa perspectiva, toda luta além daquela pela vida intelectual é vã. 

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Imagem: Ocean Limited, 1962 - Alex Colville

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Companheira de Jornada

Tenho tentado manter firme em meu propósito, e a primeira ação que tomei foi  de começar a disciplinar a minha imaginação para assim conseguir manter o foco necessário para controlar a minha vontade. Eu sempre olhei muito para os rapazes na rua, principalmente depois que vim morar aqui em Joinville. Agora eu venho adotando uma postura mais displicente em relação a isso, evito cruzar o olhar, mantenho a cabeça baixa ou fixa num livro. 

Eles passam por mim, às vezes vem aquela faísca, e eu simplesmente fecho os olhos e me concentro em outra coisa. Todo esforço imaginativo que eu fazia ao ver um homem atraente é um desperdício de esforço que posso melhor aplicar as potências mais elevadas da minha inteligência, posso aplicar em dominar a minha vontade e purificar os sentidos. 

Quero me tornar um homem que caminha apático e sem se deixar distrair pela beleza do outro, assim evito devaneios que poderiam me fazer novamente entregar-me a uma relação onde minhas forças se desequilibram nos sentimentos diversos que me fazem perder completamente o rumo das coisas retas e sérias. 

Isso significa que ninguém mais deve ter para mim a importância que dei antes, de fazer toda minha vida girar ao redor de conseguir o amor e a admiração do outro. Eu não nasci para ser amado e por isso eu não devo colocar o outro num pedestal e me dedicar completamente a amá-lo. 

Devo ajudar, ser afetuoso e atencioso, mas não devo precisar do amor de ninguém. Devo apenas me preocupar em buscar a verdade. 

Depois de tomada a decisão inicial é preciso começar a agir conforme essa decisão, e o mesmo vale para o movimento interno de reorganizar a importância que eu dou para as pessoas. Preciso então me habituar a ser distante, embora presente, e não depender do amor e do carinho de ninguém. Já disse em outra ocasião que eu não sou o tipo de pessoa que os amigos se recordam para chamar em bons momentos, eu sou o amigo da necessidade. Isso, muito embora eu ainda diga com grande carga melancólica é, na realidade, uma grande oportunidade. 

O homem que não precisa perder-se me conversas longas e fúteis pode concentrar o esforço do seu espírito nas coisas elevadas, e não digo isso com arrogância, mas com a consciência de que há coisas muito melhores do que sofrer indefinidamente, do que me apaixonar repetidas vezes e continuar a me decepcionar em todas elas porque eu tenho essa imperfeição fundamental que faz com que ninguém olhe para mim. E aí então, seguindo uma vida intelectual, buscando a verdade, talvez ao fim, quando eu estiver sozinho e cansado demais para cuidar de mim mesmo, eu possa encontrar conforto nos braços da morte acolhendo-a como uma velha amiga, talvez a única que tenha assistido a toda minha jornada. 

X

Admito que tenho cedido muito a tentação lascívia. Ultimamente não me sinto muito bem, parece tudo sempre vazio, e tudo o que eu vejo contribui pra que eu me sinta desaparecer, não me sinto vivo. E vejo as pessoas nas suas vidas fúteis, mas elas sorriem, e cantam e dançam e namoram e se apaixonam, e eu não sinto nada, no máximo saudade e solidão, e não há nada muito vivo na saudade, pelo contrário. Então, pelo menos naquele breve instante de luxúria onde a avulsão da forma nívea me causa tremores e gemidos abafados, eu me sinto vivo como uma faísca, que logo se apaga novamente, como a vida que cessa, simples, fugaz, imperceptível.

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Imagem: Lovers  - Jaroslaw Datta

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Breves conselhos para a vida intelectual


Quando se fala em hábito, especialmente hábito intelectual, há que se entender a estreita ligação entre corpo e alma, e note que digo alma pois a mente aqui eu entendo apenas como uma ligação entre uma coisa e outra, sendo que os movimentos de ambos se impactam, daí por exemplo, a liturgia da Igreja usar dos gestos visíveis para ajudar nos movimentos invisíveis da alma. 

O ato do fiel ajoelhar-se em penitência e adoração faz com que a alma entenda o movimento do corpo como um movimento que deve acontecer nela própria. Isso faz com que, ao prostrar o corpo, prostra-se o espírito penitente. O mesmo acontece com o jejum e a abstinência, práticas que a Igreja indica e que muitos santos levaram ao extremo de suas vidas e, justamente, por isso, se tornaram grandes homens. Não se trata, no entanto, de um movimento exclusivamente corporal, senão que sim o simples gestual sem a devida espiritualidade é vazio mas também a espiritualidade sem o elemento externo, corporal, visível de algum modo, não é possível.

Certos grupos modernos defendem justamente isso, que a espiritualidade cristã deveria ser apenas um movimento interior, e que o cristão nada tem que expressar exteriormente, mas essa é uma concepção errada pois, o homem sendo sensível e espiritual necessita de um e de outro. Deus poderia ter escolhido salvar a humanidade apenas de modo espiritual, mas o fez visivelmente se fazendo homem e assim pôde operar também no plano da eternidade. Aquele grito ao entregar seu espírito na Cruz teve um impacto em toda a eternidade. 

Assim também os movimentos do corpo têm impacto na eternidade da alma na medida em que a vida intelectual acontece ao mesmo tempo em ambos os planos. Daí a importância da vida regrada de estudos, sobre a qual eu falarei de modo ágil, sendo que outros, especialmente o padre A. D. Sertillanges já o fez de modo mais detido na sua obra. 

Devemos ter em conta que a vida intelectual não é como um trabalho que se inicia ao começo do expediente e termina com o fechamento do estabelecimento ao fim do dia: é uma inclinação permanente do espírito. O homem de estudos estuda todo o tempo, até seu divertimento é, por assim dizer, intelectual. Dai a importância do foco no agir, a importância do momento em que estudamos, rezamos e descansamos. 

O estudar deve ser um movimento da alma, profundo e forte como o mar mas, como disse, deve partir do corpo, então a inclinação começa justamente da escolha dos melhores momentos para os estudos e na busca da constância. Dormir o necessário, ter os momentos certos de descanso e de esforço, isso é de grande importância. Não há porque forçar ler uma coisa num momento que o corpo pede por descanso, nada vai ser assimilado, assim como ninguém deveria rezar um terço antes de dormir, o sono é inevitável e devemos ouvir a necessidade natural, ao mesmo tempo que usamos a disciplina em gestos simples que podem ajudar. Deve-se dormir o tempo que o corpo precisa para descansar, de nada adianta forçar o que não pode ser forçado. 

Aqueles momentos breves, livres entre uma aula e outra por exemplo, podem ser ótimos para leitura, a tranquilidade pode ser aproveitada com o hábito criado de ter sempre um livro por perto. À espera de um ônibus ou de uma pessoa, uma vida de santo ou devocionário tem grande proveito na preparação da Santa Missa e tanto a vida intelectual quanto espiritual só têm a ganhar com esse bom uso do tempo. 

Isso pode parecer uma limitação do tempo de estudo mas, se pensar um pouco, trata-se do contrário, dá-se maior importância para a qualidade desse tempo. Daí a importância da abertura de espírito para o que se quer aprender e de um movimento constante de repetir a si mesmo, mas sem desespero, da importância daquilo que se quer aprender, o que requer um exame do que chama real atenção. É dessa coisa que desperta o amor e o carinho que brota a vontade do estudo, é a esses assuntos que se deve dedicar esforço e é a partir deles que se abrem tantos outros. Desse modo a memória para a colaborar muito mais com a prática da vida intelectual.

Não se deve ter desespero em querer saber tudo sempre e logo, isso não será possível e tanto mais cedo o homem aceitar isso tanto mais se sairá bem sucedido no que estuda. Quando se dedica a estudar e a reter aquilo que na alma se grava mais profundamente todo o universo se torna um grande livro, a abertura de espírito faz  homem entender que, quando necessário, ao olhar ao redor, ele vai conseguir encontrar aquelas informações de que necessita. O mesmo vale para os livros e anotações que devem servir sempre de ajuda ao estudioso. Esqueceu? Torne a ler, peça a Deus que lhe ensine, durma um pouco, saiba onde está aquela informação e ela se impregnará na sua alma, de modo sutil mas pleno. Não é como a simples decoreba de conteúdos para uma prova que são esquecidos logo após o término da mesma, é uma marca na alma que não se esvai, que pode até ser coberta por uma fina camada de poeira mas que logo pode voltar a brilhar com a retomada do hábito intelectual.

São essas pequenas mudanças, que fazem grande diferença, que tornam o homem de estudos feliz na sua vocação, são essas pequenas mudanças no corpo que causam grandes movimentos na alma. Sem desespero, com abertura de espírito e com a vontade voltada ao aprender a Verdade, assim o homem consegue pouco a pouco progredir. Voltarei a esse assunto mais vezes mas, por enquanto, isso é o suficiente.

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Imagem: Santo Agostinho (1645) de Philippe de Champaigne.