terça-feira, 20 de junho de 2023

Do discurso ordenado

Meu caro amigo e afilhado me procurou com a seguinte reclamação: de que, comparado com outras pessoas, ele tem dificuldade de organizar as ideias na hora de formular perguntas ou de explicar alguma coisa. Percebeu a dificuldade na clareza das ideias e como a sua fala reflete apenas bagunça. 

Bom em se tratando de organizar o pensamento, começando a explicação de modo simples, isso se consegue de duas maneiras: aprendendo a captar a forma do discurso (ao assistir um documentário, por exemplo, ou uma boa aula cuja estrutura permita organizar mentalmente assuntos naturalmente complexos) e o mesmo acontece com o uso das artes, e das faculdades adquiridas por meio das artes liberais, que permitem adaptar as formas complexas dos problemas em estruturas mais organizadas no panorama mental. 

Quando se lê a Ilíada e a Odisseia, e você se dá conta que as ações temporais têm consequências eternas, como o grande dilema da escolhas dos heróis: isso já é uma ordenação do pensamento. Condensa-se então nesse símbolo toda a complexa rede de possibilidades, de duvidas, anseios e toda sorte de dramas humanos que se encontram misturados no coração do homem e então consegue-se mais clareza ao refletirmos sobre esses mesmos dramas que habitam nosso coração. Essa experiência ajuda a ordenar, cada vez mais o pensamento e o discurso. 

Quando, citando outro exemplo, preparo uma aula, eu busco encontrar formas de relacionar o assunto com a sua realidade de modo a fazer com você consiga acompanhar a explicação mas, em outro nível, de modo que você capte também a forma com que estou dizendo. 

Temos então esses dois elementos no discurso: o conteúdo e a forma. Assim como na língua temos uma parte mais ou menos fixa, que é composta pelas regras de morfologia e sintaxe, e uma parte mais móvel e cambiante, todo o universo dos significados, as sutilezas e nuances dos diversos escritores...

Dominar apenas a forma do discurso é algo que o nosso meio universitário faz muito bem, e o aplica até a exaustão: basta ouvir um discurso político ou de algum militante de qualquer causa e podemos perceber que ele apenas decorou uma série de cacoetes mentais e giros de linguagem sem dominar nada do assunto de que trata, pois se o tivesse feito perceberia que, na esmagadora maioria das vezes, os problemas são abordados de forma a justamente nunca terem solução. Isso porque o discurso puramente formal não diz respeito a nada na realidade. Mas isso não significa que a forma não é importante, muito pelo contrário.

Se observarmos as grandes obras de arte poderemos perceber que a forma é tudo! Seja na literatura, na música, na arquitetura, a forma é aquilo que permite com que o conteúdo seja apreendido da melhor forma possível. 

Por isso a minha constante insistência em adquirir o senso da forma por meio da arte, do contato com a alta cultura. A leitura das grandes obras, o contato com as maiores criações da humanidade, essas coisas nos abrem as muitas possibilidades do discurso e, enriquecendo o nosso imaginário, vamos nos tornando cada vez mais capazes de escolher a melhor forma de abordar cada assunto. 

Funciona mais ou menos com um escritor iniciante que tenta imitar as formas dos autores que lê. Se escreve poesia ele tenta imitar a sua métrica, trabalha redondilhas e outras formas de modo a imitar da melhor forma. Ao passar para a prosa vai absorvendo dos autores um pouco de cada, seja a força expressiva dos românticos ou a frialdade dos naturalistas... Assim ele amplia seu repertório de modo que, quando for falar sozinho, ele usa um pouco do que aprendeu com cada um e assim cria seu próprio estilo. 

E nisso as artes são fundamentais. Quando observamos que todo o drama da alma humana se encontra nas estruturas do inferno, do purgatório e do céu de Dante, que caminha deste aos abismos mais profundos, sobe a montanha penitente até chegar aos céus, ou quando vemos a forma sinuosa do Jardim das Aflições que se assemelha com a forma das sinfonias do Sibelius, isso nos mostra como vamos captando as formas e dizendo melhor o que sentimos e o que aprendemos. 

Muitos professores padecem da dificuldade da forma, claro, aprender um assunto já é complicado, aprender a ensinar é outro esforço e nem todos têm as duas vocações, mas é certo que podemos sempre melhorar. 

Daí vemos como captamos uma lista quase infindável de virtudes na obra de Tolkien, e como ele passa longos capítulos descrevendo a beleza de bosques e florestas mas os inimigos de verdade são sempre citados não com a mesma presença forte dos bosques mas como uma força espiritual espalhadas nos ares, vemos um reflexo da mentalidade cristã do autor que enxerga na criação a beleza do Criador e que vê o pecado como essa corrupção que ronda a todos e que, no entanto, não cria, mas justamente apenas corrompe. Essa é uma forma complexa mas profundamente útil de explicar, por exemplo, a dialética negativa de Hegel e da Escola de Frankfurt que buscam destruir e corromper por meio da crítica ostensiva. Num outro nível o autor de O Senhor dos Anéis trata ainda de novo da questão dos dramas eternos, uma vez que as virtudes dos personagens, bem como as suas fraquezas, têm consequências, mas que fazem parte dos planos ordenadores de Erú que, mesmo na revolta dos que ele criou, consegue fazer retomar a ordem. 

Por isso a importância de tomar a todos os grandes como mestres, como a realidade é de complexidade imensa pro homem, buscamos nas diversas linguagens as melhores formas de dizer. Pegamos um pouco de Homero, da profunda consciência do coração de Shakespeare, da sabedoria de Virgílio, da delicadeza quase sobrenatural de Mozart, da força de Rembrandt, da paciência de Sto. Tomás... E assim vamos aprendendo a falar. 

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