sábado, 17 de junho de 2023

Nem mesmo um engano

Percebi isso, talvez definitivamente, quando voltava para casa, já um pouco mais tarde da noite, me escondendo do vento frio atrás de um casaco grosso de lã, e passando em frente a casa dele, acenando brevemente para sua mãe. Mesmo só passando lá, eu senti meu coração bater mais e mais rápido, como se fosse sair pela boca, e de repente eu fiquei eufórico. Me dei conta então do quanto ele mexe comigo, do quanto ele me faz perder o equilíbrio, e isso tudo sem nem saber que eu existo ou, se o sabe, sendo indiferente a mim. Acontece que mesmo que eu só tenha passado na frente da casa dele eu senti como se fosse atraído por um centro gravitacional fortíssimo. Ele já estaria de pijamas aquela hora? Estava iniciando uma partida de algum jogo? Ou estava vendo notícias sobre seu time do coração? De todo modo foi como se ele gritasse meu nome, como se corresse atrás de mim e me puxasse pela mão, num solavanco se lançando aos meus braços depois de me fazer girar nos calcanhares, assustado e paralisado pela sua voz. Foi como se ele tivesse me enfeitiçado, pelo puro prazer sádico de me ver perder o fôlego ao passar pela sua casa, pelo prazer de saber que eu perco o fôlego também antes de dormir somente com a visão do seu sorriso discreto, na minha cama fria, antes de adormecer cansado e inquieto. 

X

E inquieto eu continuo, agora sem nem saber o que se passa comigo com o que parece ser um episódio misto anormalmente longo. Minha mente está desperta, desde o momento que acordo até a hora de dormir os pensamentos vêm e vão numa profusão assustadora. Em contrapartida o corpo está extremamente cansado, tenho acordado todos os dias como se tivesse sido atropelado por uma manada violenta e os próximos dias serão agitados, tanto no trabalho quanto fora, tenho reuniões, grupo de estudos e alguns eventos pra ir, porque ninguém é de ferro e nem só de trabalho consegue viver, ainda que na maior parte do tempo pareça o contrário. 

X

Constantemente lidando com as perspectivas de futuro dos outros, seja dos meus amigos que agora começam a se casar, ou até mesmo só observando as pessoas no ônibus, elas se dividem em dois grupos: ou aparentam apatia e conformismo com o desconforto cotidiano ou demonstram crescente ansiedade, parece que algo no futuro as impele a acordar, tomar o ônibus e enfrentar o dia cansativo. Mas eu, eu não, eu faço isso todos os dias de modo meio automático, só acordo e é isso aí, sem maiores razões, não tem nenhuma força, nada que me leve a continuar. Eu não vejo futuro, não penso no que fazer, não penso muito em nada, apenas me deixo levar pelas ondas, não tenho muito o que esperar, pra ser sincero, só aguardo pelo dia de finalmente colocar um fim, eu mesmo, a essa existência patética. Sou do grupo dos apáticos biônicos.

X

Preciso, urgentemente, dormir. É sério. Não aguento mais a mente em parafuso. Um milhão de pensamentos e sentimentos num décimo de segundo. Vou de uma risada exagerada até uma leve irritação, passando por um obscuro desejo de vingança e até uma certo desejo luxurioso, tudo isso num piscar de olhos, e percebe-se isso pela minha voz afetada. Eu odeio isso, odeio mesmo. Odeio ficar carente, irritado, mandão, querer ficar sozinho e querer um abraço de um estranho, tudo isso enquanto toca uma única música. Não posso ir pra reunião, ou me arrisco a cometer alguma gafe ou, pior, me comprometer ainda mais. Não posso chamar alguém pra conversar porque sei que vou dizer alguma bobagem. Então eu preciso me fechar no meu quarto escuro e apagar, apagar e esperar que amanhã eu acorde melhor.

X

Cá estou agora, esperando que os remédios finalmente façam efeito, depois de um longo dia que parece ter espremido mais três e onde eu fiz todo o caminho da Divina Comédia, indo pelo céu e o inferno, sem esquecer o purgatório, e que me fez ter cada vez mais a certeza que eu não sei nada, confirmou-se na simplicidade de uma viagem abafada de ônibus a minha mais completa falta de perspectiva. Mas então, por qual motivo eu continuo acordando cedo, me esforçando, lutando com toda essa oscilação de humor? É apenas pra chegar em casa e ver algumas cenas românticas que só vão me deprimir mais e mais por saber que nada disso é real e que no mundo aqui fora ninguém nunca vai me amar? Ou será que há em mim ainda uma centelha de esperança, uma pequena faísca que mesmo em meio a tempestade ainda brilha, tímida entre as pedras, prestes a tornar um grande incêndio? Há essa esperança em mim? Eu não a vejo, de modo algum. Só vejo uma profunda e contínua desilusão. Mesmo que a paisagem seja bela, que os homens sejam belos, nada vale a pena, só pensar na morte me oferece consolo. Tudo o mais me parece... chato. E eu sei que meu telefone não vai tocar nenhuma vez sequer essa noite. Nem mesmo um engano.

Nenhum comentário:

Postar um comentário