terça-feira, 13 de junho de 2023

Aforismos

Parecia uma cena daquela série*, em que a mudança de humor acontece tão rápido que é perceptível num instante de dissociação. Eu achava que isso não podia acontecer, mas foi assim. Eu troquei de roupa, peguei uma caneca de chá e, com a câmera em mãos, ia descendo as escadas quando, no meio do lance, parei, a minha mente se anuviou e tudo ficou meio branco. Pisquei rapidamente, depois lentamente, olhei para trás, o prédio de grandes vidros, e depois olhei para baixo, fitei alguns segundos a madeira antiga embaixo de meus pés, amarelada desde a década de 40, e só o que consegui fazer foi voltar, subir os degraus novamente e, na minha sala, me jogar pesadamente na cadeira, o chá agora parecendo bem mais sem graça, as fotos que eu queria tirar me soaram como uma tortura imensa e a água sob a mesa, veneno puro. Tenho certeza que hoje não consigo fazer mais nada. Meus braços ficaram fracos, minha vazia, eu só quero poder ficar quieto no escuro e em silêncio.

E até meus colegas que já perceberam o quanto eu sou estranho e diferente, em como mudo de humor rapidamente, comentam isso, e mais uma vez eu chego ao outro extremo. Se na semana passada estava afoito e eufórico de repente me veio um peso enorme que me deixou prostrado. Aquela disposição se foi, assim, como fumaça da caneca de chá desapareceu no ar... E eu fiquei assim. 

Certa vez Nietzche disse que "a ideia do suicídio é uma grande consolação: ajuda a suportar muitas noites ruins" e penso que essa súbita melancolia possa ser uma boa oportunidade para falar mais sobre essa resolução que tive alguns dias atrás. 

Há alguns dias eu tomei como resolução aceitar a solidão, torna-la solitude e, desse modo, guiar as minhas forças para coisas realmente aceitáveis. Isso significa que meu pensamento deve estar voltado para realidades superiores, a busca da Verdade então no cimo de todo e qualquer esforço. Bom, claro que isso vai levar um tempo indefinido, visto que o homem se aproxima da Verdade como uma assíntota, não é uma busca com um fim que possa ser encontrado nessa vida, ao passo que a própria vida é, em si mesma, finita. Temos então a aparente contradição da finitude da vida e da infinita Verdade que podemos encontrar. 

A finitude da vida vem acompanhada do declínio das forças e, somando então esses fatos: a aceitação da vida solitária como regra, a finitude e limitação do corpo e a abertura para a Verdade eu encontro consolação na ideia do termo da existência quando as forças já não forem o bastante para me sustentar. Então quando atingir a maturidade completa, quando a maior parte da geração anterior tiver ido, quando a minha partida não for mais causa de dor para minha mãe, quando eu mesmo lançar o primeiro punhado de terra sob o seu caixão, aí sim estarei livre, verdadeiramente livre do sentimento de amar e ser incompleto, insuficiente. Até lá me abraçarei com a solidão e ingratidão enquanto busco a verdade. 

X

Achei bonita a visão dele sorrindo logo cedo, pela manhã. Estava com a namorada, já tinha visto-a com ela uma ou duas vezes e também a foto que fica no papel de parede do celular. A aliança prateada brilhante no dedo... E ele se curvou em direção a ela, que estava no banco de frente para ele no ônibus, mostrava algum caminho num mapa online, e sorria gentilmente e docemente, e eu notei a barba por fazer, mais aparente no bigode. Ele usava um casaco bege, o que o deixou com uma imagem belamente fresca, combinando com a manhã um pouco mais fria da meia estação. Fiquei encantado com o sorriso dele, e talvez alguém tenha notado isso mas eu nem ligo, pelo menos eu pude ver essa bela imagem ainda nas primeiras horas da manhã. 

X

Lutei muito pra me desvencilhar das pessoas e finalmente me sentar e fechar os olhos pra trazer de novo aquela visão que tive quando prestei atenção aquela letra pela primeira vez. Eu precisava ter aquela visão de novo. Eu queria ter na vida simplesmente essa visão. Você, no quintal de uma casinha branca, de camisa de flanela e o sol acariciando sua pele rosada, as crianças correndo ao redor de uma grande árvore, uma mangueira acho, e uma bela moça, a sua esposa, a estender um lençol de alvura inigualável, enquanto olha pra você orgulhosa. Você apoia levanta o olhar e passa a mão na testa limpando o suor, e olha pra devolvendo o carinho. Sei que você queria ter na vida, simplesmente, um lugar de mato verde pra plantar e pra colher... É, mesmo que eu não faça parte dessa visão eu admito: é uma bela visão!

 ~

*Modern Love, 3° episódio da Temporada 1.

Um comentário:

  1. Nietzsche! Sinto o cheiro da coincidência!. É preciso dizer que fiquei assustada quando vi “Cézanne” na conta do JM, visto que tinha postado uma pintura dele dias antes (adendo para minha frequência infrequente de postagens). De qualquer forma, aproveite essas coincidências cósmicas e me passe suas energias católicas neste dia querido de Santo Antônio. Como já disse, ando com um escapulário desse gajo, mas aparentemente ele não arranja marido para as não batizadas /catequizadas/ alguma coisa que não sei. Aliás, amei esse sonho idílico patriarcal, remete-me a um aforismo de Nietzsche que li hoje cedo ( muitas coincidências, eu disse) “ Às vezes bastam óculos mais fortes para curar um apaixonado; e quem tivesse força de imaginação para conceber um rosto , uma silhueta vinte anos mais velha, talvez passasse pela vida imperturbado - Os míopes se apaixonam”. Meras imagens utópicas; filhos dão dor de cabeça e rugas, trabalho doméstico lhe deixa rabugento e brigão, e o campo preenche o amor com o vazio e solidão. Fico até ofendida com esse seu conceito de “bela visão”

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