sexta-feira, 2 de junho de 2023

Breves conselhos para a vida intelectual


Quando se fala em hábito, especialmente hábito intelectual, há que se entender a estreita ligação entre corpo e alma, e note que digo alma pois a mente aqui eu entendo apenas como uma ligação entre uma coisa e outra, sendo que os movimentos de ambos se impactam, daí por exemplo, a liturgia da Igreja usar dos gestos visíveis para ajudar nos movimentos invisíveis da alma. 

O ato do fiel ajoelhar-se em penitência e adoração faz com que a alma entenda o movimento do corpo como um movimento que deve acontecer nela própria. Isso faz com que, ao prostrar o corpo, prostra-se o espírito penitente. O mesmo acontece com o jejum e a abstinência, práticas que a Igreja indica e que muitos santos levaram ao extremo de suas vidas e, justamente, por isso, se tornaram grandes homens. Não se trata, no entanto, de um movimento exclusivamente corporal, senão que sim o simples gestual sem a devida espiritualidade é vazio mas também a espiritualidade sem o elemento externo, corporal, visível de algum modo, não é possível.

Certos grupos modernos defendem justamente isso, que a espiritualidade cristã deveria ser apenas um movimento interior, e que o cristão nada tem que expressar exteriormente, mas essa é uma concepção errada pois, o homem sendo sensível e espiritual necessita de um e de outro. Deus poderia ter escolhido salvar a humanidade apenas de modo espiritual, mas o fez visivelmente se fazendo homem e assim pôde operar também no plano da eternidade. Aquele grito ao entregar seu espírito na Cruz teve um impacto em toda a eternidade. 

Assim também os movimentos do corpo têm impacto na eternidade da alma na medida em que a vida intelectual acontece ao mesmo tempo em ambos os planos. Daí a importância da vida regrada de estudos, sobre a qual eu falarei de modo ágil, sendo que outros, especialmente o padre A. D. Sertillanges já o fez de modo mais detido na sua obra. 

Devemos ter em conta que a vida intelectual não é como um trabalho que se inicia ao começo do expediente e termina com o fechamento do estabelecimento ao fim do dia: é uma inclinação permanente do espírito. O homem de estudos estuda todo o tempo, até seu divertimento é, por assim dizer, intelectual. Dai a importância do foco no agir, a importância do momento em que estudamos, rezamos e descansamos. 

O estudar deve ser um movimento da alma, profundo e forte como o mar mas, como disse, deve partir do corpo, então a inclinação começa justamente da escolha dos melhores momentos para os estudos e na busca da constância. Dormir o necessário, ter os momentos certos de descanso e de esforço, isso é de grande importância. Não há porque forçar ler uma coisa num momento que o corpo pede por descanso, nada vai ser assimilado, assim como ninguém deveria rezar um terço antes de dormir, o sono é inevitável e devemos ouvir a necessidade natural, ao mesmo tempo que usamos a disciplina em gestos simples que podem ajudar. Deve-se dormir o tempo que o corpo precisa para descansar, de nada adianta forçar o que não pode ser forçado. 

Aqueles momentos breves, livres entre uma aula e outra por exemplo, podem ser ótimos para leitura, a tranquilidade pode ser aproveitada com o hábito criado de ter sempre um livro por perto. À espera de um ônibus ou de uma pessoa, uma vida de santo ou devocionário tem grande proveito na preparação da Santa Missa e tanto a vida intelectual quanto espiritual só têm a ganhar com esse bom uso do tempo. 

Isso pode parecer uma limitação do tempo de estudo mas, se pensar um pouco, trata-se do contrário, dá-se maior importância para a qualidade desse tempo. Daí a importância da abertura de espírito para o que se quer aprender e de um movimento constante de repetir a si mesmo, mas sem desespero, da importância daquilo que se quer aprender, o que requer um exame do que chama real atenção. É dessa coisa que desperta o amor e o carinho que brota a vontade do estudo, é a esses assuntos que se deve dedicar esforço e é a partir deles que se abrem tantos outros. Desse modo a memória para a colaborar muito mais com a prática da vida intelectual.

Não se deve ter desespero em querer saber tudo sempre e logo, isso não será possível e tanto mais cedo o homem aceitar isso tanto mais se sairá bem sucedido no que estuda. Quando se dedica a estudar e a reter aquilo que na alma se grava mais profundamente todo o universo se torna um grande livro, a abertura de espírito faz  homem entender que, quando necessário, ao olhar ao redor, ele vai conseguir encontrar aquelas informações de que necessita. O mesmo vale para os livros e anotações que devem servir sempre de ajuda ao estudioso. Esqueceu? Torne a ler, peça a Deus que lhe ensine, durma um pouco, saiba onde está aquela informação e ela se impregnará na sua alma, de modo sutil mas pleno. Não é como a simples decoreba de conteúdos para uma prova que são esquecidos logo após o término da mesma, é uma marca na alma que não se esvai, que pode até ser coberta por uma fina camada de poeira mas que logo pode voltar a brilhar com a retomada do hábito intelectual.

São essas pequenas mudanças, que fazem grande diferença, que tornam o homem de estudos feliz na sua vocação, são essas pequenas mudanças no corpo que causam grandes movimentos na alma. Sem desespero, com abertura de espírito e com a vontade voltada ao aprender a Verdade, assim o homem consegue pouco a pouco progredir. Voltarei a esse assunto mais vezes mas, por enquanto, isso é o suficiente.

~

Imagem: Santo Agostinho (1645) de Philippe de Champaigne.

2 comentários:

  1. Um comentário sobre:
    Considero-me uma pessoa atípica (entende-se como do contra), não gosto de descrições que são aceitáveis a maioria, prefiro apelar ao existencialismo, que é algo intrínseco a minha personalidade, e sair da norma proferida. Sempre tento achar um próprio modo, uma única maneira; não gosto de técnicas e jeitos certos, acho que tudo isto tira a essência própria, trocando-a por algo generalizado. Desta forma, como uma pessoa aprende-se a pintar e escrever sem frequentar oficinas ridículas de escrita e aulas de pintura? Fácil, aprende-se observando. Conselhos sobre a vida intelectual? viva ela . Como viver a vida intelectual em Joinville, a cidade mais industrial que uma indústria? Estou aprendendo, mas acredito que frequentar bons lugares seja o começo de algo. Na minha ótica, a observação desperta o desejo mais ‘’tesudo’’ da intelectualidade: o pensamento. A partir do momento que a tenho, consigo me sentar na Giostri ( o segundo lugar mais pseudo intelectual, o primeiro é o Salvador), e imaginar duas coisas observando o atendente; 1) ele é bonitão, e 2) A vida em sua forma mais deprimente: alguém cansado e preocupado preparando meu café; penso se suas energias tristonhas passariam pela cafeína, ou se sua alma triste afetaria meu dia ( e afetou, fiquei presa em uma melancolia pelo resto do dia)
    De qualquer forma, a intelectualidade se expressa além dos livros e par de óculos; a intelectualidade é saber pensar, entender o outro, e ler-se sem a ajuda de um livro ou vídeo aula do Karnal. A intelectualidade é o conhecimento empírico e genuíno que se tem da vida; que Kant, 3bs e Camões fiquem em suas próprias casas, observando o mundo obtenho meu próprio conhecimento ( e o mais importante ?!). Afinal, se os livros sumissem, a intelectualidade sumiria junto? Ser intelectual vai além de usar ‘’jaz’’, ler Dostoiévski no MAJ ou fumar marlboro vermelho (ou os três ao mesmo tempo). Um conselho sobre a intelectualidade: Saia só, sente-se em algum lugar que não conheça e observe, fale e pense com as paredes. Afinal, os pais da intelectualidade não nasceram dispostos a milhares de livros e marlboros vermelhos, eles eram arcaicos, usavam suas próprias cabeças. PS: você é mais poeta retraído Rimbaud, ar retraído em demasia, fiquei até triste de ver.

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    1. Alguns comentários: tudo o que você disse pode se prestar como continuidade ao que eu mesmo disse no texto, aliás faço muitas dessas coisas. Outro dia estava sentado num trapiche observando um jovem, tão lindo mas não tão elegante quanto o atendente da Giostri, pescar caranguejos no mangue, e aprendi muito, tanto sobre a própria técnica que observava quanto a contemplação da beleza bronzeada daquele garoto. Eu tenho um pouco de tudo, me retraio na poesia enquanto leio Dostoiévski ou Bukowski, admiro a ambos, ou na poesia de ver um belo homem ou ainda na crueldade de um senhor que, na época de viver seu descanso ainda trabalha nesse mundo injusto em péssimas condições ou numa senhora que, na Santa Missa, olha devotamente para o altar... Os meus conselhos foram uma compilação de mensagens que enviei para um aluno, e amado, mas que se referem a uma técnica específica e não um fechamento da prática intelectual. Aliás, o meu professor foi o menos ortodoxo de todos que o país já viu e ele aprendeu justamente, dentre outros modos que eu ensinei aqui, na vida mesmo, na abertura ao conhecimento. De todo modo eu realmente gosto do ar mais retraído, minha personalidade melancólica é mais assim...

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