quarta-feira, 31 de maio de 2023

Desejo de conhecer

Aristóteles inicia o seu livro mais célebre, a Metafísica, dizendo que "Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer, sinal disso é a estima dos sentidos". E isso significa que, é normal o homem conhecer e se interessar pela realidade, e boa parte desse conhecimento lhe vem pelos sentidos, por isso desde pequenos os bebês já dedicam tanto tempo e atenção a descobrir o próprio corpo e depois o mundo que o cerca. Essa inclinação natural perdura por toda a vida mas, com algum custo, pode acabar se pervertendo. 

É certo também que o homem tem um conhecimento limitado e se encontra naquela experiência que Anaximandro chamou de Apeiron, o ilimitado, o desconhecido que circunda o conhecido. Todos estamos como que enxergando uma esfera de luz que boia num oceano de escuridão, sendo que a nossa inteligência é então capaz de aumentar mais e mais esse circulo do conhecido mas, ao mesmo tempo, só pode se aproximar do conhecimento como numa assíntota, o homem pode sempre conhecer mais mas nunca pode conhecer tudo pois o conhecimento de tudo significaria que o homem se tornou o próprio Deus. 

Esse homem continua então conhecendo, e conhecendo os limites do que sabe e, não raro, ao contemplar o horizonte do desconhecido, os limites da sua consciência, reagem de modos diversos: alguns se desesperam e então se apegam em simulacros de verdade, coisas que simulem o conhecimento de modo que, protegido do dever de buscar a verdade, ele pode afirmar que já a achou. Outros podem sentir que o horizonte é como um chamado a conhecer, como um sol poente que dá lugar a escuridão mas deixa no coração do homem a esperança de voltar a brilhar no dia seguinte, assim algumas almas passam desse primeiro nível, o da estupefação maravilhosa do conhecimento pelos sentidos e os coloca em ordem para continuar a conhecer. 

Claro que é um caminho árduo, e o esforço que uma pessoa pode fazer para responder uma única pergunta pode transcender o tempo de sua vida. Aqueles que possuem verdadeira sede de conhecer e humildade de reconhecer os limites não se desesperam e nem se entristecem, senão que se alegram ou pelos menos se resignam com as imensas possibilidades que se abrem diante deles. Essas almas corajosas conseguem perceber a dificuldade da coisa e ainda assim continuar a conhecer. 

Uma conclusão disso é que o conhecer se torna então uma opção moral do homem. Nas palavras de Olavo de Carvalho "Quando você transcende a esfera daquele ambiente limitado, deprimente e culturalmente desértico, no qual praticamente todos os brasileiros são criados hoje, e descobre o universo da alta cultura, você quer engolir tudo aquilo de uma vez e, então, surge uma avidez de conhecimento. Mas acontece o seguinte: a aquisição de conhecimento impõe um peso sobre a alma: você ficou sabendo o que antes não sabia. Para cada coisa que você sabe, aparecem mil dúvidas. Então você entre no mecanismo das perguntas sem respostas. Você, evidentemente, se neurotiza. Isso quer dizer que a aquisição de conhecimento deve ser acompanhada de um fortalecimento da alma, para enfrentar isso." (COF 111)

É essa decisão de continuar a conhecer, de fazer a opção de buscar e de aceitar as consequências disso que fazem o homem intelectual ser quem ele é. Essa experiência pode ser, como já disse, complicada e demorada, ao fim de uma vida um homem pode ter muitas dúvidas, mas ele se aproxima da Verdade por amor a ela e não pelo desejo de possuí-la, no sentido de contê-la em si, mas esse amor pela Verdade o faz ser absorvido por ela. Essa posição, madura e realista, é condizente com a mesma realidade que, a princípio, despertou o desejo de conhecer. 

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Platão e Aristóteles na Academia de Atenas, Michelangelo.

terça-feira, 30 de maio de 2023

A Dor da Beleza


Não vou mais ficar horas vendo os belos homens, não quero ver seus rostos perfeitos, a sua pele lisa e brilhante, seus cabelos desenhados, suas roupas elegantes e os seus sorrisos cativantes. Não quero mais me iludir, não por hoje, com essa beleza que me machuca, que me faz sentir inferior, que me faz querer fechar os olhos e me esconder num quarto escuro, adormecendo profundamente sem pensar no meu reflexo. Prefiro viver num mundo sem meus reflexos, apenas isso. Então hoje diga a Maricotinha que eu mandei dizer que eu não tô, porque têm dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu, e eu morri, morri porque todos aqueles estão vivos, belos, encantadores, e eu só posso admirá-los, sozinho e em silêncio. A beleza também machuca. 

O céu da cidade chora mais uma vez, e vejo isso pela luz amarela da rua que se mescla com a escuridão da noite. Essa combinação carrega uma certa ansiedade das pessoas que já foram dormir e que aguardam cansadas pela próxima semana que se inicia. 

Eu estou pensando nele, que está há tantos quilômetros de distância, triste porque não consegui me alegrar quando ele me contou que está fazendo progressos com a moça que ele gosta. Eu deveria ficar feliz por ele estar feliz, e isso me faz perceber que meu amor na verdade é uma coisa pervertida, um desejo de posse, uma expectativa  idealizada pela minha carência e meu círculo social reduzido. Se eu o amasse de verdade, no sentido mais profundo do amor eu o cercaria desse amor e ficaria profundamente feliz com a alegria dele, ainda que fosse com ela. 

Além da crescente indiferença eu percebo a cada dia o quanto eu sou uma pessoa maliciosa, confundindo até mesmo o desejo de posse com algo puro e bom como o amor.

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De novo eu me surpreendo com as minha próprias flutuações de humor, e percebo o quão desequilibrado eu sou. O Transtorno Bipolar me faz ir de um extremo a outro em poucos dias, ainda na semana passada eu me arrastava pra lá e pra cá. Meu corpo estava cansado ao extremo, eu não consegui nem falar direito e muitas vezes me perdia no pensamento, ficava fitando o nada e só desejando voltar pra casa e dormir, sem nem mesmo ter força para assistir como é de costume, e ainda ontem eu me sentia assim, basta ler o que escrevi antes da pausa. E hoje já amanheci com a disposição que não tive nas últimas duas semanas, já escrevi duas resenhas e daqui a pouco vou começar a fazer uma limpeza nas minhas prateleiras de livros, e ainda pretendo fazer a barba, além de assistir mais um pouco na minha folga. É simplesmente inexplicável de onde vem isso e, ao mesmo tempo, para onde vai, senão que a energia aparece e some com a mesma velocidade. Eu quero me esconder e ficar num quarto escuro e fechado e, no dia seguinte, quero fazer tudo o que está ao meu alcance e mudar várias coisas ao meu redor. 

O que aprendo com isso é apenas que devo respeitar os meus diversos tempos e ritmos, aproveitar quando consigo ser produtivo e comunicativo e entender que em outros dias eu vou querer apenas fica deitado ouvindo blues... É o fluxo da minha vida, não há muito que eu possa fazer. 

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Breve Despertar

Estava adormecido há um tempo, sempre era assim nos episódios de depressão, tudo perdia a cor e toda vontade se esvazia. Tinha tentado alguns dias atrás mas desisti depois de uns breves minutos, vencido pelo cansaço. Mas dessa vez eu podia ficar até um pouco mais tarde, só iria trabalhar no segundo período então tinha mais tempo.

Fazia frio, a temperatura caia uns dez graus nos últimos dias e, sem cueca, eu percebi que a calça era fina demais. Já estava desistindo, tinha virado pra outro lado da cama já pronto pra esperar o sono quando ele deu um sinal de vida. Coloquei a mão pra dentro e comecei a acariciar, há dias eu não fazia isso, e bem devagar eu voltava a mão pra sentir o cheiro misturado com a glicerina do sabonete. O calor da minha mão foi se espalhando, pude sentir a cabeça crescer e as veias saltarem pelo corpo. Desci a mão até a base e o calor foi se espalhando pelas minhas coxas também, ainda com movimentos desconexos e apenas aproveitando a mão numa massagem delicada no membro que ficava mais duro e que agora pulsava lentamente. Passei a ponta do dedo pela parte que abandonara a proteção escura e, se estivesse claro, se exibiria brilhante, meio roxa e avermelhada. 

O pensamento voou um pouco para longe, alguns rostos perdidos na multidão, vozes que eu imagino que eles tenham, olhares e toques que só existem também nesses momentos de devaneios íntimos e luxurioso. Me pergunto se o ar se impregnou daquele perfume também. 

Abri um pouco mais as pernas, gosto dessa posição, gosto de sentir a forma nívea quente na barriga e as vezes em meu rosto, onde limpo passando a língua nos lábios e sentindo o sabor cítrico da minha essência expelida. 

Acelerei os movimentos e me senti vivo de novo, depois de alguns dias praticamente inerte, e acelerei mais e mais, tornando o carinho numa fricção forte, prestando mais atenção nos músculos do braço, esforçados nessa causa, e nos pesados cobertores por causa do frio, esperando que me aquecessem mais quando ela veio, farta, quente, violenta. Meus dedos ficaram cobertos de prata, e eu limpei rapidamente com a língua ainda arfando baixinho, mordendo os lábios com as últimas pulsadas do meu pau, depois ajeitei a calça, engoli e me virei pro outro lado num silêncio vazio. Seria uma boa noite de sono. Finalmente!

sábado, 27 de maio de 2023

A única sorte

Eu espero mesmo que você realize esse sonho, que tenha uma família numerosa num lugar simples e quieto, onde você possa ser um homem cada vez melhor, crescer ao lado da sua esposa e ver os filhos ao redor da mesa tornarem-se boas pessoas, herdando o bom coração que você tem. 

Quanto a mim, já não ouso sonhar nada. Outro dia comprei alguns casacos me preparando pro inverno que se aproxima e não consegui nem mandar uma foto pra você porque aquela visão do meu corpo no espelho me causou repulsa total. E então eu olho ao redor, até no transporte público aqui, ou nas redes sociais, e vejo uma porção de homens perfeitos, sejam magros com o rosto delicado, pele de seda mesmo sem usarem nada de skincare ou corpos também perfeitos, braços desenhados e aquele peitoral que vemos nas estátuas dos deuses gregos e que realmente trazem em si algo de divino. 

E eu sei que isso nunca daria certo para mim. Dieta e academia por meses? Seria uma morte lenta e dolorosa e que não daria resultado. Basta pesquisar por dez minutos na internet para ver que ninguém concorda com nada do que o outro diz, todos têm a fórmula perfeita e nada funciona, exceto para alguns que conseguem sacrificar tudo. E talvez eu devesse tentar pelo menos isso, pelo menos a desnutrição. 

Nada de pele radiante, a minha barba cresce demais e eu preciso compensar sendo fofo e educado, se não acordo bem num dia todos comentam que eu tô com uma cara péssima, mas é só nesse momento que eles talvez vejam um pouco do que se passa no meu interior e que eu cubro com essa máscara. Saturada de males se encontra minh'alma e, se naquele dia eu estava com uma cara péssima, é porque ela estava refletindo um pouco das trevas do meu peito, da minha constante desesperança e do niilismo que domina meu ser. 

Aquela beleza é inalcançável para mim, assim como a inteligência também é. Eu sou apenas um excluído que, por acaso, continua sobrevivendo, o que é uma droga.

E o amor? O amor só existe nos livros e nas séries. Na vida real as pessoas só conseguem desejar aquilo que não podem ter, muitas se juntam porque ter alguém pra foder com frequência é melhor do que ter que ir atrás toda vez que o tesão bate, de resto, vivemos na miséria solitária, a mesma miséria de todos, com a diferença é que eles, entre uma gozada e outra, não percebem que também estão sozinhos mas que bebem e transam pelo mesmo motivo que nós. 

Poderia falar como a beleza vista desse ângulo é apenas uma lógica de mercado mas acho que já falei o suficiente sobre a beleza em outras ocasiões. Sigamos o enterro.

Sei bem que eu deveria deixar de me iludir, sim porque sei que ninguém além de mim mesmo é culpado disso e, sei lá, simplesmente puxar assunto com o cara do ônibus ou com o acólito. Mesmo sabendo que nenhum deles vai ligar pra mim, afinal que homem bonito prestaria atenção em mim? Eu deveria deixar de me iludir e acreditar de verdade nas palavras que eu mesmo coloquei no último parágrafo e desistir desse amor, de qualquer amor. A solidão é a minha única sorte.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Sobre estar errado

"Sentimento de solidão, desde a minha infância. Apesar da família e no meio dos camaradas, sobretudo, sentimento de destino eternamente solitário." (Baudelaire) 

Eu sou a pessoa errada, na hora errada, no lugar errado e com o sentimento errado. O carro ia rápido pelas ruas já conhecidas, mas era um pouco tarde demais para ficar andando por aí. Por alguma razão, que eu sei bem qual é e não preciso e nem quero falar mais sobre, eu queria companhia naquela noite. Conversamos sobre mitras e filosofias, criticamos criadores de conteúdo idiotas, demos uns beijos e voltei pra casa. Não preciso dizer que voltei tão ou mais vazio do que antes, embora ele seja sim simpático. O problema sou eu, e o problema foi eu não querer estar ali e sim com outro, mas que não me quer. Droga, já voltei a esse assunto de novo. E alguma vez falei algo de diferente? 

Eu sou a pessoa errada, na hora errada, no lugar errado e com o sentimento errado. Eu sou sempre o errado. Escolhas erradas, signo errado e até ascendente errado, tem algo errado quimicamente no meu cérebro, algo errado inerentemente e até dizer isso é errado porque eu tô copiando a letra de uma música onde o cara também se sente errado. E eu continuo tendo sonhos errados, seguindo planos errados. Nada nunca está certo. Nem meus sentimentos, nem meus contatos, nem o vinho barato que eu bebo quase toda noite. Nem mesmo o vazio que eu sinto agora, na minha sala vazia enquanto a chuva cai de modo melancólico e eu queria chorar como ela, mas até minhas lágrimas são vazias, até chorando eu choro errado. 

É um fim de tarde de domingo, o tempo está ótimo, nem frio frio e nem quente demais, e eu estou entediado enquanto todos os homens desse planeta estão dando em cima de alguma garota sem graça, porque todas elas são sem graça, ou fodendo com outros caras mais bonitos, com seus corpos fortes e torneados, cabelo perfeito e pele lisa ou com mais lábia do que eu. Não me envergonho de copiar o velho Buck e dizer que não sei o que fazer, além de que vou ficar bêbado ou encher a cara de tarja preta de novo, de novo e de novo.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Por aí

Deitei durante uma pausa no trabalho e, brevemente fechei os olhos, longe do celular. Tentei não pensar em nada, limpei a mente, apenas algumas imagens sem sentido passavam sem que me fixasse em nenhuma delas. Foi maravilhoso. Deitado naquela almofada enorme eu me senti livre, sem pesos ou amarras, e a imagem dele não apareceu nenhuma vez, e eu não me senti o pior homem do mundo por amá-lo sem ser correspondido. Foi breve mas foi um dos melhores momentos dos últimos tempos. Acho que agora eu deveria descer e pegar um café. Bem forte. 

Foi bom ficar longe do celular, outra sensação de liberdade. Parece que o mesmo aparelhinho que me liga aos outros que estão distantes também me mantém preso. Foi bom ficar longe de todos por um tempo e, com isso, esquecer a confusão dos meus sentimentos. Confusão que já foi esclarecida, é verdade, mas que nem por isso diminuiu a tempestade no meu peito. Confusão. Tormenta. Por trás do meu sorriso constante, do meu olhar cansado e dos meus gestos de carinho, há um mar em profunda revolta onde monstros gigantescos devoram-se uns aos outros e impiedosamente ameaçam avançar por sobre as pobres pessoas. 

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Consegui um assento no ônibus. Me lembrei de um professor que tive no começo do Fundamental. Edmilson, dava aulas de matemática e geometria. Gostava de passar sempre a mesma técnica para resolução de problemas, desde então eu tomei verdadeiro nojo dessa palavra e dos cálculos, e sempre usava nomes idiotas como He-Man e She-Ra como personagens dos malditos problemas, e eu tenho certeza que ele achava isso o máximo como forma de deixar a matemática mais divertida. Ele me expulsou da classe uma vez porque eu supostamente estava atrapalhando a aula ao entregar um trabalho pra menina que sentava atrás de mim e, ao contestar, ele ficou irritado. Reprovei em geometria naquele ano mas felizmente nunca mais vi aquele grande imbecil. No ano seguinte reprovei em matemática, com uma professora ruiva exageradamente simpática, que também implicava comigo, e que eu achava idiota por usar as pernas de uma atriz como exemplo ao explicar um cálculo cruzado de frações. Nunca aprendi aquela porcaria e, muitos anos depois, descobri que tenho discalculia, além de implicância com qualquer pessoa que tente fazer da matemática algo mais interessante do que o pé no saco que ela realmente é. 

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Nas celebrações da Semana Santa eu estou lutando para me concentrar nos ritos e não tanto nos meninos bonitos que têm na paróquia, o que é quase impossível porque a cada passo tem um mais bonito do que o outro, e tudo fica ainda pior quando eles estão discretamente de túnica no altar. Droga. Eu nunca vou deixar de ser um tarado por novinhos que nunca vão me dar a mínima? Como o velho Buck conseguia todas aquelas mulheres? A única coisa que os caras bonitos sentem ao me ver é nojo. 

Apareceu uma foto minha de três anos atrás, ainda magro no meio de umas plantas no quintal. Que saudades daquele corpo! Muito embora eu já estivesse sozinho naquela época pelo menos era uma coisa a menos para eu odiar ao me olhar no espelho. Droga, como eu daria qualquer coisa pra ficar abraçado com um daqueles caras agora...

Em alguns momentos eu flerto com certos delírios de onipotência onde poderia fazê-lo me amar com um olhar ou toque, ou fazendo chover fogo durante uma manifestação comunista, mas logo me retraio. Não consigo parar de pensar que meu amor não é real e por isso eu não o alcanço. Mas se meu amor não é real o que é isso que eu sinto por ele? E qual a diferença disso que sinto pelo rapaz da igreja? 

Eu acho que isso não é amor, mas uma doença que me consome, um sentimento que cresceu sem controle e que deixei me consumir, enquanto ele seguia em frente, conhecia outras pessoas e eu continuava pensando só nele. Eu demorei a chegar nessa conclusão, muito embora ela seja óbvia: eu preciso continuar conhecendo novas pessoas, amigos, conhecidos, colegas... Eu preciso expandir esse meu círculo e começar a ter contato com novas perspectivas, seguindo aquele conselho de que "o talento se aprimora na solidão mas o caráter se aprimora na confusão do mundo" e eu preciso disso, não posso ficar parado e sozinho esperando que ele faça o mesmo. Eventualmente ele conhecerá alguém, e talvez eu também conheça. 

Não posso forçá-lo a me amar, mas posso ser livre para amar ou para viver a solitude. Outra conclusão óbvia que eu demorei a entender. 

Tudo o que eu queria era ser capaz de viver sem nunca mais amar.

terça-feira, 23 de maio de 2023

Torrente caótica

Não tenho tempo para pensar num formato para esse texto, apenas vou despejar a torrente que me vem antes que o remédio para dormir faça efeito e eu comece a procurar por compras absurdas na internet. E isso se eu não apagar antes pois, de tão cansado que estou e ao chegar me casa ver todas as minhas coisas reviradas eu simplesmente me senti ainda mais cansado e decidi que não vou lidar com nada disso hoje. Não vou arrumar o armário, larguei a mochila em qualquer lugar, a barba eu adiei por mais uma semana, nem mesmo as séries eu vou ver hoje, porque prefiro ficar no escuro do quarto. E daí se os episódios vão atrasar? Dane-se, dane-se tudo, porque no fim eu só posso abraçar o caos. Abraçar o caos de ficar doente no último dia da minha folga, abraçar o caos de que os contatos que fiz naquele aplicativo não deram em nada pra mim e que eu nem mesmo quero conversar com eles ou com qualquer outro que seja, nenhum deles vai ser capaz de me amar. Os bonitos nunca olharão para mim, e todos devem ter outros dez pretendentes mais bonitos ou com o pau maior do que meu. Eu sou peludo e pequeno e tenho acessos de depressão. Minha libido só não encontra petróleo porque não se mexe o bastante pra cavar ainda mais no fundo do poço. E eu até tinha planejado beber um vinho e comer alguma coisa antes de dormir, mas não quero. Não quero levantar e abrir a garrafa, não quero minha mãe perguntando o que aconteceu, não quero. Mas o que aconteceu? Nada, nada aconteceu na minha vida patética. Eu apenas passei o dia pra lá e pra cá respondendo e-mails e mensagens, postando em redes sociais e achando que nada disso vai ter nenhum resultado. Também fiz um atendimento, absurdamente chato em que a senhora queria obrigar a neta a se interessar por arte e eu lamentavelmente não consegui fazer nada além de deixar a pobrezinha profundamente entediada. Não a culpo, eu também queria voltar pra minha sala e devorar uma barra de chocolate com café frio enquanto ouvia uma playlist de cantores taiwaneses tristes. Hoje não vai ter vinho barato no jantar, também não tenho dinheiro para pedir comida e tenho preguiça pra fazer o que quer que seja, vou dormir com sono, com fome e irritado, cansado demais pra responder a meia dúzia de mensagens dos meus amigos. Cansado pra procura onde enfiaram as minhas coisas de qualquer jeito e, aliás, skincare não faz milagre então não adiantaria muita coisa, e então eu desisti. Assim como desisti de tentar achar alguém, agora só preciso tirar esse sorriso patético do rosto e aceitar a vida cinza que eu realmente tenho e que ninguém vê porque eu continuo sendo um bobo. Desisti da coerência, desisti da ordem, desisti de criticar os pobres que se perderam na falta de forma da arte. Desisti e percebi que mesmo assim continuo sorrindo debilmente e ninguém consegue ver que, na realidade, eu trago um olhar vazio e indolente que anseia pelo fim mais do que qualquer outra coisa. Desisti até dos aplicativos porque chego sempre tão cansado que, em que momento eu vou conhecer alguém e fazer amigos, como posso pelo menos pensar em me relacionar se não consigo nem chegar em casa e ficar ainda acordado por três ou quatro horas? Desisti porque eu não bebo, não fumo e nem transo como o velho Buck fazia e então por isso nem minhas palavras têm a força que as dele têm, ainda que seja uma força nojenta. E ele teria nojo de um veadinho como eu. Desisti e então só meti trinta gotas de Rivotril goela abaixo, teria sido com um golada de vinho se tivesse aberto a garrafa, mas nem isso, e eu estou cansado demais até pra continuar esse texto. Vou dormir e, quem sabe, a quantidade de remédio que eu tomei nos últimos dias me façam vomitar sangue até morrer. 

domingo, 21 de maio de 2023

Pés no chão

Não bastasse eu estar com a cara bem cansada, coisa que até minhas colegas de trabalho fazem questão de dizer quando eu chego logo cedo, eu ainda fui tomado de uma crise moral que só não foi mais grave porque o cansaço me fez apagar de sono antes de chegar a qualquer conclusão. 

Depois de meses morando aqui eu resolvi que sairia com um cara que eu conheci na internet. Converso com ele há um tempo e decidi que seria bom tentar algo assim. 

É claro que acabei passando boa parte do dia pensando se era a coisa certa a se fazer e, à noite, quando chegou a hora que a gente tinha marcado, mesmo que eu estivesse decidido a ir, ainda pensava, mas já  me perguntava não se era a coisa certa a se fazer mas que, na verdade, eu só queria que você me pedisse pra não ir, que me pedisse para esperar por você. 

Mas eu sei que você não pediria isso e acabei não indo também, adormecendo cansado e ainda tendo que trabalhar no outro dia. Pelo menos se tivesse ido talvez eu não teria acordado me sentindo tão só. Acordei cansado e sozinho, abrindo os olhos contra minha vontade, a cabeça pesada como se tivesse enchido a cara. Olhei com raiva para o despertador com uma mensagem de motivação irritante e levantei, sem ânimo mesmo, apenas levantando e esperando pelo momento que vou poder dormir de novo, e me deitar sozinho. 

Antes de dormir e sonhar, no entanto, preciso te perguntar: eu deveria procurar alguém? 

Essa pergunta, na realidade, uma forma de confirmar o que eu já sei com profunda convicção: eu preciso seguir em frente porque o nosso relacionamento não vai mudar. Somos amigos, nos amamos, mas é isso e apenas isso. Além de que estamos separados por quilômetros de distância. Então sim, eu devo seguir em frente e essa pergunta é a minha última tentativa de saber se você tem alguma intenção, por menor que seja, de ficar comigo. E como sei que não tem, eu vou seguir. 

Como a resposta não me satisfez (ou fosse exatamente a que eu esperava, ainda que não quisesse ouvir) eu decidi que preciso mudar meu agir, preciso mesmo seguir em frente e reorganizar as coisas dentro mim. Ou vou acabar sofrendo de novo, e eu não desejo passar por nada disso novamente. 

Você não vai me amar, não da mesma maneira. E eu vou continuar sozinho, cada vez mais triste e sozinho. Isso tudo porque eu fui um tolo, criei toda essa imagem na minha cabeça e esperava que você a realizasse, um completo alucinado, e é correto que eu sofra para voltar a olhar a realidade agora, e que siga em frente com pés no chão, pés no chão quente, é verdade, mas ainda assim no chão. 

Não posso deixar de me odiar, principalmente quando percebo o quão longe eu levei tudo isso. Como quando, por reflexo, pego um porta-retratos numa loja e penso que seria legal mais uma foto sua na minha mesa, e então coloco de volta pensando que essa seria uma péssima ideia e que, com isso só alimentaria ainda mais algo que eu deveria manter sob controle, jogar um balde de água fria e lançar para longe todos esses sentimentos confusos. A sua resposta confusa confirma que eu estou certo.

Eu já sabia, sabia e fingia não saber ou, melhor, não queria saber. 

sexta-feira, 19 de maio de 2023

Um ombro para chorar

Geralmente quando um aspecto específico de uma obra me chama atenção eu escrevo algo além da resenha habitual, e não raramente a análise fica ainda melhor, mas nela eu foco em algo mais particular que muitas vezes dialoga comigo por conta de alguma vivência minha. 

Em A Shoulder to Cry On eu fiquei bem impressionado com a forma como apresentaram os traumas de Jo Tae Hyun (Shin Ye Chan). O jovem, adotado, viu a mãe entrar em depressão profunda após perder o bebê, indo em busca dele que tinha fugido de casa por causa de um desentendimento com a tia. Ele assistiu sozinho ao declínio da mãe até seu suicídio e, não bastasse isso, foi afastado pelo próprio pai e culpado pela tia em estado de choque. 

Ele aprendeu a lidar com isso criando uma imagem. Seu sorriso e suas brincadeiras davam a ideia de que ele não levava nada muito a sério. A verdade que ninguém enxergava é que ele apenas fingia ser assim para esconder a depressão que ele mesmo vivia, a solidão de ter sido abandonado também pela família adotiva e a culpa pela morte da mãe. 

Anos mais tarde, quando ele conhece o jovem Lee Da Yeol (Kim Jae Han), que parece não se interessar por nada, ele resolve se aproximar do rapaz como que por magnetismo, mesmo sem perceber ele insistiu até conseguir superar as barreiras do jovem arqueiro e os dois se tornaram grandes amigos. 

Nesse ínterim ele percebe mais uma vez o medo que tem de desapontar os outros e de ser desprezado de modo tão brutal. A forma como ele se machucou, como que para impedir de se apegar a alguém e assim não causar dor a si e aos outros de novo, isso foi mostrado de maneira brutal. A melancolia em que ele mergulhou depois desse episódio e o fato de que nenhum de seus amigos entendeu o que estava acontecendo e não foi atrás dele, exceto Da Yeol... Aqui ele, mais uma vez sem perceber, se sentiu ligado ao outro. 

Quando Da Yeol começa a demonstrar seus sentimentos de forma mais intensa, no entanto, ele recorre a um artifício de frieza extrema e afasta o outro com violência. E então, ao perceber os seus sentimentos e decidir lutar por eles acaba descobrindo que é tarde, e então dá início a um período de dois anos em que ele precisa amadurecer e se permitir gostar de alguém, sem medo de ser odiado, desprezado e amado e, por isso mesmo, sem esconder suas lágrimas numa carapaça despretensiosa. 

O reencontro deles é marcado pela tônica de conseguir falar abertamente dos seus sentimentos e de entender a sutileza dessa aceitação que, por ser um trauma tão profundo, precisa de tempo e paciência para ser vencida. O Tae Hyun mais velho consegue fazer coisas pelo Da Yeol que ele ama, consegue falar sobre o que sente, consegue se permitir dormir ao seu lado e mostrar suas lágrimas. Essa superação começou na aceitação de que ele não tem culpa do que aconteceu com sua mãe e, ao confrontar a tia e o pai, ele se permite chorar pela primeira vez e reconhece que não consegue se deixar amar a ninguém por medo de sentir tudo de novo. Ao se reconciliar com a família ele se permite reconciliar consigo mesmo e então dar início a esse período de amadurecimento. 

Os dois juntos estão numa nova fase, eles agora precisam enfrentar o desafio do futuro mas já conseguem entender que precisam também do apoio um do outro. Ao fim da jornada que nos é mostrada Tae Hyun consegue pedir ao outro que seja para ele um ombro onde ele possa chorar.

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Entre o cansaço e o tesão

É claro que eu estava cansado demais ontem a noite antes de dormir, e o meu tesão se misturou com o cansaço e me transformou numa massa disforme que acabou apagando depois de três músicas e dois pornôs. Amanheceu ligeiramente mais fresco e bem mais escuro do que nos outros dias de semana quente e absurdamente abafada, e eu bati uma antes de levantar, ainda pensando nele e me perguntando se era mesmo uma boa ideia fazer isso quando eu sabia que o dia seria cansativo, bem, foi assim que eu decidi me acordar e acho que até deu certo porque logo levantei e fui tomar banho antes que me atrasasse ainda mais. 

Um relato bem inútil, eu sei, e talvez eu só esteja tentando imitar o velho Buck mais uma vez, numa tentativa de parecer mais profundo, mais poético, mais sofrido, e não apenas um bobo reclamando demais de problemas idiotas, mas ainda assim acho que mostra um pouco de mim essa desesperança pornográfica que explode em porra e desânimo de um homem cujo ponto alto do dia é a meia garrafa de vinho barato depois de um dia longo de trabalho. 

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Hoje eu estou funcionando apenas no automático, sorrindo e conversando casualmente, aguentando quieto a colega sem noção, exercitando a paciência e apenas me concentrando no momento de descanso para mais tarde. Só quero abrir uma garrafa de vinho, ouvir uma música baixinho e finalmente deixar meu corpo dormir. 

Foram dias agitados, montagem de exposições, ânimos exaltados e, em todos esses momentos eu respirava fundo e deixava meu peito se inflamar de amor, apenas conseguia pensar nele como um porto seguro, uma calmaria no meio da tempestade de um dia a dia louco. Talvez ele não saiba, e nunca chegue a saber, o quanto eu penso nele em momentos como esses. 

Estou em outro mundo, meditando todo o tempo, aumentando o volume da minha melodia interior e às vezes até cantando baixinho mesmo. Só assim eu consigo me defender dessa banalidade tremenda, dessa dificuldade das pessoas em insistir no dispensável e trivial, em se concentrar em tanta besteira. Eu estou em outro mundo, aqui só há os valores que eu consigo captar das músicas. 

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Essa cidade parece estar sempre optando pelo incômodo: ou exagera num abafamento úmido ou entristece o semblante do horizonte com uma fina e contínua camada de chuva, pesadas nuvens acima de nossas cabeças e pensamentos que se perdem junto a enxurrada que alaga as ruas do centro. O único consolo diário que os pobres trabalhadores têm são as belas figuras de deuses que caminham entre nós, ainda que não pareçam padecer das mesmas mazelas. Estão de pé nos ônibus lotados mas não transpiram e não se desesperam, nem trazem consigo aquele olhar cansado e triste de quem sabe que sua vida não deve passar muito além disso. Eles caminham entre as pessoas e iluminam um e outro rosto atormentado que encontra na sua beleza um frescor em meio ao calor intenso do fim do verão que parece ter se estendido muito além da conta pelo simples prazer de maltratar os homens. 

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E eu estou sempre cansado demais para tentar fazer algum amigo ou quem sabe tentar outra coisa. Converso por algumas horas de um dia e, no outro, já estou cansado demais para manter um diálogo e aí morre. Isso porque o cansaço é só um reflexo de como estou desencantado e sem esperança. Eu digo isso com a mente em giro e um sorriso irônico que só estampa minha face porque eu criei o hábito patético de sorrir sempre e agora não consigo mais expressar de modo algum a escuridão do meu peito e o cinza com que enxergo o mundo ao meu redor. 

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Imagem: Embrace, 1912 - Egon Schiele.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Obsessão


(...) Quando nos apaixonamos por alguém, a coisa funciona assim: nós lhe atribuímos qualidades, dons e aptidões que ele ou ela, eventualmente, não têm; em suma, idealizamos nosso objeto de amor. E não é por generosidade; é porque queremos e esperamos ser amados por alguém cujo amor por nós valeria como lisonja. Ou seja, idealizamos nosso objeto de amor para verificar que somos amáveis aos olhos de nossos próprios ideais. 
(Contardo Calligaris)

Ele é o meu ideal, aquele em quem penso no meio de um dia atribulado, quando não tenho tempo para mais nada e, por um instante, fecho os olhos e respiro fundo buscando forças para terminar o expediente e a imagem dele aparece, me devolvendo a força e lançando para longe o meu abatimento. 

Mas é um ideal distante, tão distante quanto o meu eu físico e o mundo das ideias, ele também está distante geograficamente mas ainda mais distante no meu coração porque, muito embora me ame, não nos amamos da mesma forma. E eu continuo suspirando por ele, e ele continua sendo a pessoa mais importante para mim, mas estamos permanentemente em páginas diferentes. 

E enquanto isso eu olho ao meu redor e vejo que todos os outros nem sequer estão no mesmo livro que eu. Cultivam suas ignorâncias como se fossem o conhecimento mais puro, destilam ódio e desprezo como se fossem os guardiões dos bons costumes que eles mesmos detestam. Eu estou perdido entre eles, com um discurso mais ou menos decorado que repito a cada um, e as pessoas vêm e vão, eu me despeço de todas elas e preciso ficar constantemente atento para não me contaminar com as suas convicções aprendidas da mídia e repetidas como verdades evangélicas. 

Se volto meu olhar para meu interior até encontro nas palavras de meus mestres o conforto e a realidade que tanto tentam roubar de mim, mas também o encontro, e então percebo que ele já faz parte de mim. Mesmo sendo só um ideal que eu mesmo criei para me destruir.  

Quanto mais eu penso nisso, quanto mais fecho os olhos, mais eu sinto meu coração bater forte, as fibras do meu corpo se revirarem, meu estômago sentir o bater de asas, e eu percebo que estou obcecado por esse amor. 

E que ferramenta tenho eu a não ser encher a cara ou dormir para não sonhar acordado? Para onde posso fugir se ele não sai de modo algum da minha mente? 

Ele não me ama do mesmo jeito. As expectativas criadas são todas frustradas, uma a uma, sem exceção. 

Buck estava certo, o amor é um cão dos diabos. 

terça-feira, 16 de maio de 2023

Café Forte

Quando vi uma foto dele eu resolvi novamente puxar conversa, pela centésima vez, e pela centésima vez obtive uma resposta quase monossilábica, e é sempre assim.

Deitei por alguns instantes numa espécie de almofada gigante que tem na minha sala, olhei mais uma vez para a foto dele e fechei os olhos enquanto ouvia pela segunda vez nessa tarde o inicio da Sonata para Piano N° 8 do Beethoven. Algo naqueles arpejos me fez subitamente sentir uma inflamação no peito, e minha respiração se arfou. De repente eu senti uma enorme vontade de dizer tudo a ele, de dizer o quanto ele mexe comigo e como meu coração fica inquieto sempre que penso nele por mais de dois segundos. 

Tomando a expressão do poeta eu preciso contar que essa febre luxuriosa me deixou, na horrorosa avulsão da forma nívea, desejoso de dizer palavras de lascívia. Palavras não, gemidos, muitas vezes desconexos, nomes sussurrados, coisas que jamais seriam ditas não fossem as pernas e braços abertos e entrelaçados, os membros rijos e lubrificados de suor e cuspe, entrando e saindo de vários lugares ditando o ritmo dos lábios que se apertam e do arfar das respirações que tentam juntar-se em sintonia. 

Cheguei até mesmo a me preparar para dizer quando me ocorreu que isso não mudaria nada. Ele provavelmente me dispensaria de um jeito educado e eu nunca mais falaria com ele, ou talvez continuasse puxando assunto, e recebendo uma resposta vazia, por alguns meses antes de desistir e voltar a pensar nele algumas vezes em momentos aleatórios, sem que ele nunca pense em mim em contrapartida. 

Então eu abri os olhos e fitei o teto, as vigas de madeira visíveis, e respirei fundo tomando consciência do meu corpo, dos meus pés largados de qualquer jeito, e não disse nada, engolindo cada palavra e as despejando aqui em forma de lamento, onde sei que ele jamais vai ler. 

Só o que posso fazer agora é esperar que a sonata termine, pegar uma xícara de café e esperar que tudo passe... Tornei-me mais um desiludido do amor. Talvez notem as minhas vísceras apaixonadas quando eu finalmente parar de respirar e nunca mais suspire, pela minha sorte ou por homem algum. 

O café vai ter de ser bem forte.

~

Imagem: Coffee, 1959 - Richard Diebenkorn.

sábado, 13 de maio de 2023

E se?

Me ocorreu brevemente, enquanto lia poemas de Carlos Drummond de Andrade mas pensava numa conversa aleatória de meses atrás: E se eu fosse apresentado para seus pais? E se começasse a participar das reuniões de família? Vejo que seus pais gostam de receber amigos e parentes, imagino, em casa, já que sempre vejo movimento quando passo lá na frente após o expediente de sábado. E se nossas famílias se encontrassem? E se, depois de oito ou nove anos eles finalmente me aceitassem como seu parceiro? E se então eles percebessem que somos normais e que eu posso ser interessante, e que amo você de verdade e que juntos, na missa de domingo, mãos se tocando levemente no banco, nós somos felizes?

E, embora os parágrafos eu comece a escrever dois ou três dias depois do primeiro, me veio uma experiência análoga, que se diferencia na intensidade mas que tem por base fundante o mesmo princípio. 

Dois amantes que se reencontraram dez anos depois de um término repleto de mágoas, que inclusive quebrou as suas personalidades, deixando um deles em estado de depressão catatônica contra o qual ele precisou lutar por anos para conseguir sobreviver, sem um brilho no olhar ou uma razão para fazer algo além de trabalhar e voltar para casa dormir e esperar o próximo dia. O outro se perdeu e chegou até mesmo a buscar dar cabo de sua vida com drogas que ele conseguiu de um conhecido da indústria farmacêutica internacional. O reencontro, num momento de desespero mundial deu a eles a oportunidade de se perdoarem, bem como de passarem seus últimos momentos juntos. 

Ante a face do completo colapso global um amor pode diminuir o medo profundo. E então naquele carro estacionado à beira da estrada, eles reconhecem que aproveitam a felicidade de encontrarem um ao outro novamente, e se entregam ao desejo há uma década reprimido entre a dor e o rancor. O beijo apaixonado e os toques quentes, as palavras que saem com aquela leve fumaça e que roça delicadamente o rosto do amado ao dizer que ele gostaria de passar o dia inteiro transando com o outro, até que o mundo acabasse. Esse seria o melhor fim possível. 

E é claro que a isso seguiu-se uma intensa noite de amor, onde se livraram de todas as inibições do últimos anos e colocaram em jogo o desejo há tanto acorrentado pelas dolorosas lembranças. E foram horas longas e tórridas, ambos banhados em suor e porra, saliva escorrendo nos membros em riste, gemidos altos que tentavam abafar em vão com as mãos. O amor, esse amor, não pode ser contido. 

Outra experiência é a do casal que recém começou a se conhecer. O medo, aquela doce insegurança, os sorrisos tímidos, as conversas prolongadas porque eles querem ficar mais e mais tempo juntos. Essa aura de frescor de um novo amor é sempre impressionante.

E então eu penso nas minhas experiências, do quão eu fico bobo ao ler algumas mensagens ou quando ganho um abraço de um quase desconhecido que se mostrou muito simpático. Experiências de desejo intenso, daquela vontade de transar o dia inteiro até o mundo acabar, sem pensar em nada mais além daquela presença ali, da respiração arfada, do líquido prata que escorre, do suor a abrilhantar a carne vermelha e as palavras de desejo ditas baixinho. 

Penso também em todas as vezes que meu peito se inflama de amor e eu preciso levantar, ainda que seja no meio da noite ou em pausas apressadas no trabalho, para escrever e colocar aqui o que faz meu coração palpitar mais forte e até mesmo mudar a minha respiração em arfadas pesadas. Muitas vezes apenas os primeiros acordes de uma música são suficientes para despertar em mim uma paixão que me abrasa de dentro para fora, que muitas vezes jorra em água de prata ou lágrimas pesadas na escuridão silenciosa, mas também que se expande em palavras que ninguém lê mas que meu peito se apraz em escrever.

São vários aspectos de uma mesma experiência. Aspectos que me pergunto quais seus lugares no meu peito, o quão eu me dedico a pensar nisso para tentar suprir a minha solidão. E some-se a isso a indiferença niilista que resultou dos fracassos que me trouxeram até aqui.

"Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco."
(Carlos Drummond de Andrade) 

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Consolações e deserto

Percebo, ao mesmo tempo que me recordo dos valiosos conselhos de São João da Cruz, que muitas vezes quando alguém dá início a uma vida de oração, se aproximando mais de Deus e decide optar por abandonar os grandes vícios, o que com toda certeza deve ser feito, elas acabam por confundir o que sentem como resultado desse ponto de partida inicial e, tão logo surgem as adversidades próprias da vida espiritual, precisam buscar muita força no próprio Senhor para conseguir entender, com paciência, as suas próprias limitações. Mas, vamos nos deter e explicar com um pouco mais de cuidado esse fenômeno tão observado mas pouco percebido e que tantas vezes nos faz deixar perder aqueles que nos rodeiam. 

Geralmente o que faz as pessoas tomarem para si a opção de mudarem de vida é a percepção do vazio que a vida de pecado nos proporciona, aquele sentimento de prazer momentâneo, evanescente, que tão logo chega ao seu ápice atinge também o seu termo, fazendo-nos desejar mais e mais e nunca nos preenchendo. Então essas pessoas percebem, de algum modo muitas vezes inconsciente, que em Deus encontram um abrigo, um sentido. Muito embora a resolução esteja correta o sentimento que a obrigou pode esconder um perigo. 

Isso porque se estamos habituados com aqueles prazeres momentâneos da vida de pecado corremos o risco de nos apegar as consolações da vida espiritual, consolações que geralmente encontramos no início da caminhada e que Deus nos dá de bom grado como demonstração do seu carinho mas que ainda não é o termo de nossa caminhada, muito pelo contrário, a caminhada se dá principalmente nos momentos onde essas consolações não existem, sendo que são apenas um tipo de ponto de descanso onde a alma repousa por breves instantes antes de retomar os agrestes escarpados da sua peregrinação. 

Muitos têm a impressão que os grandes santos escreveram suas obras maravilhosas todos em êxtase, o que não é verdade, muitas delas foram escritas justamente durante os períodos de intensa provação. Com efeito é no deserto que a alma pode se aproximar de Deus, o próprio Cristo é aqui o melhor exemplo mas outros podem também nos ajudar, como Santa Tereza que se manteve firme na oração que lia num livro quando não conseguia rezar sem seu auxílio, ou Santa Teresa de Calcutá que continuava a ajudar os mais necessitados quando seus lábios já não conseguiam rezar, ou ainda a pequena Teresa de Jesus que continuava aos pés do sacrário mesmo quando não sentia nisso nenhuma consolação. O exemplo do Senhor e dessas três santas mulheres nos ensinam a perseverar independente do sentimento que tenhamos, fazendo sempre a coisa certa pois é esse apego a Verdade, e não as consolações que ela nos dá, que nos aproxima dela. 

O que pretendo dizer é que Deus distribui suas consolações conforme bem lhe aparece para proveito da alma que consola, e que dá os momentos de deserto pelo mesmo motivo, exigindo de nós a acolhida dessa realidade, ainda que ela nos mostre a nossa verdade, a nossa fraqueza, a nossa inconstância. Não podemos esperar que Deus nos dê o mesmo prazer do pecado e nem que lhe ocupe o lugar da mesma forma, isso porque esse tipo de prazer é sempre fechado em si mesmo, algo que Deus não pode ser de maneira alguma, então quando o cristão acaba por confundir a consolação com o prazer, cai no pecado da gula espiritual, desejando sempre mais e mais essas consolações e esquecendo do Espírito que as dá, ou pensando que apenas nas consolações é que está Deus, ou ainda que elas são sinal de crescimento quando, muitas das vezes, é exatamente o contrário, Deus as dá justamente porque sabe que a alma ainda não está pronta para entrar no deserto. 

Mas, se entramos no deserto, é porque ele acredita que nele vamos crescer, desse modo é preciso manter-se firme na caminhada e, mais uma vez, confiar que é Deus que nos faz caminhar, mesmo quando não sentimos que ele nos toma pela mão, mesmo quando parece que somos apenas nós, mas é ele que continua a nos chamar, e se sentimos que não estamos avançando e porque continuamos ouvindo a sua voz mas sem perceber do que se trata. 

Por isso o deserto é também momento de purificação, é a escada que nos leva ao jardim. Ele purifica justamente os sentimentos que estavam habituados ao prazer do pecado, e então limpa esse recipiente que vai receber graças maiores, mas que precisa se esquecer do líquido agitado que antes ali se depositava. 

O que não podemos é esquecer que Ele continua conosco, mesmo nos desertos ou vales tenebrosos. 

"Quando invocar eu atenderei, na aflição com ele estarei. Libertarei, glorificarei, minha salvação eu lhe mostrarei." (Sl 90) 

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Paráfrase

Não creia que a dor foi aqui maior ou mais verdadeira que a ira. Foram iguais em si mesmas, as consequências é que se diferenciam. Da ira nada decorreu, mas da humilhação eu me derramei em lágrimas, pesadas e quentes. E, contudo, não me faltou um ímpeto débil em estrangular aquela garota, colocá-la sob meus pés, arrancar seu coração com meus próprios dentes. Acredite quando digo, a parafrasear Machado de Assis nesse parágrafo inteiro: existem tiranos de intenção! Na alma desse homem passou um tênue fio de Calígula e mais do que algumas gotas de Nero. 

X

Não pense que não o amo com amor eterno e verdadeiro, mil juras não poderiam expressar o que eu sinto, mas mesmo que fale daqueles belos rapazes eu sacrificaria todos os outros homens do mundo por um abraço teu, por instantes perdido nos cantos de seus braços, segurando suas mãos com força. Eles nada são para mim além de figuras bonitas, sim é verdade, mas apenas figuras etéreas que desaparecem na minha memória como fumaça ao vento tão logo passa outro ônibus ou outro dia torne a findar. 

X

Tenho tentado não pensar muito, mas o fato é que muitos dias eu vivo apenas em algum tipo de modo automático. Acordo, tomo banho e vou pro ponto de ônibus, trabalho o dia todo, tentando não prestar atenção a banalidade do ambiente que me rodeia e volto pra casa cansado. É uma constatação ruim perceber que os únicos momentos de brevíssimo prazer na vida são alguns episódios de série e uma punheta rápida antes de dormir, não posso me demorar muito porque no outro tenho que levantar cedo de novo.

Me chamaram para ir ao cinema e comer uma pizza, além de não ter dinheiro eu também não tenho disposição, mas eu me obrigo a ir assim mesmo, para tentar me livrar um pouco dessa névoa que me embaça a mente, pra ver se meu corpo reage de algum modo. Assim como alguns dias eu caminho na beira do mar, é apenas pra ver se obrigo meu corpo a reagir, pra ver se me liberto do torpor de sempre.

Eu me forço a fazer isso, sorrio e converso, conto até bem mais do que deveria sobre mim, mas acabo sempre voltando pro vazio, e as pessoas notam, notam como eu carrego, entre um sorriso e outro, o olhar indolente de um idiota. Em algum momento da minha vida, e não me lembro de ter feito isso de modo consciente, eu aprendi a sorrir sempre que falassem comigo, e então passo essa imagem de tranquilidade e afeto, e de fato dificilmente não crio algum carinho pelas pessoas, gosto de tratar todo mundo bem mas, isso faz com que elas não percebam que, na realidade, isso é apenas uma máscara grossa demais para que vejam o homem apático por detrás dela. O fato de conseguir me comunicar bem também conta em favor disso. Eu sorrio enquanto gostaria de apenas de olhar fixamente e em silêncio para tudo ao meu redor. 

É como acordar e resolver passar um café e perceber que está sem filtro, sem café, sem amigos, sem perspectiva de vida, sem vontade de viver, todas essas coisas. Acho que o único momento em que algo assim transparece de verdade é em dias assim: em que apenas o vazio se manifesta na opacidade dos meus olhares negros e frios como a imensidão desconhecida do cosmos. 

Mas não pense que é uma simples reclamação, isso é um grande exercício autocrítico que me faz querer buscar cada vez mais a aquela verdade, tantas veze esquecida mas que, ao fim do dia, continua sendo o único objetivo que parece me conduzir a algo: a busca da verdade. E o mais que faço não vale nada, até porque eu não sou muito mais que nada. 

E que mais eu poderia fazer? Poderia achar no outro algo que me completasse? Ou tudo que nos completa é apena é um grande amor, e eu não posso ser esse amor para ele. É só mais um desfecho melancólico de um amor que eu serei obrigado a transbordar em cinzas. 

Me obriguei a ficar acordado e sóbrio o dia todo, ecoando as palavras da minha mãe de que deveria fazer algo, que deveria ficar acordado e aproveitar o dia de folga, e então eu tentei, procurei por uma nova série e me obriguei a entrar na sintonia do que ela dizia, mas foi tudo em vão. Agora, ao fim da tarde, quando o céu começa a escurecer ainda mais depois de um longo dia nublado, eu só consigo sentir ódio, como se tivesse sido convocado pela tuba gloriosa para o dia da ante o trono. Só consigo sentir cada fibra do meu ser se consumir em fogo do inferno e cinzas pela existência miserável, patética. 

E a maldita fiscalização me impede de comprar os remédios que poderia me fazer dormir e não sentir esse ódio porque estaria apagado na cama, esperando o despertador tocar para retomar mais uma semana de trabalho. E eu sinto ódio por ter suportado um dia infinitamente incômodo onde cada farfalhar das folhas do jardim vizinho e onde até mesmo o volume da televisão me incomodou, e eu queria lançar ao chão os vasos de vidro que estavam à minha frente, esperando que seus cacos destruíssem também o meu peito e que eu pudesse desaparecer com a mesma facilidade com que eles se quebram. 

Viver é uma droga, mas morrer também é uma droga porque envolve o mesmo cansaço que viver. E eu só queria mergulhar na desesperança de voltar ao nada. E isso não é poesia, é apenas o gemido de um homem abatido, abatido demais pra se manter acordado. 

Termino então com um trecho de Cecília Meireles que reflete bem a melancolia profunda desse dia:

"Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. 
Não sou alegre nem sou triste: sou poeta.
Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento.
Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, – não sei, não sei. Não sei se fico ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa rimada. E um dia sei que estarei mudo: – mais nada."

Cecília Meireles

~

Imagem: São Jerônimo escrevendo, Caravaggio.

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Melodia Interior

Uma vez mais eu sinto que o mundo ao meu redor não exige muito mais de mim além da mediocridade. Basta levantar cedo e trabalhar como um adulto funcional, não me sendo exigido nenhum conhecimento, nada de sabedoria, além daquele necessário ao exercício da minha própria profissão, mesmo que a profissão seja, de algum modo, relacionada ao trabalho intelectual. Basta aprender algumas expressões especializadas e é suficiente. Não importa então que eu vá trabalhar chapado de remédios pra alergia ou que chegue em casa tão cansado que apague imediatamente ao cair na cama, sem disposição pra ouvir uma música sequer, abrir uma garrafa de um vinho barato ou mesmo bater uma punheta. 

E era uma noite até fresca, mas eu não pude sentar na sacada porque enfiaram nela um monte de coisas velhas e feias, inclusive um viveiro horroroso com dois pássaros idiotas que fazem sujeira pra tudo quanto é lado. Nenhuma perspectiva de como é uma sacada até bela e que poderia ser usada em momentos agradáveis quando precisamos tomar um ar. Isso não ocorreu a ninguém. Tomei o vinho ali mesmo, sentado na sala enquanto devorava uma porção de amendoim, o que deixou a minha pele oleosa, mas eu nem liguei, só queria ter ficado ali sozinho, isso era o menor dos meus problemas, eu só queria ter aproveitado o escuro e a música baixinha um pouco antes de dormir. Mas isso também me foi tirado, porque eu não posso ser nada além de um homem medíocre que levanta cedo, vai trabalhar, e chega cansado demais pra ter algo bobo com um tempo agradável, por mais mínimo que seja. 

Acabei sendo obrigado a me deparar com uma questão essencial para a minha vida intelectual e que eu já vinha trabalhando há algum tempo e que agora se mostra ainda mais importante. A confusão que foi gerada a partir daí foi algo que eu não podia imaginar, e que podia ser evitada justamente com um olhar um pouco mais prático, algo simples na verdade. 

O Professor Olavo há muito havia alertado da necessidade de criar uma defesa contra a banalidade do ambiente e agora, mais do que nunca, isso se mostra necessário. Viciadas em giros de linguagem que pegaram do inglês as pessoas acabam perdendo a sensibilidade do próprio idioma, se tornam incapazes de entender a própria língua ao se habituarem a consumirem outro idioma, especialmente se tratando de conteúdo de baixa qualidade intelectual, aí os impactos são devastadores. 

Por isso eu venho reforçando aquela blindagem por meio de uma extensa coleção de melodias. Infelizmente ontem não foi possível deixar de me estressar com o baixo nível das pessoas e a sua mania praticamente incurável de dar atenção a coisas absolutamente sem importância, ao passo que o essencial fica legado ao esquecimento, retrato de um defasado senso das proporções, praticamente inexistente. 

As pessoas ao meu redor se gabam de práticas esotéricas como se fossem o auge da inteligência humana quando, na realidade, estão só ficando cada vez mais burras e, justamente por isso, o pouco que elas conseguem perceber e expressar torna-se então algo da mais alta importância. Trata-se de uma clara deficiência da linguagem que só poderia ser resolvida com muita leitura de qualidade, coisa que eu nem preciso dizer que passa bem longe dessa gente. 

Suas personalidades são fracas, elas perdem tempo demais e sofrem demais por coisas bobas, são incapazes de estabelecer com o mínimo de precisão o senso da forma e das proporções. Ao fazerem isso sacrificam seu tempo e sua alma em discussões inúteis. 

Mas eu me incomodo de ter me incomodado com isso, enquanto devia apenas ter aumentado o volume da música e aceitado, e não deixado me influenciar. Infelizmente isso mostra também a fraqueza da minha personalidade, que precisa se fortalecer mais e mais de agora em diante. 

Recordo de dois valiosos conselhos de S. Tomás que me servirão de bússola nessa caminhada:  "Mostrai-vos amável com todos" e "Não sejais demasiadamente íntimo de ninguém, pois o excesso de familiaridade gera o menosprezo e a ocasião de subtrair tempo ao estudo."

De fato o meu trato com o outro deve ser de amabilidade, mas ao mesmo tempo eu preciso saber policiar o meu relacionamento afim de não me deixar ser como os outros que tanto se ocupam de coisas menores e nada deixam para se dedicar as coisas sérias. As longas conversas, os devaneios prolongados, tudo isso acaba se tornando um veneno na já limitada vida intelectual podada pelo tempo consumido no trabalho. 

E até aqui já noto os efeitos negativos dessa convivência, já que essas palavras são muito resumidas se comparadas com aquelas que eu trabalhava em minha mente antes de começar a escrever, isso porque o próprio trabalho e a banalidade desse ambiente me podaram assim que me sentei à mesa. É mais um claro sinal de que preciso me fortalecer e amadurecer na vida de estudos. 

Ao me deixar levar pelo momento e me dominar, ainda que brevemente, pela fúria, eu só mostrei o quão fraca é minha personalidade e o quão pífia é minha vontade. Mais do que nunca eu percebo que preciso crescer. Mais do que nunca percebo que preciso aumentar o volume da minha melodia interior e, assim, me abrir pra experiências mais e mais levadas, superando então não apenas a banalidade que me rodeia mas também a minha própria banalidade.

~

Imagem: Pyotr Ilyich Tchaikovsky, Nikolai Kuznetsov.

Do desejo de conhecer

É próprio da mente criar e relacionar. Ao primeiro contato que nos espanta, diz Aristóteles, dá-se a largada ao conhecimento, e a imaginação é também uma forma de conhecimento pois, nascendo ela da memória, nos força a relacionar e formar analogias, as relações entre as diferenças e as semelhanças e, assim, recriar o mundo a nossa visão a partir da visão que temos do mundo. A imaginação retroage sobre si mesma. 

É esse tipo de experiência que ocorreu ao Van Gogh ao olhar para algumas gravuras japonesas e criar, a partir delas, alguns dos seus quadros mais famosos, ou quando Juarez Machado olhou para Van Gogh, Toulouse-Latrec ou Delacroix e então criar algumas das suas séries mais belas, com as moças formosas de contornos marcados, musculosas, ou as festas com mesas postas e convidados fartos, a conversarem alegremente entre si. 

Há algo na arte que nos faz relacionar com ela. Há algo na arte que nos torna participantes do ciclo de criadores e criaturas. Nem todos se sentaram ao redor de uma mesa luxuosa em Paris como mostram os quadros de Juarez, mas ao olhar para eles muitos conseguem se lembrar dos bons momentos com amigos e amantes ao redor de uma mesa num restaurante do centro ou na própria casa, talvez não com champanhe em taças de cristal mas com canecos de cerveja, e então quem vê aquele belo quadro se sente parte da própria pintura, talvez não chegue a pintar mas tirou uma foto que foi postada por vinte e quatro horas em alguma rede social, e outras pessoas quando viram se lembraram, elas mesmas, das experiências que tiveram.

E a arte pode ir ainda mais longe. Ela pode nos levar até mesmo a lugares que nunca fomos, como nos fazer sentir a brisa salgada do mar, nos desligar momentaneamente dos barulhos ao redor para pensar apenas no barulho do motor de um cruzeiro, no perfume dos charutos cubanos, no farfalhar dos grossos casacos. E de novo são experiências limitadas mas que se expandem e fazem aqueles que as vêm participantes daquela história. 

Daí vamos então construindo nossas próprias narrativas e personagens. Um homem que se sente mais elegante ao colocar um terno estampado, ou vestir uma casaca de almirante sem nunca ter servido a Marinha, coisas desse tipo que ajudam-nos a sobreviver os dias pesados abaixo das nuvens de chumbo. Respirar o ar fresco do mar dentro da própria casa ou nas paredes de uma galeria nos ajuda a sobreviver ao ar oleoso do nosso cotidiano e acaba por transformar o próprio ar ao transportar-nos a ele. 

terça-feira, 9 de maio de 2023

Dignidade

O Santo Padre, o Papa Francisco, na Evangelii Gaudium nos diz, com a clareza devida que devia ser para nós palavras de guiamento máximo, que “no meio da exigência diária de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia. A Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia, que é também celebração da atividade evangelizadora e fonte dum renovado impulso para se dar” (EG – 24).

Olhando para as celebrações que acontecem nas nossas paróquias não é difícil perceber o quão pouco frutífera é nossa liturgia. Parece que temos apenas duas opções: ou as missas carismáticas, longas, cheias de sentimentalismo e que, não raro, terminam em sessões de hipnose onde as pessoas ficam abertas a sugestão e ao transe por causa da música alta, das palavras dos pregadores e do exagerado enfoque no sofrimento humano que dá essa abertura nos espíritos já fragilizados. 

Por outro lado temos as missas da Teologia da Libertação, completamente descaracterizadas que sempre carregam uma conotação mais política do que espiritual. Nada conduz à oração. As músicas falam de libertação, de dor e sofrimento, de trabalho, e poderiam facilmente ser retiradas de qualquer manual marxista de quinta categoria. Até os salmos, a fonte primária da música católica são traduzidos de tal modo que passam a servir aos motivos políticos. Despida de suas vestes eternas a liturgia torna-se vazia, o que dá espaço para as invencionices mil que aparecem e que eu poderia descrever em dezenas de páginas e nunca acabar. Palmas em todos os momentos, dancinhas ridículas, ritmos inapropriados e nada, nada que demonstre alguma continuidade com a Igreja de dois mil anos. 

Nesse cenário imagens de verdadeira piedade e dignidade nos enchem os olhos e o coração de esperança. No meio das tristezas que temos nas missas atuais saber que, em alguns lugares, o Cristo Eucarístico recebe o devido respeito é inspirador. Seja pela beleza dos templos, dos paramentos ou pela firmeza da pregação ou até pela sobriedade do canto e do órgão em alguns lugares Cristo continua tendo o que merece: respeito como Senhor do Universo. 

E esses cenários devem ser, para nós, inspiração. Devemos fazer o mesmo, devemos buscar melhorar a cada missa, em cada detalhe, buscar melhorar sempre para que, em nós e na comunidade que ajudamos, Cristo possa ser reconhecido mais e mais como merece. 

Um exemplo máximo são as celebrações do próprio Papa, muito embora Francisco seja mais sóbrio que Bento XVI em nada o estilo particular de um anula o outro, pelo contrário, mostram que há sim espaço para a liberdade e a criatividade contanto que ambas respeitem os mistérios sagrados.

Por fim, muito me entristece ver que nossos padres e coordenadores nada entendem disso e buscam apenas as inovações mais absurdas para atrais os fiéis, sem perceber que os atraem não para Cristo, mas para sua própria criatividade maligna. Instrumentalizam a liturgia, empobrecem-na e privam o povo do contato verdadeiro que a Santa Missa nos oferece. É lamentável que nossas paróquias padeçam desses males com consentimento dos padres e bispos que, antes de instruírem as lideranças, aceitam e até incentivam esse comportamento. 

Resta-nos apenas o consolo já dito, daqueles que ainda têm a dignidade diante do olhar e que nos inspiram a honrar melhor o Senhor, ao menos em nosso coração. Que Ele seja recebido por nós com a dignidade que teria ao ser celebrado no presbitério mais belamente adornado, na mais bela catedral, pelo mais santo dos sacerdotes.

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Na imagem: Dom Joseph Perry, Bispo Auxiliar de Chicago. (IG:@aestheticacatholica)

Narciso


Me perguntaram por quê eu gosto de usar maquiagem, por quê gosto de ver vídeos desse conteúdo, experimentar produtos... E eu parei por um instante, um bem longo aliás, e fiquei pensando nisso...

A primeira resposta, que não demorou a aparecer e que, de certo modo concorda com a resposta que apareceu depois que pensei sobre o assunto um pouco mais é a de que, com isso, eu desejava me aproximar daquele ideal de beleza que eu vejo nas séries e nos vídeos dos grupos que eu gosto. Em todos eles há um destaque para a perfeição da pele, todos brilham na medida, tem lábios rosados, as bochechas sem manchas e sem essa barba esparsa que dá um aspecto bárbaro, selvagem. Eles, pelo contrário, têm sempre uma aparência jovial, saudável. E eu sei que muito disso, além dos cuidados cosméticos, envolve as técnicas de maquiagem, e por isso eu resolvi conhecer um pouco mais sobre esse mundo e, quando vi, estava gastando às vezes R$700,00 ou mais por mês em produtos.

Mas eu nunca consegui um resultado que me agradasse, nem mesmo depois de um ano inteiro de curso. Posso ter aprendido muitas técnicas, conheço bem os produtos, mas nada disso foi capaz de mudar a minha aparência de verdade. 

Eu já começo a sentir os efeitos de leves melhorias com uso do skincare de uma qualidade um pouco maior. O brilho da minha pele oleosa está mais controlado, meus poros diminuíram consideravelmente e até os cravinhos estão menos aparentes. Algumas técnicas me ajudam a esconder um ou outro detalhe mas é só isso, nada se compara com aquela maquiagem fabulosa onde, mesmo depois de muitos produtos, os meninos ainda ficam com uma aparência natural, como se todos tivessem saído do panteão dos deuses menores e caminhassem no meio de nós. 

E então, ao ficar revoltado com o resultado disso eu percebi que na verdade a minha resposta inicial não estava errada, mas estava incompleta. É que eu uso maquiagem sim para me parecer mais bonito como eles são, mas eu quero parecer com eles porque em realidade eu me odeio, e eu me odeio de tal maneira que prefiro ser visto como esquisito que usa lápis de olho e blush vermelho num grupo onde até as meninas já abandonaram esses produtos, porque prefiro ser visto como qualquer outra coisa do que como eu mesmo. 

No fundo, só fica a vontade de ser aquilo que eu nunca poderei ser: alguém bonito, alguém desejável, alguém que não ficasse ofuscado pela beleza medíocre de qualquer mulher, alguém para quem os homens olhassem. Mas esse alguém só pode ser alguém que não sou eu. 

Todos eles encontram carinho no mundo, todos querem lhe dar amor, e o meu amor se derrama,  como deve se consolar em saber que ninguém me pode corresponder? 

Aquele jovem acólito me olhou bem quando entrei mais cedo na igreja, e logo desviou o olhar, não tornando a me fitar nem por um instante durante toda a missa, e eu entendi, e me virei, e saí rapidamente ao "Ite missa est" sem olhar para atrás, sem forçá-lo olhar para mim mais uma vez. Como se fosse algum tipo de monstro, como se fosse tão imoralmente feio que nem sequer deveria sair de casa. E todos os dias eu me olho no espelho e penso que poderia ser qualquer outra coisa. Um Narciso que odeia o próprio reflexo, e que avança furioso para destruir a si mesmo. 

Pelo menos aqui sozinho no escuro ouvindo a chuva eu não preciso me preocupar com o nojo de ninguém. Ninguém me vê gordo e suado. Sou apenas eu e a música baixinha abafada pela sinfonia no asfalto e nos telhados de cerâmica.

Como as pessoas conseguem? Chegar ao fim do mês com algum dinheiro pra pedir uma pizza que seja. Não ficar exausto por interagir com outros por duas horas. Ter algo pelo qual lutar, que te faça ter vontade de levantar da cama todo dia.

Eu só queria saber como é não se sentir tão sozinho. Estar sozinho é diferente de se sentir e eu me sinto sozinho o tempo todo e como se fosse eu contra o mundo. Sim... Era só saber como é estar na mesma página que alguém uma única vez sequer.

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Imagem: Narciso, de Caravaggio

segunda-feira, 8 de maio de 2023

Meu Amor

O meu tempo parou quando você me chamou de "amor". Eu não sabia o que pensar, não sabia o que dizer e nem como agir. Assim como você não conteve suas lágrimas no dia em que nos despedimos, e eu pude senti-las quentes em minhas costas, também não consegui conter as minhas enquanto lia suas palavras. Tudo o que eu tinha naquele momento era então o desejo de ter você novamente com os braços ao meu redor num amplexo amado. Eu só queria poder sentir você de novo e, quem sabe, te abraçar com tanta força que jamais nos separaríamos novamente. 

Mas, o que será de nós? E eu que farei, que patrono invocarei em meu auxílio? Poderei sobreviver caminhando ao seu lado mas sem nunca segurar a sua mão ou tocar os seus lábios com os meus? Essa relação que eu disse termos, em que não me importo como a chamem, é real ou eu só estou dizendo isso de modo a disfarçar o fato de que eu só não quero me afastar de você mas ainda vou me machucar quando chegar o dia em que precisarei vê-lo com outra pessoa? 

E ainda assim você disse que me ama, que sou seu amor.

Amor!

Amor?

Amor. 

O que significa isso para você? Porque para mim significa que, em alguns momentos, eu sou pego desprevenido e então meu coração se inflama de intenso amor, e eu custo até mesmo a respirar, pois é como se você estivesse deitado sob meu peito, mas não é só o peso do seu corpo, mas o peso de todo sentimento que nunca poderá sair de mim, que nunca poderá fluir com energia pelas linhas de lei percorrendo toda a terra e explodindo nos grandes montes, passando pelos campos e outeiros, e gritando ao mundo o quanto te amo e como poderia me perder, me deixar absorver por você entre seus abraços. 

Por um lado eu não queria sentir nada disso, queria apenas equilibrar meus sentidos, vontades e paixões e então viver regradamente. Quem sabe encontrar a amizade desinteressada que me orienta a Mater et Magistra. Mas parece que isso não é possível, e talvez eu tenha que me contentar com aquela posição inferior, onde meu amor é colocado em segundo plano e uma jovem moça lhe conquistará o coração, mesmo que ambos saibamos que o que eu sinto poderia fazer a você feliz também. Se eu não te amasse tanto assim já teria fugido, mergulhando na Baía da Babitonga e desaparecendo nos abismos dos oceanos, oceanos semelhantes a grandeza do que eu sinto por você. 

"Você disse que se pudesse voar, jamais desceria..." É o que diz uma música que eu gosto muito, e você diz algo assim quando me conta sobre seus sonhos de ser pai, de ver as crianças correndo ao redor da mesa enquanto você conversa com sua esposa sobre a semana e os planos para o feriado. Uma tarde no parque? Talvez ir até a praia... Vai ser um bom tempo juntos. E essa é uma bela imagem.

Eu só lamento que nunca poderei te ajudar com isso. Nunca poderei ser sua esposa, nunca lhe darei filhos, eu simplesmente não posso ser para você o que precisa, só posso ser aquilo que já sou e que, embora seja bom o bastante para você, não o é para mim. 

O seu silêncio, no entanto, acaba piorando tudo porque muito embora eu já saiba qual a nossa situação, saiba qual o meu lugar no seu coração, eu ainda fico nutrindo, à contragosto e sem nenhum controle, uma centelha de esperança. E na palha do meu coração isso é o suficiente para que comece um incêndio. Fico na dicotomia entre esperar as suas palavras colocarem um fim a toda e qualquer esperança sem fundamento e me devolver ao estado inicial de ceticismo e solidão, e o de desejar que, em algum lugar no fundo do seu coração, você me aceite. 

E então, antes de adormecer a última coisa que penso e digo "Eu te amo", e sinto em meu peito que poderia dizer isso anda mil vezes antes de fechar os olhos. 

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Imagem: Obra de Anne Magill

domingo, 7 de maio de 2023

O Indescritível

Estou cansado, fisicamente muito cansado, e tenho lutado para ficar acordado mais uma ou duas horas antes de dormir profundamente e acordar cansado mais uma vez. Pelo menos essa semana tem um feriado e, talvez eu consiga dormir até um pouco mais tarde. 

Tenho andado com os olhos baixos, atendendo aos pedidos no trabalho com a atenção no mínimo e a única coisa que tem prendido são as palavras dos livros e aquelas que ele me escreve, mas mesmo uma quanto a outra às vezes têm se tornado difíceis de ler, quando o sono pesa demais e quando eu fico imaginando na sua resposta, mesmo sabendo o que ele irá dizer, mesmo assim há uma centelha de esperança que aguarda ansiosamente pelo balde de água fria que, talvez, me lance de vez no estudo sério que não mais se distraia com amores impossíveis.

X

Pego ônibus com um rapaz desde a primeira semana no trabalho, algo por volta de seis ou sete meses já. Claro que eu o notei desde o primeiro dia mas, até hoje, não consegui escrever nada sobre ele. Isso porque ele é tão lindo, tão incrivelmente belo, que transcende minha capacidade descritiva de tal modo que eu só consigo ficar em estado de estupefação ao olhar ou pensar nele. 

Consegui reter poucas coisas, um sorriso que vi apenas uma vez em todos esses meses, uma covinha na bochecha que apareceu brevemente enquanto ouvia um áudio no celular. Embora sempre o encontre no fim do expediente ele parece em forma, como quem acaba de sair do banho, como se o calor intenso do verão ou o vento gelado do inverno não fizessem nada na pele branca como mármore. Ele tem o corpo um pouco forte, mas não parece ir a academia, até tem um pouco daquela barriguinha que as pessoas que gostam de cerveja têm. Os olhos de um verde frio, quase castanhos mas sem o calor do tom terroso. E naqueles olhos eu me perdi hoje quando ele se virou em minha direção e eu os olhei bem fundo, e ele nem notou a minha presença. Seus olhos me lembraram o mar gelado que vi nos primeiros dias que vim aqui para o Sul, e me assustaram tanto quanto o mar verdadeiro. 

Eu não consigo, no entanto, nem mesmo descrevê-lo, como um deus ou um anjo, como geralmente o faço, porque simplesmente não tenho palavras que possam alcançá-lo. Apenas consegui colocar uma ou outra característica que marcou mas, ainda assim, são apenas termos vazios e sem nexo, em nada fazem jus ao que ele é e, penso, continuará sendo: um mistério que, embora eu veja todos os dias, jamais conseguirei colocar em palavras. 

X

Sete meses. Há pouco mais de sete meses eu estava deitado na cama, semanas e semanas, sempre na mesma rotina sufocante e sem sentido. Acordava de uma noite infernal, estudava, lia e assistia, por horas e horas sem fim, ou dormir, chapado ou naturalmente, dormia por dias inteiros, dois dias inteiros, três dias inteiros. Saia de casa para ir a missa de domingo e voltava para cama, ou para frente da televisão, onde então eu me desligava por algumas horas antes da próxima crise de pânico ou antes da próxima noite infernal, não raramente os dois.

E assim foi, por anos, dois, três, não sei direito, as memórias ficaram todas anuviadas, até porque não há muito o que lembrar, eu basicamente só fiz isso durante todo esse tempo. E algumas vezes chorei, de desespero por não ver saída, por achar que nunca sairia da cama ou que nunca conseguiria fazer algo básico como tomar um ônibus, fazer amigos, fazer qualquer coisa que não fosse assistir ou dormir. 

Era o inferno. E eu realmente não sei como eu consigo hoje levantar cedo e pegar três ônibus até o trabalho, não sei como consigo ver a programação do teatro ou simplesmente fazer e tomar um café. Não me imaginava caminhando à beira do mar há poucos minutos de casa, não me imaginava em outra paróquia, isso me parecia tão distante que eu muitas vezes disse que não iria conseguir, que não teria forças nem pra colocar uma mala de roupas no caminhão. 

E daqui a pouco eu volto pra casa, depois de um dia atendendo, estudando e desenvolvendo um grande projeto. Volto pra casa depois de discutir arte e de fazer coisas chatas de burocracia mas que, sete meses atrás, eu achei que nunca faria porque não conseguia nem me levantar daquela maldita cama. E então eu me lembro de quantas vezes eu fiquei ali deitado, esperando um monte de remédios fazerem efeito, ouvindo músicas tristes, em dias intermináveis que se mesclavam em noites onde demônios me atormentavam. Não havia amor, não havia amigos, nem a voz da minha mãe conseguia mais do que me impedir de cortar os pulsos e sangrar como um porco, depois de um tempo nem isso, já não ouvia mais nada, apenas ia levando um dia e depois outro e depois outro, tudo meio sépia. E se penso nisso hoje eu enjoo, aquilo me causa repulsa, eu sinto como o cheiro do meu suor naquela cama, naquele quarto com aquela mancha e mofo no teto e a parede que meu pai quebrou para achar um vazamento. 

Eu odiava aquilo. E nunca achei que me libertaria e que ficaria feliz por andar num ônibus cheio voltando pra casa depois de um longo dia.