domingo, 7 de maio de 2023

O Indescritível

Estou cansado, fisicamente muito cansado, e tenho lutado para ficar acordado mais uma ou duas horas antes de dormir profundamente e acordar cansado mais uma vez. Pelo menos essa semana tem um feriado e, talvez eu consiga dormir até um pouco mais tarde. 

Tenho andado com os olhos baixos, atendendo aos pedidos no trabalho com a atenção no mínimo e a única coisa que tem prendido são as palavras dos livros e aquelas que ele me escreve, mas mesmo uma quanto a outra às vezes têm se tornado difíceis de ler, quando o sono pesa demais e quando eu fico imaginando na sua resposta, mesmo sabendo o que ele irá dizer, mesmo assim há uma centelha de esperança que aguarda ansiosamente pelo balde de água fria que, talvez, me lance de vez no estudo sério que não mais se distraia com amores impossíveis.

X

Pego ônibus com um rapaz desde a primeira semana no trabalho, algo por volta de seis ou sete meses já. Claro que eu o notei desde o primeiro dia mas, até hoje, não consegui escrever nada sobre ele. Isso porque ele é tão lindo, tão incrivelmente belo, que transcende minha capacidade descritiva de tal modo que eu só consigo ficar em estado de estupefação ao olhar ou pensar nele. 

Consegui reter poucas coisas, um sorriso que vi apenas uma vez em todos esses meses, uma covinha na bochecha que apareceu brevemente enquanto ouvia um áudio no celular. Embora sempre o encontre no fim do expediente ele parece em forma, como quem acaba de sair do banho, como se o calor intenso do verão ou o vento gelado do inverno não fizessem nada na pele branca como mármore. Ele tem o corpo um pouco forte, mas não parece ir a academia, até tem um pouco daquela barriguinha que as pessoas que gostam de cerveja têm. Os olhos de um verde frio, quase castanhos mas sem o calor do tom terroso. E naqueles olhos eu me perdi hoje quando ele se virou em minha direção e eu os olhei bem fundo, e ele nem notou a minha presença. Seus olhos me lembraram o mar gelado que vi nos primeiros dias que vim aqui para o Sul, e me assustaram tanto quanto o mar verdadeiro. 

Eu não consigo, no entanto, nem mesmo descrevê-lo, como um deus ou um anjo, como geralmente o faço, porque simplesmente não tenho palavras que possam alcançá-lo. Apenas consegui colocar uma ou outra característica que marcou mas, ainda assim, são apenas termos vazios e sem nexo, em nada fazem jus ao que ele é e, penso, continuará sendo: um mistério que, embora eu veja todos os dias, jamais conseguirei colocar em palavras. 

X

Sete meses. Há pouco mais de sete meses eu estava deitado na cama, semanas e semanas, sempre na mesma rotina sufocante e sem sentido. Acordava de uma noite infernal, estudava, lia e assistia, por horas e horas sem fim, ou dormir, chapado ou naturalmente, dormia por dias inteiros, dois dias inteiros, três dias inteiros. Saia de casa para ir a missa de domingo e voltava para cama, ou para frente da televisão, onde então eu me desligava por algumas horas antes da próxima crise de pânico ou antes da próxima noite infernal, não raramente os dois.

E assim foi, por anos, dois, três, não sei direito, as memórias ficaram todas anuviadas, até porque não há muito o que lembrar, eu basicamente só fiz isso durante todo esse tempo. E algumas vezes chorei, de desespero por não ver saída, por achar que nunca sairia da cama ou que nunca conseguiria fazer algo básico como tomar um ônibus, fazer amigos, fazer qualquer coisa que não fosse assistir ou dormir. 

Era o inferno. E eu realmente não sei como eu consigo hoje levantar cedo e pegar três ônibus até o trabalho, não sei como consigo ver a programação do teatro ou simplesmente fazer e tomar um café. Não me imaginava caminhando à beira do mar há poucos minutos de casa, não me imaginava em outra paróquia, isso me parecia tão distante que eu muitas vezes disse que não iria conseguir, que não teria forças nem pra colocar uma mala de roupas no caminhão. 

E daqui a pouco eu volto pra casa, depois de um dia atendendo, estudando e desenvolvendo um grande projeto. Volto pra casa depois de discutir arte e de fazer coisas chatas de burocracia mas que, sete meses atrás, eu achei que nunca faria porque não conseguia nem me levantar daquela maldita cama. E então eu me lembro de quantas vezes eu fiquei ali deitado, esperando um monte de remédios fazerem efeito, ouvindo músicas tristes, em dias intermináveis que se mesclavam em noites onde demônios me atormentavam. Não havia amor, não havia amigos, nem a voz da minha mãe conseguia mais do que me impedir de cortar os pulsos e sangrar como um porco, depois de um tempo nem isso, já não ouvia mais nada, apenas ia levando um dia e depois outro e depois outro, tudo meio sépia. E se penso nisso hoje eu enjoo, aquilo me causa repulsa, eu sinto como o cheiro do meu suor naquela cama, naquele quarto com aquela mancha e mofo no teto e a parede que meu pai quebrou para achar um vazamento. 

Eu odiava aquilo. E nunca achei que me libertaria e que ficaria feliz por andar num ônibus cheio voltando pra casa depois de um longo dia. 

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