sexta-feira, 12 de maio de 2023

Consolações e deserto

Percebo, ao mesmo tempo que me recordo dos valiosos conselhos de São João da Cruz, que muitas vezes quando alguém dá início a uma vida de oração, se aproximando mais de Deus e decide optar por abandonar os grandes vícios, o que com toda certeza deve ser feito, elas acabam por confundir o que sentem como resultado desse ponto de partida inicial e, tão logo surgem as adversidades próprias da vida espiritual, precisam buscar muita força no próprio Senhor para conseguir entender, com paciência, as suas próprias limitações. Mas, vamos nos deter e explicar com um pouco mais de cuidado esse fenômeno tão observado mas pouco percebido e que tantas vezes nos faz deixar perder aqueles que nos rodeiam. 

Geralmente o que faz as pessoas tomarem para si a opção de mudarem de vida é a percepção do vazio que a vida de pecado nos proporciona, aquele sentimento de prazer momentâneo, evanescente, que tão logo chega ao seu ápice atinge também o seu termo, fazendo-nos desejar mais e mais e nunca nos preenchendo. Então essas pessoas percebem, de algum modo muitas vezes inconsciente, que em Deus encontram um abrigo, um sentido. Muito embora a resolução esteja correta o sentimento que a obrigou pode esconder um perigo. 

Isso porque se estamos habituados com aqueles prazeres momentâneos da vida de pecado corremos o risco de nos apegar as consolações da vida espiritual, consolações que geralmente encontramos no início da caminhada e que Deus nos dá de bom grado como demonstração do seu carinho mas que ainda não é o termo de nossa caminhada, muito pelo contrário, a caminhada se dá principalmente nos momentos onde essas consolações não existem, sendo que são apenas um tipo de ponto de descanso onde a alma repousa por breves instantes antes de retomar os agrestes escarpados da sua peregrinação. 

Muitos têm a impressão que os grandes santos escreveram suas obras maravilhosas todos em êxtase, o que não é verdade, muitas delas foram escritas justamente durante os períodos de intensa provação. Com efeito é no deserto que a alma pode se aproximar de Deus, o próprio Cristo é aqui o melhor exemplo mas outros podem também nos ajudar, como Santa Tereza que se manteve firme na oração que lia num livro quando não conseguia rezar sem seu auxílio, ou Santa Teresa de Calcutá que continuava a ajudar os mais necessitados quando seus lábios já não conseguiam rezar, ou ainda a pequena Teresa de Jesus que continuava aos pés do sacrário mesmo quando não sentia nisso nenhuma consolação. O exemplo do Senhor e dessas três santas mulheres nos ensinam a perseverar independente do sentimento que tenhamos, fazendo sempre a coisa certa pois é esse apego a Verdade, e não as consolações que ela nos dá, que nos aproxima dela. 

O que pretendo dizer é que Deus distribui suas consolações conforme bem lhe aparece para proveito da alma que consola, e que dá os momentos de deserto pelo mesmo motivo, exigindo de nós a acolhida dessa realidade, ainda que ela nos mostre a nossa verdade, a nossa fraqueza, a nossa inconstância. Não podemos esperar que Deus nos dê o mesmo prazer do pecado e nem que lhe ocupe o lugar da mesma forma, isso porque esse tipo de prazer é sempre fechado em si mesmo, algo que Deus não pode ser de maneira alguma, então quando o cristão acaba por confundir a consolação com o prazer, cai no pecado da gula espiritual, desejando sempre mais e mais essas consolações e esquecendo do Espírito que as dá, ou pensando que apenas nas consolações é que está Deus, ou ainda que elas são sinal de crescimento quando, muitas das vezes, é exatamente o contrário, Deus as dá justamente porque sabe que a alma ainda não está pronta para entrar no deserto. 

Mas, se entramos no deserto, é porque ele acredita que nele vamos crescer, desse modo é preciso manter-se firme na caminhada e, mais uma vez, confiar que é Deus que nos faz caminhar, mesmo quando não sentimos que ele nos toma pela mão, mesmo quando parece que somos apenas nós, mas é ele que continua a nos chamar, e se sentimos que não estamos avançando e porque continuamos ouvindo a sua voz mas sem perceber do que se trata. 

Por isso o deserto é também momento de purificação, é a escada que nos leva ao jardim. Ele purifica justamente os sentimentos que estavam habituados ao prazer do pecado, e então limpa esse recipiente que vai receber graças maiores, mas que precisa se esquecer do líquido agitado que antes ali se depositava. 

O que não podemos é esquecer que Ele continua conosco, mesmo nos desertos ou vales tenebrosos. 

"Quando invocar eu atenderei, na aflição com ele estarei. Libertarei, glorificarei, minha salvação eu lhe mostrarei." (Sl 90) 

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