terça-feira, 9 de maio de 2023

Narciso


Me perguntaram por quê eu gosto de usar maquiagem, por quê gosto de ver vídeos desse conteúdo, experimentar produtos... E eu parei por um instante, um bem longo aliás, e fiquei pensando nisso...

A primeira resposta, que não demorou a aparecer e que, de certo modo concorda com a resposta que apareceu depois que pensei sobre o assunto um pouco mais é a de que, com isso, eu desejava me aproximar daquele ideal de beleza que eu vejo nas séries e nos vídeos dos grupos que eu gosto. Em todos eles há um destaque para a perfeição da pele, todos brilham na medida, tem lábios rosados, as bochechas sem manchas e sem essa barba esparsa que dá um aspecto bárbaro, selvagem. Eles, pelo contrário, têm sempre uma aparência jovial, saudável. E eu sei que muito disso, além dos cuidados cosméticos, envolve as técnicas de maquiagem, e por isso eu resolvi conhecer um pouco mais sobre esse mundo e, quando vi, estava gastando às vezes R$700,00 ou mais por mês em produtos.

Mas eu nunca consegui um resultado que me agradasse, nem mesmo depois de um ano inteiro de curso. Posso ter aprendido muitas técnicas, conheço bem os produtos, mas nada disso foi capaz de mudar a minha aparência de verdade. 

Eu já começo a sentir os efeitos de leves melhorias com uso do skincare de uma qualidade um pouco maior. O brilho da minha pele oleosa está mais controlado, meus poros diminuíram consideravelmente e até os cravinhos estão menos aparentes. Algumas técnicas me ajudam a esconder um ou outro detalhe mas é só isso, nada se compara com aquela maquiagem fabulosa onde, mesmo depois de muitos produtos, os meninos ainda ficam com uma aparência natural, como se todos tivessem saído do panteão dos deuses menores e caminhassem no meio de nós. 

E então, ao ficar revoltado com o resultado disso eu percebi que na verdade a minha resposta inicial não estava errada, mas estava incompleta. É que eu uso maquiagem sim para me parecer mais bonito como eles são, mas eu quero parecer com eles porque em realidade eu me odeio, e eu me odeio de tal maneira que prefiro ser visto como esquisito que usa lápis de olho e blush vermelho num grupo onde até as meninas já abandonaram esses produtos, porque prefiro ser visto como qualquer outra coisa do que como eu mesmo. 

No fundo, só fica a vontade de ser aquilo que eu nunca poderei ser: alguém bonito, alguém desejável, alguém que não ficasse ofuscado pela beleza medíocre de qualquer mulher, alguém para quem os homens olhassem. Mas esse alguém só pode ser alguém que não sou eu. 

Todos eles encontram carinho no mundo, todos querem lhe dar amor, e o meu amor se derrama,  como deve se consolar em saber que ninguém me pode corresponder? 

Aquele jovem acólito me olhou bem quando entrei mais cedo na igreja, e logo desviou o olhar, não tornando a me fitar nem por um instante durante toda a missa, e eu entendi, e me virei, e saí rapidamente ao "Ite missa est" sem olhar para atrás, sem forçá-lo olhar para mim mais uma vez. Como se fosse algum tipo de monstro, como se fosse tão imoralmente feio que nem sequer deveria sair de casa. E todos os dias eu me olho no espelho e penso que poderia ser qualquer outra coisa. Um Narciso que odeia o próprio reflexo, e que avança furioso para destruir a si mesmo. 

Pelo menos aqui sozinho no escuro ouvindo a chuva eu não preciso me preocupar com o nojo de ninguém. Ninguém me vê gordo e suado. Sou apenas eu e a música baixinha abafada pela sinfonia no asfalto e nos telhados de cerâmica.

Como as pessoas conseguem? Chegar ao fim do mês com algum dinheiro pra pedir uma pizza que seja. Não ficar exausto por interagir com outros por duas horas. Ter algo pelo qual lutar, que te faça ter vontade de levantar da cama todo dia.

Eu só queria saber como é não se sentir tão sozinho. Estar sozinho é diferente de se sentir e eu me sinto sozinho o tempo todo e como se fosse eu contra o mundo. Sim... Era só saber como é estar na mesma página que alguém uma única vez sequer.

~
Imagem: Narciso, de Caravaggio

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