terça-feira, 16 de maio de 2023

Café Forte

Quando vi uma foto dele eu resolvi novamente puxar conversa, pela centésima vez, e pela centésima vez obtive uma resposta quase monossilábica, e é sempre assim.

Deitei por alguns instantes numa espécie de almofada gigante que tem na minha sala, olhei mais uma vez para a foto dele e fechei os olhos enquanto ouvia pela segunda vez nessa tarde o inicio da Sonata para Piano N° 8 do Beethoven. Algo naqueles arpejos me fez subitamente sentir uma inflamação no peito, e minha respiração se arfou. De repente eu senti uma enorme vontade de dizer tudo a ele, de dizer o quanto ele mexe comigo e como meu coração fica inquieto sempre que penso nele por mais de dois segundos. 

Tomando a expressão do poeta eu preciso contar que essa febre luxuriosa me deixou, na horrorosa avulsão da forma nívea, desejoso de dizer palavras de lascívia. Palavras não, gemidos, muitas vezes desconexos, nomes sussurrados, coisas que jamais seriam ditas não fossem as pernas e braços abertos e entrelaçados, os membros rijos e lubrificados de suor e cuspe, entrando e saindo de vários lugares ditando o ritmo dos lábios que se apertam e do arfar das respirações que tentam juntar-se em sintonia. 

Cheguei até mesmo a me preparar para dizer quando me ocorreu que isso não mudaria nada. Ele provavelmente me dispensaria de um jeito educado e eu nunca mais falaria com ele, ou talvez continuasse puxando assunto, e recebendo uma resposta vazia, por alguns meses antes de desistir e voltar a pensar nele algumas vezes em momentos aleatórios, sem que ele nunca pense em mim em contrapartida. 

Então eu abri os olhos e fitei o teto, as vigas de madeira visíveis, e respirei fundo tomando consciência do meu corpo, dos meus pés largados de qualquer jeito, e não disse nada, engolindo cada palavra e as despejando aqui em forma de lamento, onde sei que ele jamais vai ler. 

Só o que posso fazer agora é esperar que a sonata termine, pegar uma xícara de café e esperar que tudo passe... Tornei-me mais um desiludido do amor. Talvez notem as minhas vísceras apaixonadas quando eu finalmente parar de respirar e nunca mais suspire, pela minha sorte ou por homem algum. 

O café vai ter de ser bem forte.

~

Imagem: Coffee, 1959 - Richard Diebenkorn.

2 comentários:

  1. A arte de poder escrever e compartilhar segredos íntimos a desconhecidos ( ou simplesmente ao universo) é a característica de maior interesse e fascínio da escrita. O teor autobiográfico e o sentimento de cumplicidade que de maneira inevitável o autor passa, é o que mais me agrada nela. Não precisa ser bem escrito ou rebuscado; o texto autobiográfico passa aos leitores algo que nenhum best seller efêmero de livrarias passa: intimidade em um mundo de impessoalidades. Parabéns por ter a coragem de expressar , mesmo que às escondidas , sentimentos genuínos e sagrados à luz da literatura.

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    1. Obrigado, fico realmente feliz em saber que outros partilham desse meu fascínio por mergulhar nos universos particulares, no meu próprio universo.

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