quinta-feira, 4 de maio de 2023

Duas cenas que se mesclam

Não sei se estou assim por causa de mais uma ciclagem, ou se estou cansado por noites em que não dormi direito, ou pela demanda extra no trabalho, ou talvez todas essas coisas juntas. Mas a minha cabeça dói e, se fecho os olhos, gira lentamente sem parar. Meu coração está inflamado de amor, em ânsias, como eu te disse quando me perguntou, e isso definitivamente é verdade. Talvez eu melhorasse se pudesse me deitar em seu peito e sentir o cheiro da sua pele, tocando as veias de seu braço ou apenas apertando seu torso contra mim, sentindo seus lábios em meus cabelos e apenas o som do ventilador a acalmar o calor e a nossa pesada respiração nesses dias de fim de verão.

Meu Bom Jesus que tudo podeis,
humildemente te peço uma graça.
Sarai-me, Senhor, e não desta lepra,
do amor que eu tenho e que ninguém me tem.

(Carlos Drummond de Andrade)

Duas cenas se mesclam nesse ponto do meu pensamento. Na primeira delas dois amantes estão deitados, um por sobre as costas do outro, depois de foderem intensamente, conversando sobre o que os levou até ali. O que está por baixo diz, entre os beijos e a respiração arfada do outro em sua a pele brilhante de suor na luz quente do quarto que, como sua vida é horrível ele merece alguns bons momentos. O moreno diz que se sente feliz por ser algo de bom na vida do outro, e aperta sua mão com carinho e desejo. O outro percebe que ele na verdade o ama tanto que só quer, acima de tudo, que ele seja feliz?

A outra cena sou dizendo a mim mesmo, numa sala escura onde apenas o meu reflexo é visível, que não adianta nada tantos livros, tantas aulas se, no fim do dia, tudo o que você queria era sentir o corpo dele pressionado contra o seu num encontro íntimo de dois seres e duas almas. "O que você deseja de verdade: a Verdade ou apenas o carinho de outro homem!" E como eu posso dizer que o carinho de outro homem é a verdade que eu quero conhecer e partilhar? Como dizer que eu poderia me jogar aos joelhos dele e implorar para que aceitasse meu amor? 

Como eu não devo fazer isso eu vou apenas dormir mais um dia, um dos últimos já que o meu limitado estoque de remédios parece chegar ao fim, e então acordar amanhã e voltar a estudar na esperança de que algo na verdade arranque de mim as raízes profundas da minha solidão e as dores do amor que eu tenho e que ninguém me tem. 

X

Tenho estado estranhamente cansado ultimamente. E nem se trata de algo relacionado ao meu Transtorno Bipolar, é mais como um cansaço físico resultante da minha péssima alimentação e hábitos. Eu chego em casa, estudo por uma hora no máximo, assisto a um ou dois episódios de alguma série com muito custo e já estou exausto. Depois disso eu adormeço antes mesmo de cair na cama. Aos fins de semana quando eu estou um pouco menos cansado tem uma punheta antes de dormir. Então, nos dias de mais tranquilidade tudo que minhas noites reservam é suor é porra. Nada mais do que isso e, embora eu continue firme estudando isso não significa necessariamente que isso seja um grande objetivo de vida.

Acho que na realidade eu não tenho um objetivo brilhante e chamativo como o da maior parte das pessoas, e isso é bom. Meu objetivo é mais sutil, passa despercebido, comigo lendo livro no ponto ou de pé dentro do ônibus, mesmo cansado mas ainda absorto na leitura, seja dos versos de Camões ou imaginando a voz misteriosa e poderosa do Kurtz de Conrad. E isso me leva ao próximo ponto.

Sabe, o amadurecer é próprio do homem, e mais especialmente do homem de estudos. A cada novo conhecimento a criança vai se tornando mais adulta, pouco a pouco os alimentos da infância já não sustentam mais o corpo que precisa fazer cada vez mais força. E não digo isso com a prepotência de quem diz que os antigos conceitos já não servem mais, é que eles fazem parte agora dos novos também, não são abandonados mas abarcados e constroem a base dos que ainda estão por vir. 

Em alguns momentos então há esse vislumbre de realidades que se tornam pouco a pouco superadas. Com relação a sincera busca da verdade eu me peguei pensando, enquanto estava no ônibus apinhado de gente, o que é mais importante? Gastar algumas centenas de reais todo mês com cosméticos ou investir isso em livros que podem realmente me ajudar em alguma coisa? E que, mais importante ainda, não são um investimento em algo tão passageiro quanto meu próprio corpo. 

Colocada nesse nível a escolha é óbvia e nem requer mais exame. Só resta superar os obstáculos que eu mesmo coloquei à minha imaginação ao me contaminar com a ideia de que o corpo deve ser perfeito. Mas, na decadência natural das coisas, e até naquelas não tão naturais assim, o corpo é de mais fácil corrupção. É ele que em alguns dias definha o que se levou anos para construir enquanto que o intelecto, até mesmo numa mente que se tornou obtusa, se marca na alma eterna de uma vez para sempre. 

O corpo precisa estar saudável para a vida intelectual, o que está em jogo aqui na minha reflexão não é isso, mas apenas a superficialidade mais aparente. Me refiro as peles viçosas, ao brilho e aqueles cuidados que se dedicam somente a limitar o retrato da idade. São esses os cuidados exagerados que identifico que podem ser um grande empecilho ao meu desenvolvimento. Desse modo a beleza imediata dos homens, especialmente aqueles que eu vejo nas séries e nos palcos, ainda me encantam de tal maneira que não consigo ver um deles sequer sem ter a súbita vontade de me dedicar inteiramente a mudar o meu exterior no afã de ser aprovado, admirado e desejado como eu os aprovo, admiro e desejo. 

Isso já mostra uma ruptura no meu centro de gravidade, uma rachadura na minha personalidade, e é nessa tensão que eu preciso trabalhar, é a partir dessas duas concepções que eu preciso buscar seguir aquela que me pode garantir algo de verdadeiro e eterno e algo que, de algum modo, embora reflita algo da beleza verdadeira é, no entanto, verdadeira apenas em si mesma, sendo acidentalmente passageira.

Claro que ainda há uma diferença grande entre dizer isso e praticar o que daí decorre logicamente, mas o fato de dizer, o que primeiro foi percebido, já mostra uma mudança no centro de prioridades do meu ser, naquele ponto íntimo que move a vontade e que realmente molda as minhas ações. É nesse centro íntimo que eu preciso começar a trabalhar. 

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