quarta-feira, 17 de maio de 2023

Obsessão


(...) Quando nos apaixonamos por alguém, a coisa funciona assim: nós lhe atribuímos qualidades, dons e aptidões que ele ou ela, eventualmente, não têm; em suma, idealizamos nosso objeto de amor. E não é por generosidade; é porque queremos e esperamos ser amados por alguém cujo amor por nós valeria como lisonja. Ou seja, idealizamos nosso objeto de amor para verificar que somos amáveis aos olhos de nossos próprios ideais. 
(Contardo Calligaris)

Ele é o meu ideal, aquele em quem penso no meio de um dia atribulado, quando não tenho tempo para mais nada e, por um instante, fecho os olhos e respiro fundo buscando forças para terminar o expediente e a imagem dele aparece, me devolvendo a força e lançando para longe o meu abatimento. 

Mas é um ideal distante, tão distante quanto o meu eu físico e o mundo das ideias, ele também está distante geograficamente mas ainda mais distante no meu coração porque, muito embora me ame, não nos amamos da mesma forma. E eu continuo suspirando por ele, e ele continua sendo a pessoa mais importante para mim, mas estamos permanentemente em páginas diferentes. 

E enquanto isso eu olho ao meu redor e vejo que todos os outros nem sequer estão no mesmo livro que eu. Cultivam suas ignorâncias como se fossem o conhecimento mais puro, destilam ódio e desprezo como se fossem os guardiões dos bons costumes que eles mesmos detestam. Eu estou perdido entre eles, com um discurso mais ou menos decorado que repito a cada um, e as pessoas vêm e vão, eu me despeço de todas elas e preciso ficar constantemente atento para não me contaminar com as suas convicções aprendidas da mídia e repetidas como verdades evangélicas. 

Se volto meu olhar para meu interior até encontro nas palavras de meus mestres o conforto e a realidade que tanto tentam roubar de mim, mas também o encontro, e então percebo que ele já faz parte de mim. Mesmo sendo só um ideal que eu mesmo criei para me destruir.  

Quanto mais eu penso nisso, quanto mais fecho os olhos, mais eu sinto meu coração bater forte, as fibras do meu corpo se revirarem, meu estômago sentir o bater de asas, e eu percebo que estou obcecado por esse amor. 

E que ferramenta tenho eu a não ser encher a cara ou dormir para não sonhar acordado? Para onde posso fugir se ele não sai de modo algum da minha mente? 

Ele não me ama do mesmo jeito. As expectativas criadas são todas frustradas, uma a uma, sem exceção. 

Buck estava certo, o amor é um cão dos diabos. 

3 comentários:

  1. Como é bom perceber que quando o amor nos acerta em cheio, a escrita vira recorrente em nossa vida, engraçado notar isto em seu blog. A arte do amor platônico, cheio de idealizações, traz-nos a brutalidade da falta de vitalidade da vida; não vivemos sem amor, padecemos e nos destruímos rapidamente, mas sem a vida, consigo viver sem ela? Poderia afirmar que em momentos de demasiado romantismo, trocaria facilmente toda minha trajetória de vida por um afago do ''objeto'' amado, sem dúvida alguma. Talvez seja o atestado da falta de lucidez e de loucura em que este ''simplório'' sentimento nos deixa. O amor é um cão dos diabos, mas é um cão que recorrentemente deixo entrar em minha casa, alimentando-o, acariciando-o, e fazendo qualquer coisa que o deixe no seu estado de maior conforto. Por psicanálise, todo excesso demonstra uma falta, e acredito que todo o excesso de romantismo de seu estado, seja a profunda falta de um amor correspondido, verdadeiro e capaz. De qualquer forma, um brinde à boêmia e ao romantismo, antes padecer por amores, do que por temores ( caso não seja a mesma coisa.)

    ResponderExcluir
  2. E quem teve um único amor platônico? Faz alguns bons anos, ainda não pensava em botox preventivo, ou em qualquer baboseira moderna. Ele era 16 anos mais velho - um bom começo - e eu, extemporânea como Nietzsche , lia Dostoiévski demais, e achava que esse negócio de idade era ''nada a ver''. Ele era baixista de banda ( e office boy, ou algo assim), o típico roqueiro brasileiro: cabelo longo e seboso, apenas com camisa de banda no armário, e sem um puto no bolso. Eu era apaixonada; fui em show no meio do mato, enfiei-me onde tive - e não tive- coragem, e morria de amores. Ele nunca soube, obviamente. Mesmo com os anos passados, ainda sinto seu nome no peito, o cheiro dos momentos de extremo desespero, e do bom vinho que entrou em extinção. De qualquer forma, fica o relato para o autor do blog não morrer na profunda solidão de um amor não correspondido. Todo mundo sofre, mas sempre digo: Amor Fati, amor ao destino, seja bom ou ruim. Afinal, é melhor uma felicidade barata ou um sofrimento elevado? (os rastros de Dostoiévski em mim, hahaha)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Nossa, e isso me cai como um golpe de martelo (no sentido mais construtivo da expressão que nesse momento me remete ao martelo de Mahler) e então me sinto sim mais tranquilo em saber que outros corações também se inflamaram de amor assim. São essas experiências íntimas que muitas vezes nos dão o tom da existência.

      Excluir