quinta-feira, 11 de maio de 2023

Paráfrase

Não creia que a dor foi aqui maior ou mais verdadeira que a ira. Foram iguais em si mesmas, as consequências é que se diferenciam. Da ira nada decorreu, mas da humilhação eu me derramei em lágrimas, pesadas e quentes. E, contudo, não me faltou um ímpeto débil em estrangular aquela garota, colocá-la sob meus pés, arrancar seu coração com meus próprios dentes. Acredite quando digo, a parafrasear Machado de Assis nesse parágrafo inteiro: existem tiranos de intenção! Na alma desse homem passou um tênue fio de Calígula e mais do que algumas gotas de Nero. 

X

Não pense que não o amo com amor eterno e verdadeiro, mil juras não poderiam expressar o que eu sinto, mas mesmo que fale daqueles belos rapazes eu sacrificaria todos os outros homens do mundo por um abraço teu, por instantes perdido nos cantos de seus braços, segurando suas mãos com força. Eles nada são para mim além de figuras bonitas, sim é verdade, mas apenas figuras etéreas que desaparecem na minha memória como fumaça ao vento tão logo passa outro ônibus ou outro dia torne a findar. 

X

Tenho tentado não pensar muito, mas o fato é que muitos dias eu vivo apenas em algum tipo de modo automático. Acordo, tomo banho e vou pro ponto de ônibus, trabalho o dia todo, tentando não prestar atenção a banalidade do ambiente que me rodeia e volto pra casa cansado. É uma constatação ruim perceber que os únicos momentos de brevíssimo prazer na vida são alguns episódios de série e uma punheta rápida antes de dormir, não posso me demorar muito porque no outro tenho que levantar cedo de novo.

Me chamaram para ir ao cinema e comer uma pizza, além de não ter dinheiro eu também não tenho disposição, mas eu me obrigo a ir assim mesmo, para tentar me livrar um pouco dessa névoa que me embaça a mente, pra ver se meu corpo reage de algum modo. Assim como alguns dias eu caminho na beira do mar, é apenas pra ver se obrigo meu corpo a reagir, pra ver se me liberto do torpor de sempre.

Eu me forço a fazer isso, sorrio e converso, conto até bem mais do que deveria sobre mim, mas acabo sempre voltando pro vazio, e as pessoas notam, notam como eu carrego, entre um sorriso e outro, o olhar indolente de um idiota. Em algum momento da minha vida, e não me lembro de ter feito isso de modo consciente, eu aprendi a sorrir sempre que falassem comigo, e então passo essa imagem de tranquilidade e afeto, e de fato dificilmente não crio algum carinho pelas pessoas, gosto de tratar todo mundo bem mas, isso faz com que elas não percebam que, na realidade, isso é apenas uma máscara grossa demais para que vejam o homem apático por detrás dela. O fato de conseguir me comunicar bem também conta em favor disso. Eu sorrio enquanto gostaria de apenas de olhar fixamente e em silêncio para tudo ao meu redor. 

É como acordar e resolver passar um café e perceber que está sem filtro, sem café, sem amigos, sem perspectiva de vida, sem vontade de viver, todas essas coisas. Acho que o único momento em que algo assim transparece de verdade é em dias assim: em que apenas o vazio se manifesta na opacidade dos meus olhares negros e frios como a imensidão desconhecida do cosmos. 

Mas não pense que é uma simples reclamação, isso é um grande exercício autocrítico que me faz querer buscar cada vez mais a aquela verdade, tantas veze esquecida mas que, ao fim do dia, continua sendo o único objetivo que parece me conduzir a algo: a busca da verdade. E o mais que faço não vale nada, até porque eu não sou muito mais que nada. 

E que mais eu poderia fazer? Poderia achar no outro algo que me completasse? Ou tudo que nos completa é apena é um grande amor, e eu não posso ser esse amor para ele. É só mais um desfecho melancólico de um amor que eu serei obrigado a transbordar em cinzas. 

Me obriguei a ficar acordado e sóbrio o dia todo, ecoando as palavras da minha mãe de que deveria fazer algo, que deveria ficar acordado e aproveitar o dia de folga, e então eu tentei, procurei por uma nova série e me obriguei a entrar na sintonia do que ela dizia, mas foi tudo em vão. Agora, ao fim da tarde, quando o céu começa a escurecer ainda mais depois de um longo dia nublado, eu só consigo sentir ódio, como se tivesse sido convocado pela tuba gloriosa para o dia da ante o trono. Só consigo sentir cada fibra do meu ser se consumir em fogo do inferno e cinzas pela existência miserável, patética. 

E a maldita fiscalização me impede de comprar os remédios que poderia me fazer dormir e não sentir esse ódio porque estaria apagado na cama, esperando o despertador tocar para retomar mais uma semana de trabalho. E eu sinto ódio por ter suportado um dia infinitamente incômodo onde cada farfalhar das folhas do jardim vizinho e onde até mesmo o volume da televisão me incomodou, e eu queria lançar ao chão os vasos de vidro que estavam à minha frente, esperando que seus cacos destruíssem também o meu peito e que eu pudesse desaparecer com a mesma facilidade com que eles se quebram. 

Viver é uma droga, mas morrer também é uma droga porque envolve o mesmo cansaço que viver. E eu só queria mergulhar na desesperança de voltar ao nada. E isso não é poesia, é apenas o gemido de um homem abatido, abatido demais pra se manter acordado. 

Termino então com um trecho de Cecília Meireles que reflete bem a melancolia profunda desse dia:

"Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. 
Não sou alegre nem sou triste: sou poeta.
Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento.
Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, – não sei, não sei. Não sei se fico ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa rimada. E um dia sei que estarei mudo: – mais nada."

Cecília Meireles

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Imagem: São Jerônimo escrevendo, Caravaggio.

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