terça-feira, 23 de março de 2021

Dies Irae

"Saturada de males se encontra a minh’alma, minha vida chegou junto às portas da morte. Sou contado entre aqueles que descem à cova, toda gente me vê como um caso perdido!"

Cansado. Não, essa não é a palavra certa, eu estou exausto de tudo e todos, nem meu corpo e nem a minha mente aguentam mais esse suplício constante que é viver nesse inferno, e meu inferno são os outros. Me encontro no meu Dia da Ira, aquele dia, que todo meu ser se consome num fogo de ódio até se transformar em cinzas frias. Não, eu não estou apenas cansado, estou no meu limite, a beira de um colapso, como um navio prestes a afundar num ponto remoto do oceano que, num ímpeto de superioridade quase divina, o engole sem deixar vestígios. Assim meu sentimento, esse rancor que há muito se acumula, vem me engolindo, me abarcando e envolvendo de tal modo que, como o fogo que converte tudo em fogo, vai transformando cada fibra do meu corpo em puro ódio. 

Estou cansado de fazer o meu melhor, de me esforçar e ainda assim ser tratado como se não fizesse nada, sem consideração alguma, cansado de ser tido como um estorvo durante todo o tempo que não precisam de mim, mas que tão logo precisam, amansam a voz e me procuram com um sorriso amarelo nos lábios. Falsos, monstros. Quero distância ou, se não for possível, apenas ficar perto o suficiente para ouvir os gritos desesperados de dor enquanto são destruídos pelas chamas da ira que eles mesmos ajudaram a despertar. 

O que pensam que eu sou? Alguém que apenas vive para tentar satisfazer seus caprichos, como um escravo ou uma concubina? É só isso, eu devo fazer as suas vontades como um cãozinho que recebe os afagos do dono quando devolve a bolinha que jogaram longe?

"Moribundo e infeliz desde o tempo da infância, esgotei-me ao sofrer sob o vosso terror. Vossa ira violenta caiu sobre mim e o vosso pavor reduziu-me a um nada!"

Já há muito minha forma de relacionar com o outro se baseia na paciência, em tentar compreender as dificuldades e limitações, em tentar ajudar sempre que possível, mas todos estão apenas usando isso como forma de me humilhar, de querer que eu as sirva, o que seria nobre de minha parte se eu não estivesse me matando e ainda sendo obrigado a ouvir as risadas malignas, metálicas como as do demônio, pelas minhas costas, como se eles todos se divertissem com meu esforço.

Após a Titanomaquia os Titãs, em suas existências colossais foram condenados aos mais terríveis suplícios pelos deuses. Cronos fora amarrado ao Templo de Pandora e forçado a vagar sem rumo no Deserto das Almas Perdidas. Ele, que um dia fora o maior de todos os Titãs, agora apenas serve ao deleite de seu filho, que se regozija em vê-lo sofrer diariamente, sem esperança de libertação nem mesmo pela morte, haja vista que sua vida não tem um fim natural e, mesmo quando parecem morrer eles permanecem como uma sombra do que um dia foram, numa existência perene tão ou mais sôfrega do que aquela imposta pelos olimpianos. 

Os Titãs, no entanto, haviam perdido a guerra, e Cronos devorara todos os seus filhos antes de ser destronado por um deles. Cronos recebeu a paga devida pelos crimes cometidos em nome do medo que tinha de perder o seu trono como Governante de Todo o Mundo. Mas e eu, que pecado eu cometi que fosse tão grande a ponto de ser obrigado a viver como humilde servo de humanos tão baixos e imundos quanto eu? Somos todos iguais, então por qual razão eu deveria suportar calado as humilhações descabidas, como se tivesse cometido algum erro? Só estava fazendo meu trabalho, só estava dando o meu melhor que, aliás, é melhor do que aquilo que os outros sequer fizeram. 

"Todo dia me cercam quais ondas revoltas, todos juntos me assaltam, me prendem, me apertam. Afastastes de mim os parentes e amigos, e por meus familiares só tenho as trevas!" 

Não quero mais servir a ninguém. Só quero fazer as coisas certas, de modo a tentar melhorar até que fique de algum modo feliz comigo mesmo. Mas não quero a aprovação deles, pelo menos não de todos eles. 

Alguns eu gostaria de fazer feliz, alguns eu gostaria de agradar, mas apenas se isso os fizesse me notar, me enxergar como alguém de verdade. Mas não importa o quanto eu tente, não importa o quanto eu me esforce eles só percebem o que eu posso fazer, mas não em enxergam. E quem eu sou de verdade? Quem eu vejo ao me olhar no espelho? 

Eu só alguém que, perdido no mundo, tenta compreender um pouco a realidade que me cerca. Estou perdido mas tentando me orientar de algum modo. Mas eles não enxergam isso, e eu deveria relevar as pequenez de suas mentes que não se importam com nada disso. No entanto, eles me tratam como lixo, um nada. Comtemplar a minha imagem no espelho é ver um nada, eu vejo um homem destruído por uma ira violenta, sequer reconheço o que sou, um homem, besta, fera? Esgotado sob o peso que joga sobre mim. 

Gabriel refaz isso, compra aquilo, isso não tá bom, isso pode melhorar. E ninguém pensa no quanto deve ser difícil pra mim, ninguém sequer considera que o que eu faço, é meu melhor. E eu não posso fazer mais do que lamentar que o meu melhor não seja suficiente. O meu grito de desespero não é ouvido por ninguém. 

"Moribundo e infeliz desde o tempo da infância, esgotei-me ao sofrer sob o vosso terror. Vossa ira violenta caiu sobre mim e o vosso pavor reduziu-me a um nada!" 

Infelizmente o que me resta agora é apenas o ódio. A vontade de sumir, não apenas ir para outro lugar mas de desaparecer completamente, de sumir sem deixar vestígios e deixar que se virem, que se lasquem. Não para prejudicar o santo serviço da igreja, mas para que aprendam que na dificuldade nem sempre conseguimos corresponder aos desejos dos outros, as vezes tudo o que podemos fazer é o nosso melhor, ainda que pareça insuficiente, ainda é o meu melhor. 

Só lamento que meu melhor não seja suficiente para quem eu amo. Que ele não me note mais do que como um conhecido eventual, que ele percebesse a singeleza do meu sentimento mais genuíno. Eu só queria, afinal de contas, sem bom o suficiente para ele, e que todos os outros se explodam. 

Daí o meu Dies Irae, a destruição de tudo, do tudo que retorna ao nada, de todos os seres inferiores sendo destruído, sendo reduzidos a sua insignificância que eles disfarçam de arrogância tremenda. A esses o meus mais profundo desprezo e desejo que de sofram, não por minhas mãos, mas que recebam da justiça divina a paga devida pelos seus desvarios, pelos seus devaneios de grandeza. 

Mas o meu Dia da Ira sempre se volta contra mim, é sempre em meu corpo que se abrem as feridas de ódio, é sempre meu corpo que escorre finas linhas de sangue, é sempre dos meus olhos que escapam as lágrimas. E eles nada sentem. A saúde mental de todos é colocada em primeiro lugar mas, quando eu faço isso, estou sendo preguiçoso, sou culpado, não merecedor de clemência. Tudo o que posso fazer é vagar e meio a uma terrível tempestade, sendo atingido pelos golpes violentos do destino que tentam me destruir completamente. E isso não me entristece, pelo contrário, apenas me faz desejar receber com todo o impacto a força do golpe do martelo de guerra, ser destruído e desaparecer, pouco a pouco, após as últimos acordes descendentes dessa sinfonia trágica. 

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*Citações em itálico do salmo 87 (88), versão das Completas da Liturgia das Horas.

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