sábado, 15 de abril de 2023

A Morte Como Possibilidade


A morte tem um simbolismo muito profundo que muitas vezes é ignorado: já não se tem mais em mente que ela é uma realidade comum a todos nós, que todos vivemos num mundo de pessoas que já morreram e que todos nós vamos passar por ela um dia. 

No cristianismo a morte é vista como passagem, desta vida corporal para a eternidade, não sendo um ponto final mas, ao contrário, um ponto de partida para uma realidade infinitamente superior. A morte é, essencialmente, possibilidade. Isso explica o motivo de a morte ser vista com tanta desconfiança e até mesmo ser ignorada em nosso tempo: as pessoas tendem a ignorar o estado de possibilidade universal. Possibilidades demais deixam a todos meio aturdidos, e isso é facilmente constatável no clima constante de ansiedade da nossa época, tendo como um dos fatores as tão numerosas possibilidades. 

Como professor vejo diariamente os alunos em crises ansiosas diante das possibilidades que se abrem ao seus futuros. Qual curso ou carreira seguir, que decisões tomar, o que fazer no ano que vem faz com que as pessoas nem sequer consigam imaginar o que devem fazer no minuto seguinte. Se ficamos assim, tão boquiabertos diante das possibilidades do amanhã, tanto mais ficaremos diante da possibilidade eterna que a morte nos proporciona, isto é, a possibilidade de abertura para o infinito e eterno. Isso nem mesmo é mencionado por ninguém e já não se fala disso nem mesmo no meio da própria cristandade, senão que a religião tornou-se apenas um reduto de moral kantiana. 

Hoje eu vejo a vida por meio de lentes mortas. Eu não me sinto como alguém que vive em busca de nada mais, antes disso, se me considero morto, me abro a toda experiência que se pode apresentar. Posso dizer isso ao olhar ao meu redor com pequenos exemplos. 

Me mudei de Valparaíso para Joinville sem nenhuma perspectiva real: eu já não conseguia ser ninguém lá e por isso ao chegar aqui qualquer coisa que aparecesse seria lucro. O resultado é que logo consegui um emprego e aquele torpor em que fiquei mergulhado por dois ou três anos deu lugar a uma ação que eu já nem era mais capaz de imaginar. Sinceramente eu não achei que seria capaz de tomar três ônibus todos os dias e conversar com turistas do país inteiro sobre obras de arte. 

Agora algo ainda mais intimista: em Goiás me sentia aprisionado naquela selva de concreto formada por muros de dois metros de altura e casas sem nenhuma perspectiva estética, era tudo feio e disforme, desesperador, e eu perdi a conta de quantas vezes eu me deprimi simplesmente por olhar pela janela. Aqui as casas são mais ou menos parecidas e mesmo que eu viva em um bairro que não é nada nobre, ainda tem mais espírito do que todas as ruas de onde morava antes. Um outro diferencial é que aqui eu tenho um genuíno prazer em simplesmente me sentar na sacada e tomar um vinho ou cerveja observando a rua, essa ideia não me causa repulsa. 

Por mais que a casa esteja apertada e que a minha família insista em não decorar nada e apenas entulhar tudo eu continuo tendo uma visão morta de tudo isso, uma visão aberta as possibilidades, mas sem esperar nada em realidade, sem colocar uma expectativa e, por isso mesmo, incapaz de me decepcionar mas ainda capaz de me surpreender. 

Transpondo então os exemplos e modificando as proporções, tanto mais é possível abrir-se a possibilidade universal a partir do momento em que se acolhe as pequenas e as grandes mudanças, tomando então um realismo, que nada tem de desesperador que é a forma como as pessoas normalmente enxergam a morte: saber que vamos morrer nos dá a ideia de que devemos viver sem deixar de ter isso em mente e perceber que ela muda a perspectiva de tudo mais, sendo que problemas e até prazeres ganham novo significado, muito diferentes se pensados do ponto de vista temporal e limitado e do ponto de vista da eternidade. 

A própria busca pela verdade ganha nos ares se pensada no plano da eternidade: a Verdade é a eternidade e a busca pela verdade é a abertura total, por meio da contemplação amorosa da realidade, isto é, da aceitação do mundo que nos rodeia mas do não fechamento nele, na consciência constante de que há sempre algo maior para além dessa vida, algo que não a exclui mas que a compreende e a barca infinitamente. 

2 comentários:

  1. A transitoriedade e suas nuances. De fato, tal percepção só é possível sob um processo de evolução constante. Ótima reflexão.

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