quarta-feira, 5 de agosto de 2020

No espelho

As vezes a imagem que vejo no espelho me choca. Custo acreditar que sou eu mesmo a me fitar, com olhos alucinados, o reflexo. Não sou como o Narciso que se apaixonou pela própria imagem que se mostrou na fonte, antes disso, a reação que me aparece é de ojeriza, um horror que me toma o ser ao ver esses olhos escuros e profundos como um abismo. 

Eu me vejo, muitas vezes mas especialmente em dias como esse, como um animal. O cabelo desgrenhado, desde que cortei ainda sem uma forma definida, a barba longa, com falhas em algum ponto, crescendo sem limites em partes do rosto que não deveria crescer. As sobrancelhas unindo-se no cenho. Há dias que não faço a barba ou tiro o excesso de pelos no rosto. E quanto mais me olho no espelho, menos tenho vontade de me cuidar. É um ciclo vicioso. 

Tenho sido disciplinado, no entanto, com os cuidados faciais. Duas vezes por dia lavo o rosto, hidrato com meia dúzia de cremes, séruns e pomadas e, ainda assim, parece que a cada dia eu estou pior. As olheiras não diminuem, o cansaço parece se mostrar com mais peso, puxando para baixo cada fibra de meu rosto. Meus olhos estão frios, já não vejo traços daquela galáxia brilhante de outrora. Parece que os cuidados externos não são suficientes se no interior tudo parece desandar. 

Olhando bem de perto cada pequenino defeito do meu rosto eu consigo entender a resposta que dei para aquela pergunta que meu amigo fez outro dia: como posso ainda estar só? Acontece que cada pequeno poro dilatado, cada pelinho fora do lugar, tudo isso grita ao outro não apenas um exterior definhando, mas um interior já apodrecido. Ninguém há de querer aproximar-se de alguém que, virtualmente, já desistiu de viver, e que vive um dia após o outro apenas para não decepcionar, ainda mais, as poucas pessoas que ama. 

Jã não vejo figura humana, senão que vejo um monstro a gritar numa grande careta de ódio, de desespero e ânsia de algo que nem mesmo ele sabe o que é. Vejo algo que já foi humano, mas que agora é mais monstro do que homem. Uma fera, a fera que gritou EU no coração do mundo, e que agora grita pela própria existência prenunciando a própria extinção. 

De que adianta uma inteligência acima da média (segundo eles). De que adianta despojamento e estilo próprios se, na realidade, me falta disposição para levantar da cama e pegar água? De que adianta ser engraçado (novamente, segundo eles) se por dentro tudo o que eu sinto é um vazio imenso, um niilismo absoluto que me fez perder toda e qualquer perspectiva de vida? 

É aquela história da máquina de refrigerantes com a plaquinha dizendo "a luz de dentro apagou mas eu ainda funciono." É exatamente isso que acontece comigo. Estou funcionando no automático. Acordando e ligando as coisas não por vontade própria, mas porque é isso que tenho que fazer. E assim eu vou vivendo, um dia após o outro, sem que nada possa fazer brilhar novamente a luz que se apagou dentro de mim. E isso não é vida, é um arremedo. Apenas subsisto para que alguns poucos não sofram tanto com meu fim. Não quero que minha mãe sofra, já que a outra filha já consegue sozinha esgotar toda uma cota de desgostos para duas ou três vidas. Não quero que ela chore por mim. Mas enquanto isso, eu continuo, vagando por aí, etéreo, lúgubre, sem destino, apenas uma casca vazia, um sopro do que um dia já fui. Uma boneca de trapos, que vai de um lugar a outro sem vontade própria. 

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