domingo, 2 de agosto de 2020

A pior coisa

A verdade é imposta ao ser, é soberana, não permite fugas, muito embora permita ser mascarada. Não pode ser negada completamente, senão que sendo negada na esfera social ela continua sendo percebida na esfera real, ainda que a pessoa já esteja tão viciada em cacoetes mentais, vícios de linguagem, que não consiga mais expressar essa verdade, mesmo que ela esteja perdida numa língua viciada, nos pensamentos de alguém que já nem sabe quem.

"Eu sou a pior coisa que poderia acontecer na vida de alguém."

Ainda que superposta de palavras doces ou de negação essa afirmação continua sendo verdadeira. E o que a torna verdadeira? Não é uma construção lógica, ou um argumento ontológico, mas uma experiência real, que mesmo na esfera puramente argumentativa pode ser contestada mas na realidade é tão verdadeira quanto os rasgos dos nervos e músculos causados pelo aço frio de um inimigo, cravado com força no peito. 

Ela se prova na experiência real, não no mundo dos entes de razão de segunda intenção. Ela se prova nas palavras mesmas daqueles que tentam impugná-la. E o que a torna tão real? Todos colocam um limite a minha presença, esse limite é a linha que separa o melhor do pior, é aquilo que está entre a palavra dita e o verbo vivido por cada um que já esteve em contato comigo. Se prova e se torna real nos olhares, nos reflexos de negação, na ojeriza, no horror, na distância. E mesmo não fazendo nenhum sentido do ponto de vista lógico ou racional, ela ainda é mais real do que qualquer silogismo aristotélico, tão visível quando uma montanha, tão palpável quanto uma rocha, tão destrutiva quanto a lâmina mesma que resga a carne e rompe a alma numa constatação gélida como aço frio. 

O que mais pode provar essa afirmação? 

Estou escrevendo essas palavras na solidão do meu quarto, numa noite escura e fria, enquanto alguns me abandonaram, outros me trocaram pela pior companhia possível (o que por si só já validaria essa afirmação) e outros tentam impugnar a razão com argumentos vazios, ao passo que algo dito a partir da realidade só pode ser contestado pela mesma realidade em que está. E a constatação que me permite essa realidade é justa e simplesmente essa. A realidade grita, de uma forma impossível de não se ouvir que sim, eu sou a pior coisa que poderia acontecer na vida de alguém e a maior prova disso é que todos só me aceitam por perto até certo ponto, ao passo que me rechaçam na primeira oportunidade, que me empurram para longe. 

Seus braços, lábios cerrados, são mais verdadeiros que as palavras de seus lábios. Assim como a palavra 'cão' não morde também o amor simplesmente dito não ama, senão que busca apenas mascarar a verdade que, uma vez mascarada pode ser disfarçada, mas nunca deixa de ser ela mesma uma realidade soberana, constatada nem que seja no mais íntimo do ser, constatada no desespero humano, na doença até a morte que é a da percepção de verdade tão fria.  

As lágrimas que escorrem pelo meu rosto são tão reais quanto essa verdade. 

Um amigo me disse que não sabia qual era a razão de eu ainda estar sozinho. Disse que me achava bonito e inteligente ao ponto de alguém se interessar sim por mim. Mas a resposta a esse questionamento está numa decisão do destino mesmo, em algo que não posso provar por meio de argumentos mas que a própria experiência mostrou a mim de modo inegável: o destino não quer que eu conheça a companhia. A conheço apenas por analogia, apenas pela concepção de que não é isso que vivo e que, portanto, vivo apenas aquilo que o destino reservou para mim, do alto de seu trono onipotente: a solidão total. Mesmo rodeado de amigos e parente, condenado a ser sozinho, o único entre os pares. Aquele destinado a viver o que lhe reserva o girar da roda do destino, aquele a quem o mesmo destino cravou com força sua espada caída do céu. 

"Porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não teriam uma segunda oportunidade sobre a terra."

Monstro, aberração, arremedo de ser humano condenado a vagar pela terra sem achar companhia, sem ter onde reclinar a cabeça. Condenado a viver para sempre, impossibilitado de voltar aquele útero primitivo, consciente do vazio que existe no coração do homem desde o seu primeiro pensamento. 

Eu sou a pior coisa que poderia acontecer na vida de alguém. 

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