quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Ode à Ingratidão

"Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige." (Clarice Lispector)

Acordei em plena manhã de ira, daquelas em que odeia-se o mundo e tudo o que ele contém. Em verdade eu não queria ter acordado, e poderia ficar ali na cama indefinidamente pelos tempos infinitos, pelos séculos sem fim, amém. Se é pra estar só ao menos que seja confortável, mas não, preciso levantar e encarar de novo uma série de obrigações que nunca têm fim.

Sinto como se tivesse uma espécie de dívida cósmica a pagar, e que não se quita enquanto não desfazemos nossa vida. Com efeito tudo o que vejo é justamente a decadência de todos, dia após dia. Uma entropia que lentamente leva todos ao colapso final enquanto o mundo permanece em sua transformação permanente. Um suplício de Tântalo.

E essa decadência se manifesta das maneiras mais diversas: na moralidade rasa que nos cobra o comportamento mais imbecilizante em nome de uma beleza social, onde se respeite quem não merece respeito algum e onde se ignora completamente coisas como a beleza real, o conhecimento e a verdade. Também se expressa nessa busca incessante por coisas totalmente vazias de sentido. 

E ainda me dizem que que devo ser grato. Sempre repetem isso. 

"Você precisa agradecer!"

"Ao invés de reclamar você tem que agradecer!"

Mas ninguém me responde, agradecer a quê exatamente? 

A ter de levantar cedo todos os dias e dissipar minha vida num esforço inútil e sem nenhuma recompensa? A lutar sem parar e sem descanso sem conseguir conquistar nada? Uma vida em que meu amor, que suspostamente deveria ser o sentimento mais belo e poderoso de todos só me serve de dor? 

De que serve essa vida? De que serve esse amor senão para dissipar essa miséria que chamamos de vida? Não deveria ele ser ao menos um alento nos dias difíceis? Um remédio aplicado nas feridas que recebemos? Um remédio aplicado às feridas do Prometeu acorrentado? Então qual a razão de esse amor mesmo doer tanto? 

Não sinto senão uma revolta, profunda, agitada como mar em ressaca, tempestuosa, em meu peito quanto tudo aquilo que é vivo e que me obriga a existir. 

Eu até consigo entender, num esforço imaginativo, esse pessoal da gratidão. Aqueles que já passaram por grandes dificuldades, especialmente financeiras, tendem a agradecer pela melhora, e estão corretos, mas enquanto eles passaram até pela miséria de não ter o que comer eu me vejo mergulhado num ambiente de miséria intelectual e moral sem precedentes, onde de cada um de nós é cobrado ser uma nova mulher de Cesar, conversar alegremente sobre nada, celebrar o vazio em taças cheias de bons vinhos...

E eu, o que celebro? Bom, eu não sei ao que brindar, não sei o que deve ser celebrado, senão que vivo com o mesmo sem vontade com que nasci, atrasado e sem sequer chorar ao ver esse mundo. Já não sentia mais do que apenas tédio pela existência. 

Claro que entro numa profunda consideração da minha realidade, o que comumente se chama de paranoia. Eu fiquei estranho por causa de uma abrupta mudança de humor e de um cansaço acumulado e que considero injustificado. Mas agora começo a alimentar justamente incertezas e cenários hipotéticos que me machucam, e fazem com que eu olhe, senão com apatia depressiva, com temor pela própria realidade. A verdade é que, sabendo bem o que é real e o que não é, eu temo assumir a verdade e me refugio nas ilusões.

o amor
que um dia foi cura
hoje provoca dor,
pontiaguda,
perfura
o coração
que te adorou.

de tudo, resta a amargura,
te amar foi a coisa mais pura
que a minha existência
já experimentou.

(Lucas Hermuch)

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