segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Os filhos da Besta

O despertar de uma fúria que se encontrava no interior obscuro de uma grande caverna, há tanto tempo adormecida que os homens já até haviam se esquecido do som de seu rugido gutural, fazendo com que pensassem se tratar de algum tipo de som natural que vinha daquela área remota e escura por onde alguns viajantes passavam, desavisados e perdidos, se surpreendendo com tamanho desfiladeiro mortal. 

Mas, ali onde ninguém suspeita, onde não parece haver nada, habita uma fera sem igual, um monstro de tamanho e fúria tão enormemente desproporcional a capacidade dos homens se defenderem que não é exagero afirmar que ali dorme aquela besta que tem o poder para devorar toda a humanidade. Ela tem uma forma humana, mas não é humana, apenas uma forma que esconde como que por detrás de uma pele artificial todo os horror que há nos vales mais profundos dos círculos do inferno de Dante. 

Aquela escuridão guarda sua ânsia assassina e que nunca cessa, esconde o seu ímpeto de matar, cravando suas presas longas bem fundo na carne, rasgando os músculos e triturando os ossos de suas vítimas, enquanto os gritos de dor e desespero o fazem ressoar de prazer e júbilo, um júbilo doentio que cresce a medida que cresce o pavor daqueles que padecem sob peso de sua enorme pata. Em suas presas corre uma substância viscosa, um veneno das feras, que ao penetrar a carne de suas caças dissolve os músculos rompendo cada fibra com violência, ao passo que, impedindo o movimento das mesmas, aumenta cada vez mais a dor que elas sentem. 

Em seus corpos pequenos e frágeis então corre esse veneno, fazendo ferver o seu sangue, que evapora no ar impregnando o ambiente de uma névoa densa, carmesim, dessa mistura de sangue e veneno, que tem o poder de atrair mais e mais vítimas. O sangue que ferve e escorre, dos olhos aos lábios, faz os homens se contorcerem em dor e agonia, e injeta neles o mesmo desejo assassino que há no coração da fera. Os seus corações batem então numa velocidade frenética, seu olhar se fixa num injetado vidrado de quem só pensa numa coisa e, correndo pelas vilas, destruindo tudo o que veem pela frente, fazem inebriar-se ainda mais o ar com o seu próprio suor, escorrendo lentamente pelos seus corpos fortes, por aqueles músculos enrijecidos, por gemidos de desejo e prazer que apenas se comprazem nos gemidos de dor, no fogo que ateiam e na destruição que causam. 

Aquele sangue que se mistura com o ar transforma os homens que passam ali num tipo parecido de fera, um tipo que também não consegue frear os seus instintos e que os torna prisioneiros de suas próprias vontades, de seus próprios desejos luxuriosos, desejos que habitam o íntimo de seus corações e que, como uma chama pequena que se verte num tremendo incêndio que a tudo destrói e reduz às cinzas, vai crescendo e consumindo, fazendo de homens bons feras demoníacas que passam os dias e noites vagando sem rumo buscando satisfazer os seus apetites bestiais, cravando seus dentes na carne tenra de suas pobres vítimas, que nada podem fazer além de gritar implorando por suas vidas miseráveis, vidas que terminam ali mesmo, jogadas ao chão em cima de seu próprio sangue misturado com a porra e o suor de seus executores que olham para aquela cena como um artista contempla, eufórico, sua obra prima, obra plasmada de suas próprias mãos, que contém a marca de sua lascívia, que guarda todo o torpor de suas ações nojentas em respirações ofegantes de quem já se entregou ao instinto daquela fera, aquela mesma que já não precisa mais sair para caçar, pois os seus asseclas caçam em seu lugar, pois o seu séquito varre o mundo atrás de sangue e da pureza de suas presas. 

Mas eles logo são consumidos por esse veneno, que rompe seu corpo e corrompe a alma, logo eles caem inertes, absortos num delírios de prazer, num orgasmo maldito cujo último suspiro de gozo é o suspiro final de uma fera, filha da grande besta, que já se consumiu em desejo tão potente, tão implacavelmente dominador que transformou todas as coisas do mundo em cinzas. 

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