quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

O que um haikai me lembrou


Li um haiku de Yataro Kobayashi (que até então nunca tinha ouvido falar) que dizia:

Vem cá passarinho
E vamos brincar nós dois
Que não tenho ninho.

Essa delicadeza do convite, a forma como a amada é tratada como passarinho, me recordou vários versos mas, especialmente aqueles que conheci na literatura carmelita, dos diálogos entre amantes. No Cântico dos Cânticos essas formas ternas de se referir à criatura amada é sempre permeada de uma ternura cândida, isso porque, mesmo que em se tratando de uma liguagem romântica, não se trata de um romantismo apenas erótico. 

É que nesse estilo de escrita a pessoa amada se torna, de vários modos, um reflexo do próprio Criador, e os carmelitas pegaram isso para si com muito carinho. Por exemplo naquele longo diálogo de São João da Cruz em que toda a Criação assiste a busca da alma pelo Amado. De uma beleza singular. Poderia sim ser lido de forma apenas terrestre, como o amor entre duas pessoas, mas alguém com a sensibilidade desse tipo de literatura vai entender que trata-se apenas de uma forma de traduzir o inefável amor divino e palavras mais compreensíveis aos homens acostumados ao amor romântico.

Mas do amor divino eu deixo aos mestres carmelitas, que o entenderam bem melhor do que eu, enquanto eu me detenho em falar justamente do amor romântico usando as palavras que eles usaram para falar do outro. Paciência. Esse pobre homem, moribundo apaixonado que sou, não entende tanto de coisas elevadas.

O que me veio à mente quase imediatamente foi justamente uma recordação daquela passagem da pequena grande Santa Terezinha do Menino Jesus ao declarar "Passarinho é o que eu sou nas mãos do meu Senhor", confessando toda sua impotência, numa demonstração de realismo existencial como poucas vezes se viu na história dos homens letrados. Ela nem sequer poderia conceber-se como um Hegel que se considerava o ápice do espírito humano. Ela confessava sua pequenez, mesmo sendo gigantesca, pois reconhecia que sozinha não havia nela nada de grande e nem louvável. E justo por isso realizou grandes coisas. Ao mesmo tempo ela também reconhece em Deus o carinho com que Ele trata as almas, e que muitas vezes nos esquecemos.

Aqui me vejo completamente nas antípodas da santa. Eu murmuro a todo tempo a pouca sorte da minha existência e teimo em não reconhecer as muitas coisas boas que acontecem ao meu redor. Num misto de gratidão obrigatória e revolta infantil eu me vejo como que sendo guiado por Deus e o Diabo, em diversas proporções. Mas não é essa a condição de todos nós?

Santa Terezinha, no entanto, sabia que sua alma aspirava mais, e nela não encontrei esse embate que há em mim. Trazia em sua frágil compleição o olhar decidido de quem sabia querer o paraíso. 

Águia não sou, meu Senhor
Dela trago tão somente o olhar
E também no coração a aspiração do seu voar

Eu, no entanto, não me vejo decidido assim, muito pelo contrário. Sou débil ave, relutante em sair do ninho, com medo das feras que rondam os campos e das serpentes que rastejam. Enquanto ela aspirava tão grande amor eu me entretenho nos amores terrenos, desejando nos homens esse carinho que apenas Deus pode dar aos seus passarinhos. E, por falar em débil ave, é em outro escrito carmelita que a débil ave confessa seu amor:

Ó Jesus se tão delicioso é desejar amar-te
Que não será então possuir, gozar o amor

Mas e eu que continuo apenas a desehar o gozar dos amores dos homens da terra, dos homens que passam, dos homens baixos que nenhum carinho sabem demonstrar em verdade, que amam sempre debilmente, parcialmente, imperfeitamente, desajustadamente, como eu mesmo amo. 

Porque ao menos isso eu reconheço: meu amor imoral, desajustado, confuso, que vê o que não existe, que apenas causa dor e confusão por onde quer que passa. O meu olhar não é o de águia, mas é olhar perdido, olhar de serpente que vê nas águias o inalcansável. 

Umas das coisas mais belas da poesia carmelita é justamente como o amor é algo que torna os amantes decididos, como ele, e apenas ele, ilumina os passos dos amantes, até mesmo nas noites mais escuras. Por isso tantas belas comparações desse amor com fontes de água cristalina, com belas árvores, escadas, montes, castelos, flores... Imagens que remetem o carinho, o amor e o cuidado. 

Mas o meu amor não é visto assim, é como algo predatório, como se eu fosse apenas uma besta que rodeia a vítima procurando devorar. Queria que meu amor fosse esse que, carinhosamente, segura o passarinho. Queria que ele fosse visto em sua plenitude, em como é desejo, anseio, de bem querer, de velar, de tornar meu em amplexos o amado... 

Ao contrário da poesia, onde o Amado sempre encontra a Amante, eu me encontro sempre sozinho.

Um comentário:

  1. Lindo e reflexivo texto.
    É bonito como os pássaros têm essa harmonia e leveza para com a natureza, do mesmo modo que sabem cantar seus amores. Eles já nascem com uma harmonia no peito e, com um pouco de coragem, cantam os seus louvores.
    Aprendemos tanto com o que é simples e singelo...

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