segunda-feira, 25 de março de 2019

Última

Sergei Rachmaninoff, Concerto para Piano N° 2, Op. 18 em Cm

I. Moderato

Amanhece, lenta e delicadamente o sol vai iluminando a bruma densa que cobre os outeiros de uma bela paisagem. Uma mansão luxuosa se ergue imponente em meio a relva esmeraldina, e numa janela do último andar alguém observa atenta e silenciosamente esse espetáculo da natureza. 

A madrugada fria e sombria, soturna escondida na névoa cálida dá lugar ao brilho alaranjado do nascer do astro. O brilho reflete no cristal fino de um copo de Whisky, já pela metade. Com uma mão no bolso ele assiste a sua vida passando diante de seus olhos naquela manhã. As pedras de gelo no copo derretem lentamente, e ele viaja, não para terras distantes, mas para um tempo distante, e este sim ainda mais belo do que estes que agora ele contempla.

O inverno já havia passado, a chuva já se fora, as flores floresciam na terra. Pelos outeiros já se iam os passos apressados do amado, saltitando nas colinas como um gamo. Sorrindo e refletindo em seu sorriso o brilho daquele mesmo sol. Antes aquela imensidão verde tinha um brilho diferente. Como pode, apenas uma pequena figura, não mais presente ali, mudar completamente o brilho do lugar? Agora aquela grama esmeralda, ainda que continue sendo de deslumbrante beleza se assemelha ao ouropel que, brilhando como ouro, não é ouro de maneira alguma. 

Aquela bruma ao se dissipar parece levar consigo os restos do tempo que passou. Olhando o sol que agora se mostra imponente no meio da manhã a realidade vem a tona com um estalo dolorido. 

II. Adagio sostenuto

Ele não quer sair. Não sente forças para trabalhar. Fechando as cortinas pesadas de seu quarto ele impede que a aquela luz lhe traga mais lembranças. Jogando pesadamente sobre a cama o seu copo agora cai ao chão, formando uma poça que faz difundir o cheiro pesado do álcool no linóleo. A imagem de um homem que, embora grande e de aparência feroz, chora delicadamente pela partida de seu amor. Molhando os lençóis alvos com suas lágrimas grossas e seu toque beirando o desespero. 

A névoa parece ter entrado com ele, se impregnando em suas roupas como fazia antes o perfume daquele que ele amava. O cheiro almiscarado incensa o ar, entorpece os sentidos e, de alguma forma, abafa os gemidos daquele que chora.

Seus soluços, a respiração entrecortada, tudo se perde em meio aquela atmosfera obsessivamente apaixonada. É como se a névoa, antes branca e pura, tivesse tornado-se vermelha e venenosa como aquele jardim de rosas diabólicas reais que circunda o santuário de Atenas. 

De repente um susto! A respiração se vai, o coração pára por um breve instante. Tudo se silencia, para novamente retornar a realidade lentamente, recobrando a consciência de que se encontra perdido naquela situação. Preso pelos tentáculos gelados de uma lembrança que lhe fere a alma como aço. Ele se levanta, atordoado, e olha confuso para a porta.

III. Allegro scherzando

Põe-se de pé, vai até a porta, olha para o campo de seu enorme quintal, e fita a pequena estrada por onde passou a carruagem que partira. Correndo então por aquelas pedras ele busca por aquilo que perdera, aquilo que deixara um buraco em seu peito, aquilo que lhe assustava desde o primeiro pensamento daquela manhã. 

Não dissera a ele para não partir. Não quisera se opor ao seu sonho. Mas assim que a carruagem sumiu no horizonte, antes mesmo do dia amanhecer, ele se arrependera de deixa-lo ir. 

E ele continua a correr. Seus pulmões protestam como se estivessem em chamas, sua garganta ferozmente destruída por uma tenaz incandescente. Seus músculos parecem rasgar-se conforme seu esforço aumenta, conforme ele cobre espaços e mais espaços daquela longa estrada, que parece interminável. 

Ao seu redor a paisagem mudara. Não há mais verde, mas apenas o cinza frio de um campo morto. O ar, seco e árido, indica que há meses aquilo deixara de ser o belo campo esmeralda de antes. Seus pés estão ensanguentados, suas roupas se rasgaram nos arbustos, as pedras pontudas ferem-lhe as extremidades. 

A sua frente surge então a figura de seu amado. Alvo, apolíneo, marmóreo, idílico. Ele apressa os passos, ignorando seu corpo que grita ferozmente contra aquilo, e então correndo cambaleante em sem fôlego em direção aquele silfo que diante dele abre os braços ele estende a mão, que faz aquela figura evaporar entre seus dedos, enquanto ele cai, já inerte ao chão, fazendo escorrer naquela terra seca uma última lágrima de pesar. 

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