segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Expressão Contemplativa

Foto: Igor Murilo, 2023

Tive de lutar contra alguns pensamentos intrusivos que insistiam em se tornar um amálgama com outras imagens que apenas compunham um panorama visual distinto. Aliás, panoramas visuais são uma excelente forma de relacionar ideias aparentemente distintas e desconexas entre si. num elo causal. Um esforço mental pode sem bastante enriquecedor em relacionar, por exemplo, a atmosfera de insegurança que dominava a Europa antes da Primeira Grande Guerra, com o formato romântico da Sinfonia N° 1 de Mahler, combinando elementos muito díspares a princípio, como um relacionamento fracassado do compositor, seu fascínio com grandes histórias e o ambiente da época.

Com efeito, Mahler tinha essa fascinação por grandes feitos, grandes proporções. Em suas obras encontramos personagens e referências a grandes passagens da história ou da literatura universal, como as referências a passagens do cristianismo nas sinfonias N° 2 "da Ressurreição", N° 4 e N° 8 "dos Mil" quando ele usa a primeira parte do hino cristão "Veni Creator Spiritus" e, no fim, os últimos trechos do Fausto de Goethe, além de muitas referências também nos seus ciclos de canções que incorporavam desde influências de canções populares até cromatismos da música chinesa, até então distante e desconhecida, vista até mesmo como estranha. 

Ele viveu então em grandes divísões. Durante o período mais feliz de sua vida escreveu a mais trágica das suas sinfonias (a de N°6, com toda razão chamada de "Trágica"). Mas, voltando a "Titã", já nessa primeira sinfonia ele deixava claro esse clima dramático extremo que, nascendo do relacionamento fracassado, o transcende imensamente e se encontra com o fracasso do amor ao próximo na guerra que já se anunciava. Por isso o clima de incerteza, dos momentos de lirismo que se contrapõe com uma marcha fúnebre criada a partir de uma música infantil, compondo um quadro bizarro onde vemos pequenos animais de um bosque conduzindo um caçador em seu funeral. O silêncio desse movimento é interrompido por um rompante de histeria, uma fúria abrupta que, após alguns instantes, como um furacão destruindo tudo por onde passa numa tempestade inclemente, dá lugar a um novo lirismo, de beleza impar, como o sol que se abre lentamente penetrando as nuvens pesadas, e termina num triunfo. Como não se emocionar com o brilho das trompas que os músicos tocam de pé com todo vigor antes do fim da obra?

Me recordo que meu pai, que me acompanhava num audição dessa peça pela Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro em Brasilia, acordou repentinamente durante uma passagem mais alta, e pude ver não só ele absorto na peça como emocionado, escondendo algumas lágrimas de mim e aplaudindo de pé o maestro por vários minutos. 

Mahler era uma alma que desejava a alegria em sua mais prístina pureza, e chegou a se converter ao catolicismo ao se deparar com a promessa da redenção, primeiramente pelo sacríficio, como vemos nos andamentos dramáticos da sua Sinfonia N° 2, mas depois pela redenção pelo amor, na longa Sinfonia "dos Mil". Consigo perceber, para além da tragédia de seus trabalhos, uma íntima sintonia com a doutrina cristã do fim dos tempos, a união com Deus.

Nele então se via alguém que conseguia combinar elementos distintos. Colocava a voz no mesmo plano dos instrumentos em muitos de seus trabalhos. Como não se impactar com os primeiros compassos do seu "Veni, veni creator Spiritus"? E, achando que o grande coro de vozes mistas e solistas serão o destaque acima da orquestra mas então, no intermezzo entre o hino e as falas finais do Fausto de Goethe vemos um andamento puramente orquestral, longo e de beleza sublime, divinal, que me faz crer que, Mahler não somente teve ali um vislumbre da redenção pelo amor como conseguiu congregar o que a Igreja mesmo diz em suas preces, pedindo a Deus que não olhe para seus pecados mas para a fé que anima seu povo eleito e congregado. 

Vozes em coros, solos, naipes das orquestras em formatos não antes vistos para combinar com as mensagens profundas do seu coração. Um martelo golpia impiedosamente o frenético último movimento de sua "Trágica", sinos nos remetem ao credo religisio, o xilofone nos faz ouvir a risada do diabo, temos ainda a presença de harpas, bandolins e celestas, criando a atmosfera delicada da música oriental combinada com o vigor ocidental: trágico ao estilo de Wagner. E não cedeu quando apontaram as discrepâncias de sua obra:

"O que vamos fazer é tocar para vocês a última parte da última peça da sua grande sinfonia, A Canção da Terra, parte da qual ouvimos antes, que é um dos finais mais bonitos que qualquer peça musical já teve. Agora, algumas pessoas ficaram surpresas quando eu disse que ia tocar isso hoje. Eles disseram: "O quê? Vais tocar aquela música longa, lenta e intelectual para os jovens? És louco - eles vão ficar inquietos e barulhentos. Eles não vão entender. É muito intelectual. E nem sequer termina com uma finalização estrondosa. Morre silenciosamente. Ninguém vai bater palmas.” Bem, eu conheço os meus jovens, e não tenho medo de tocar esta obra para vocês. […] finalmente a música extingue-se nesta palavra [ewig], sem parecer terminar. É quase como magia, este final maravilhoso. Realmente tem-se a sensação de que continua indefinidamente, para sempre, mesmo depois de parar. E se esta quietude mágica no final fá-lo sentir vontade de não bater palmas, simplesmente não bata. Eu entenderei."

Uma coisa que me encanta em Mahler é a forma como ele descreve as coisas, nunca de forma gratuita, cada nota, cada silêncio, tem um motivo e faz sentido de estar ali. Quando descreve uma paisagem, por exemplo na sua 3° Sinfonia, ele não faz uma simples descrição, ele reflete o olhar daquela natureza sob os olhos de uma criança, de um soldado, de um moribundo, de um pecador arrependido, a aparente permanência da paisagem se constrasta com as transformações que se passam na alma do sujeito. Potência e ato. O homem e seu devir. 

Um sujeito que olhe o pôr do sol se coloca diante da escuridão que se anuncia e que em breve se espraia infinitamente, é o desconhecido, aquela porção que assusta os homens desde o primeiro pensamento justamente porque não conseguimos controlar completamente a escuridão. Até afujentamos ela brevemente, com um fogueira ou lanterna mas, para além desse alcance, é o manto de Nix que recobre o orbe. Assim como andarilho, como aquele peregrino russo, meditando em seu coração a prece perpétua da Filocalia. Muito embora ele devesse andar naquelas paisagens largas e brancas de neve, também cabe aqui ele se sentrar no caminho, observar o sol despontar ao longe iluminando a grama de um verde esmeralda, a terra vermelha, torrão amado dos viajantes que caminham nas estradas do mundo rumo ao céu, e perceber uma coisa: permanência. 

O que há de mais permanenten do que a sucessão dos dias e noites? Repetem-se incasavelmente. Assim como a prece perpétua deve se repetir não para se impregnar no ser daquele que reza, mas para fazer parte do próprio.

A permanência que ele busca é exatamente a da natureza que o circunda e que ele precisa aprender a internalizar, é o universo exterior que o ensinará a prece perpétua. É o nascer e pôr do sol, é o correr das águas, essa permanência, impermanente porque acontece sempre mas acontece também diferente, como nos ensina o Pantha Rei de Heráclito. 

Olhando então o pôr do sol e as cores que se misturam numa miriade de tons, ou a beleza das esmeraldas folhas da grama no pasto daquele cavalo com uma seta na testa, essa permanente mudança me obriga a crer na crece perpétua, ao "orai sem cessar" do apóstolo São Paulo, me tornando não apenas mais próximo, mas partícipe do todo. 

Foto: Igor Murilo, 2023

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