terça-feira, 16 de agosto de 2022

Palavras a completar

Ele passou diretamente por mim, mesmo que nossos olhares tenham se cruzado por um milésimo de segundo. Ambos viramos o rosto, como se não fosse nada, como se não fosse ninguém. Apenas dois estranhos nos bancos cheios da igreja. Mesmo sabendo que não foi nada, não fingimos que não foi nada simplesmente, na verdade há um motivo pra isso, mas ninguém se atreve a dizer ou reconhecer, será pra sempre apenas isso, um olhar desviado, um incômodo momentâneo e nada mais. 

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Queria não perceber muitas das coisas que percebo. A alegria alucinada de quem está em profundo sofrimento é dolorida demais de se ver. O desespero do outro é assustador, quando transparece não apenas em lágrimas e gritos mas em risadaria e brincadeiras, quando o outro se assusta e foge para tão fundo dentro de si que apenas demonstra uma felicidade desmedida, insensata na verdade, é uma declaração clara demais de um espírito em aflição. É assustador, ainda mais quando isso se vê de alguém que busca sempre demonstrar fortaleza. 

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Queria que ele olhasse para mim, como eu olhei um dia. Me lembro ainda da alegria que tinha ao chegar cedo na sala e ver o garoto tímido e cabeça baixa, o cabelo preto caindo numa franja discreta sob o rosto. O sorriso tímido que eu levei algumas semanas para ver. Eu precisava me aproximar dele sempre que queria ouvir sua voz. Me lembro também do dia que ele chorou porque não tirou uma boa nota na minha prova, e eu fiquei com coração partido. Sempre me aproximava para conversarmos um pouco, queria saber mais sobre ele, sempre tão discreto, silencioso, reservado e eu encantado com aquele jeito único dele. A essa altura eu já não olhava mais para ele como um aluno e, quando eu fui mandado embora, minha tristeza foi saber que eu não o veria mais. Nossos caminhos já estavam distante demais. E eu só queria que ele me olhasse diferente, como eu olhei um dia e assim, quem sabe, poderíamos voltar um a vida do outro. Um devaneio bobo. É aqui que eu devo acordar do meu sonho.

Isso porque a forma como eu vejo as coisas é sempre minha, e apenas minha. Apenas a consciência individual percebe os fatos e os medita no seu íntimo, e isso me dá uma amostra de solitária condição humana. Eu sei a reação de repulsa que eu causo nas pessoas, conheço bem. Meu abraço, meu carinho, sempre serão apenas meus. 

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Obrigado, pelo seu carinho, pelas suas lágrimas, pela confiança. Obrigado por estar ao meu lado. 

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Me sinto perdido, inquieto e absolutamente desesperançado, incomodado com toda as incertezas dessa mudança. A sensação de insegurança, um grande defeito meu, tem me dominado completamente. Eu fico pintando os piores cenários. As coisas nunca pode ser simples? Tudo precisa ser sempre confuso assim? São tantas questões que fogem a nossa capacidade de ação que é nauseante, eu simplesmente não tenho conseguido ficar acordado com isso. Parece que eu vou explodir diante da perspectiva e constatação de toda a minha impotência.

Minha família resolveu levar a mudança e acampar na casa de uma prima minha até a gente conseguir pessoalmente olhar as casas para alugar, acontece que, já não bastasse a gente ter ligado pra metade da cidade, não estão levando em conta que todo mundo em casa está negativado, o que significa mais um empecilho na hora de locar um imóvel, e parecem não se preocupar com isso. 

Talvez seja uma demonstração clara de que eu não confio na Providência. Não me surpreenderia, eu também não tenho Esperança, o que posso fazer? É a isso que me refiro quando digo que já não sou nada, que apenas me restou uma casca vazia. Sonhos, esperanças, amor, tudo o que move as pessoas morreu dentro de mim. Eu olho o mundo com uma lente sépia, opaca, e todo brilho se dissipou. Eu só vejo um futuro complicado, dolorido. 

E o que mais me irrita é que as pessoas ao meu redor dizem pra ter paciência, que elas passaram décadas tentando conseguir as coisas e nunca chegaram lá, mas isso devia me animar? Não existe nenhuma razão para eu me obrigar a passar trinta anos de dificuldades e ainda assim não conseguir o mínimo, se for assim é melhor eu me jogar da ponte hoje mesmo. Como isso pode ser incentivo? Eu só vejo razões para desistir. 

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Nesse momento eu me odeio, odeio pela minha falta de coragem de fazer o que é necessário. Me odeio com todas as forças por não conseguir fazer isso. Bastariam alguns remédios que eu tenho aqui, ou que pulasse de uma ponte, bastaria me jogar a frente de um carro na BR movimentada, ou que afundasse o canivete com um pouco mais de força na veia certa, mas eu não tenho coragem, eu sou alguém que não presta nem mesmo pra tirar a própria vida, uma vida miserável e sem sentido. Não tenho mais dignidade nenhuma se não consigo nem mesmo isso. Sou patético, nojento e não sou digno nem mesmo de pena, senão que mereço apenas o desprezo, que cuspam em mim, que me deixem sozinho. Eu não quero ir embora, mas eu também não quero ficar, eu só quero desaparecer, eu só quero voltar ao nada. 

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E nem preciso falar da ingratidão, da solidão que é estar tão preso dentro da minha própria mente que quem está ao meu lado não consegue sequer ouvir os meus gritos lancinantes e desesperados pela libertação dessa tortura. Ao mesmo tempo sou tomado de arrependimento e vergonha por não confiar o bastante, por não conseguir ter esperança, por não conseguir seguir o imperativo evangélico "não vos preocupeis!", eu me preocupo, isso porque estou preso as minhas forças humanas, e eu sei que nada posso, elas nada podem. Só posso elevar em prece "E eu pobre, que farei? Que patrono invocarei?".

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Hugo de São Vitor disse na Didascalicon que "onde não há fim não pode haver repouso. Onde não há repouso não há paz. Onde não há paz, Deus não pode habitar."

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Queira me conformar a Vontade Divina, aceitar com alegria os espinhos que entre rosas vou colhendo, eu queria mesmo. Mas quanto mais eu tento, sempre que paro pra observar a realidade, me sobe um desespero, me sinto inseguro, e eu não consigo me agarrar a nada. E eu queria confiar, acreditar, esperar, me abandonar completamente ao que Deus preparou para mim. Mas eu não consigo fugir da tristeza e da aflição, e isso me tira a paz. E quanto mais eu penso nisso menos paz eu tenho e mais infiel me sinto porque sei que isso é trair o princípio mais básico da cristandade. Eu me envergonho profundamente por não conseguir fazer algo tão bobo quando tantos outros que vieram antes de mim foram tão heroicos em suportar martírios horrendos em nome do que acreditam, enquanto eu não consigo suportar nem mesmo as mais básicas adversidades sem pensar em desistir, sem desejar o fim. "Gemendo tal qual réu envergonhado, a culpa me enrubesce a face, suplicando a Deus..."

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"Não há no mundo horror que comparar se possa, à luz perversa desse sol que o gelo acossa, e à noite imensa que no velho Caos se abriu; Invejo a sorte do animal talvez mais vil, capaz de mergulhar num sono que o enregela, enquanto o dédalo do tempo se enovela." (Baudelaire)

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