quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Ao outro

Ele nem ao menos sonha ser objeto de tanta contemplação minha, não imagina que as minhas tentativas tolas de interação são, na realidade, tentativas de preencher com sua figura o espaço que se abriu no meu peito e que se identifica pelo seu nome. 

Desde que o vi algo se acendeu em mim, não uma paixão baixa, não fruto de desejos feios e abjetos, mas um sentimento de pura contemplação, ele se tornou objeto não de desejo mas sim de um afeto simples e puro. Desde que o vi muito do meu tempo foi dedicado a segui-lo com os olhos, a tentar aprender mais sobre ele, a conservar na memória aquela imagem que, tão logo ele se fora, se esvaíra dos meus sentidos. Por isso meus olhos o seguem e meus lábios imitam palavras que tentam despertar nele o mínimo de curiosidade, que ele perceba a minha existência, como a existência dele se tornou o eixo ao redor do qual eu giro, desde que o conheci. 

Queria ter ido naquele dia, como combinamos, mas eu não consegui sair da cama, e me dopei e passei o resto do dia dormindo, mas nos meus sonhos lá estava ele, altivo, nobre, pacífico, e completamente indiferente a minha existência. 

Mesmo com um sorriso irônico levemente esboçado no meu rosto eu ainda penso nele, sabendo que em nada conseguiria toca-lo, que nada minha existência significa para ele, sendo minha admiração um sentimento de mão única, no entanto, sendo a mais alta admiração que se pode ter por alguém, mesmo um alguém quase estranho, alguém que se viu umas poucas vezes, alguém que só trocou comigo uma meia dúzia de palavras, mas que despertou no meu interior mais do que dezenas de dias convividos com tantos outros. 

X

Ou será efeito apenas da minha carência afetiva que encontrei nele outro objeto de desejo, outro objetivo a ser atingido simplesmente porque já não tinha em meu coração a quem admirar e me sentia sozinho e vazio por isso?

O coração parece sempre buscar a quem admirar, como uma fera procura a quem devorar, e pode ser que ele seja a vítima da vez, uma pobre vítima dos meus desejos luxuriosos manifestada na sua figura misteriosa.

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Mas o que sinto não tem esse tom luxurioso que normalmente as minhas incursões trazem, mas apenas uma admiração do tipo platônica, ideal. Não o vejo como alguém a quem queira possuir, ou alguém para quem eu queira me entregar, apenas o vejo como alguém de alta nobreza, de grande interesse, de uma superioridade que nem sei dizer de onde vem mas que me encanta de tal modo que não consigo desviar o olhar dele sempre que cruzamos. 

Por mais que sonde o meu interior essas duas visões se entrecruzam, e eu não sei o quê nele me chamou tanta atenção, se foi um encanto genuíno, uma paixão nova e pura, ou apenas um desejo luxurioso, uma necessidade de ter a quem amar, de ter a quem desejar sem nunca poder tocar, um ideal inatingível, um fetiche irremediável de desejar sempre o que não se pode ter. Eu não sei dizer o que é, mas sei que não posso mais ficar indiferente a sua presença. 

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No fim das contas, ao fim do dia, não importa quem seja objeto de contemplação ou quem se perca em devaneios na beleza do outro, a ansiedade sempre vem pra estragar tudo e, quando ela chega, não tem beleza, não tem paixão, não tem admiração que sobreviva, tudo é demolido, tudo é reduzido às cinzas. Eu sou reduzido às cinzas, tudo retorna ao nada, e tudo que vejo é caos e o desespero tomando conta de mim, pouco a pouco, me consumindo, até que não sobre nada. 

E eu só queria um alguém pra contemplar, sem dar trabalho, sem ser motivo de preocupação para meus pais e amigos, queria ser eu por mim mesmo, mas a cada noite, a cada crise, a cada lágrima derramada de pavor eu me vejo ainda mais distante desse ideal, com medo do amanhã, com medo da morte, com medo de quem eu não fui e deveria ter sido, com medo de quem sou. 

Só me resta ansiar pelo fim, é o meu reflexo, é o que meu ser deseja quando se vê consumido pelas chamas do desespero. Já não há aquela felicidade simples de antes, na beleza do amado, só há lugar para o desejo mórbido do fim. 

"Quando me penso morto o ar fica completamente puro." (Bukowski)

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