quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Morada


Primeiro dia do ano e nada mudou. Apenas fui violentamente confrontado com as perspectivas de mudança de que todos falam, e vi que na realidade nada mudou para eles também. A ideia geral de recomeço para uma vida nova, um algo completamente diferente não é mais do que um imposição cruel sobre os corações indecisos e feridos. 

A ano virou mas continuamos amando aquela pessoa que não se importa, continuamos devendo no banco, ainda estamos tristes pelas traições. O clima de depressão é grande, até o céu chora pelas ilusões que se foram e pela realidade que agora somos obrigados a encarar, agora que o efeito do álcool e dos remédios se foram. 

Continuo infeliz, sorrindo de maneira forçada. Os outros chegam a pensar que é deboche mas não, apenas não consigo mais sorrir de maneira natural. Me olho no espelho e continuo vendo um animal estranho, de aparência feroz que faz os outros fugirem. Talvez seja esse o motivo de eu estar só, talvez eu seja um animal, uma besta presa no corpo de um homem. Isso não mudou. 

Como eu estou? Bem! É o que digo aos meus amigos, mas a verdade é que não estou nada bem com a vida. Estou preso em meu jardim secreto, observando minhas plantações infrutíferas. Nem sequer sei mais como demonstrar um estado de felicidade pois nem imagino com o quê ela se parece. Talvez seja só um pensamento de luz que criam para disfarçar o medo da escuridão, para suportar o fardo pesado da existência, mas nem mesmo essa luz eu encontro dentro de mim. 

Apenas os números no calendário mudaram, a vida continua sendo uma sucessão de desafetos, de enganos, de olhares rabugentos e receitas queimadas. Quando os homens se darão conta, então, de que na verdade o propósito pelo qual vivem não existe senão em sua cabeça? Que vagam dia após dia, sacrificando seus corpos e maltratando suas mentes para, no fim de tudo, não alcançarem mais do que a mesma morte que todos os outros? 

Talvez seja esse, para mim, o significado do branco para a virada de ano. O vazio que há no coração de quem não espera mais nada da vida além de um fim que possa dar cabo a essa sensação constante de que a existência não é mais do que uma sucessão randômica de dor e sofrimento que até pode nos fazer crescer de algum modo, mas que no fim culminará na morte inevitável, lançando todos os homens na solitária lápide, morada última da nossa espécie. 

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