sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

De folhas que caem


Queria saber por onde começar a reflexão desta noite mas... Bem, o choque que tive agora pouco me impede de dar uma forma melhor ao que tenho a dizer. Peço perdão por isso mas não podia permitir que minha limitada capacidade fosse empecilho de dizer o que é necessário. 

Terminei de assistir, poucos minutos atrás, a Bai Mai Tee Plid Plew (The Fallen Leaf), uma série tailandesa que conta a história de Nira (Baifern Pimchanok), uma moça que esconde um passado doloroso. Nira era, antigamente, Wat (Saint Suppapong), um menino que nasceu numa família rica, sendo filho de uma atriz aposentada e de um poderoso dono de construtora. Wat sempre foi um menino delicado, e por isso sofreu severas repreensões de seu pai e de sua tia, ambos violentos e bastante abusivos, encontrando consolo apenas nos braços de sua mãe, que ainda lidava com um casamento aos pedaços, e em seu tio, Chat (Push Kasetsin), com quem passava bons momentos. Dado como morto num acidente de carro, Wat volta como Nira para seu país e acaba se envolvendo novamente nos problemas da família, que não sabem quem ela é de verdade. Seu pai continua sendo um homem abusivo. Sua tia, vingativa e possessiva. Seu tio, por outro lado, continua sendo um homem gentil, por quem ela se apaixona perdidamente. 

Fiquei chocado, em vários momentos, com algumas coisas. A primeira delas é que o amor pode se expressar das mais diversas formas, sem que as pessoa consigam entender os seus planos, muitas vezes doloroso demais para nós. O amor pode estar onde menos esperamos, pode vir dos amigos que conhecemos por acaso num dia de trabalho qualquer ou daquele estranho por quem cruzamos num consultório. Esse mesmo amor pode, no entanto, nos ser negado por aqueles que estão dentro da mesma casa que nós, onde só encontramos dor e incompreensão. O amor é uma faísca que se transforma num instante numa violenta labareda, aquecendo ou queimando todos ao nosso redor. 

Estou bastante sensibilizado com a obra, tocado pelo romance entre Nira e Chat. Apesar de ser aparentemente bem errado eles não eram parentes de verdade, já que Nira era sobrinha de Rong e não do seu marido. Detalhes sanguíneos à parte é de se estranhar que ela se apaixone pelo homem que antes brincava com o sobrinho nas poucas horas de alegria que o menino tinha dentro de casa. Mas, se pensar bem, Chat foi um dos poucos que cuidou dele e enquanto seu pai tinha horror as suas características mais evidentes, o tio via uma beleza e um talento imensos. Foi nas palavras e no sorriso dele que o pequeno encontrou motivos para continuar e para se tornar quem ele sempre quis ser, ou melhor, quem ele sentia ser mas não era, ainda. O amor que antes se expressava no carinho de um homem pelo sobrinho agora só se mostrava de uma forma diferente.

Outra coisa que me chamou a atenção, no último episódio, foi ver o quão dolorosa e custosa foi a transformação dela. Nira já se sentia uma mulher dentro de si, isso podemos ver nos diálogos com sua mãe, e quando ela finalmente teve coragem de encarar o mundo sem se sentir desconfortável no próprio corpo quis ser notada por todos. Ela quis a aprovação que antes lhe fora negada. Se antes seu pai a impedia de sair de casa e ver seus amigos, por vergonha do que eles iriam dizer e achar, agora ela tinha um mundo inteiro de câmeras e holofotes virados para ela, atentos para verem que ela mostrasse ser quem era de verdade. Demorou até que ela encontrasse seu verdadeiro eu. Teve de enfrentar muitas coisas, inclusive a própria família e, no final, ainda buscava se redimir da dor que era por ser quem era, e não aquilo que os outros esperavam que fosse. 

Fiquei mexido com a dor dela. Nira não tinha escolha que não fosse ser ela mesma, mas isso ainda causava-lhe dor pois, para ser quem era não podia ser quem o pai queria que fosse. Se fosse ela mesma não poderia deixar de amar Chat e com isso desagradar sua tia e todos ao seu redor. Ela escolheu ser ela mesma. E isso trouxe dor a todos, e ela se culpou por isso, a ponto de optar por tirar a própria vida. Seu último discurso mostra que ela ainda está atrás dessa redenção. E foi isso o que mais me chocou.

O que é preciso para se aceitar? O que é preciso mudar para que a gente encontre quem de fato somos? Quanto mais é preciso escavar para encontrar, na profunda consciência, o eu? O que, afinal, é esse eu? 

Talvez eu tenha me visto um pouco nela. Talvez eu também lute a cada dia para me olhar no espelho e me encontrar quando, na verdade, vejo apenas um estranho a me encarar em meu reflexo. Sei que ser eu mesmo é não mais do que um incômodo, que eu constato nos olhos daqueles que olham para mim. Olhos frios que cortam como uma faca a deslizar numa garganta cheia do sangue mais quente. Mas ser eu mesmo é minha única opção pois, seu eu não for eu mesmo, não serei mais ninguém. E além disso há essa dor, a dor do desespero que é ser eu mesmo. Desespero para o qual não há fuga senão na loucura completa da despersonalização que, em si mesma, ainda é desespero de ser quem se é, mesmo que, no fim das contas, não sejamos mais do que folhas caindo e sendo levadas pelo vento... 

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