segunda-feira, 14 de março de 2022

Fingir

A vida só encontra algum significado na completa dormência da dopada candura, num porre de Rivotril e Diazepam que apagaria um cavalo e que me deixa tonto antes de me fazer mergulhar na completa escuridão silenciosa, e é precisamente nessa escuridão que eu encontro a luz que me guia com mais clareza que a do meio dia: a luz da verdade que esconde por trás da realidade, a verdade de que esse mundo não tem sentido senão na privação dos sentidos, na dormência, na não percepção, pois tudo o que percebemos é, de certo modo e guardadas as devidas proporções, dor em algum nível da existência. 

A vida só não é dor na hora dulcíssima do sono, quando fechamos os olhos para a barbárie da nossa espécie, quando não notamos o fedor da lixeira da miséria humana, quando nos entregamos ao prazer puro e simples de um sonhar onde não estamos presos a essa máquina de morte, onde o sofrimento ficou de fora das páginas que compõem essa história e que, no entanto, não deixa de ser isso, apenas história, e que logo acordamos para a realidade e seus saberes e enigmas. 

E parece que só assim, chapado de tarja preta ou álcool é que conseguimos anestesiar o trauma que é viver, que conseguimos encarar, por mais turva que esteja a visão, ver essa terra de males e não vomitar os próprios intestinos quando nos damos de cara com a verdade dessa terra, verdade nua e crua, fria com a lâmina de uma espada que transpassa nosso coração, ou uma lança que arrebenta nosso coração por trás, empunhada pelo seu melhor amigo. 

Não consigo imaginar a vida senão como uma longa tortura para testar se somos dignos de uma vida eterna pura e sem sofrimento e, no entanto, não sei se forte o suficiente para passar no teste. Sou fraco, e a visão desse mundo me causa ânsia, e eu prefiro dormir e fingir que não existo. 

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