sexta-feira, 11 de março de 2022

Deuses e Feras


"Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera."
(Augusto dos Anjos)

Há muito tempo não tiro uma foto minha, lembrou um amigo próximo, e eu respondi que não conseguia nem me olhar no espelho, quem dirá tirar uma foto. Acontece que há muito eu já não vejo resquícios de beleza em mim, parece que fui abandonado pela beleza, que já não sou digno de sua presença em minha existência. 

Desde que engordei eu tenho odiado meu corpo, odiado com todas as forças, se pudesse enfiaria uma faca na minha barriga e arrancaria eu mesmo essa camada de gordura que agora enche as minhas roupas e me faz sentir como o homem mais feio do mundo. Nem meu rosto, que nunca fora lá muito bonito, escapou, agora cheio e preenchido como uma bolacha não há ângulo que fique bonito, com ou sem barba, nada que se aproxime dos belos rostos perfeitos dos atores que eu sigo, todos lisos e sem grandes imperfeições, angulares e belos no seu conjunto e perfeito em cada pequeno detalhes, dos olhos puxados aos lábios bem desenhados. Em mim não, os lábios que poderiam ser belos ficam escondidos pela barba, mesmo quando eu a tiro, numa camada grosseira de pele digna não de um anjo, mas de um demônio raivoso. 

Meu corpo todo é coberto por uma camada espessa de pelos, eu pareço com um animal, e por mais que eu tente cuidar, ou tentava, ainda parece que a selvageria não pode me deixar. Agora, além dos pelos há também uma camada de gordura ao redor da minha barriga que me deixou enorme. Nada mais fica bem em mim quando me visto e, quando fico sem camisa a coisa só piora. Me tornei disforme, invejando os corpos esguios e esbeltos, magros como devem ser. Não há discurso que me possa fazer aceitar esse corpo horrível. E tudo que eu desejava era a beleza, por mais mínima que fosse, e o que recebi foi a completa bestialidade. 

Será isso a influência má dos signos do zodíaco, ou apenas a confluência natural de um mundo indiferente que se esqueceu de mim, ou uma condenação não por algum pecado, mas por alguma infâmia que eu tenha cometido e me esquecido? 

A minha imagem me causa repugnância, e ao me ver no espelho me sobe uma ânsia, eu tenho nojo da minha aparência, nojo do que me tornei, e como a serpente da inveja eu só posso sonhar com as belas águias que voam pelos céus em seus corpos perfeitos. 

Em minha mente tenho como referência os anjos perfeitos de pele clara e corpos esguios, vozes de violino e o portar-se de lordes. Eu agora me movimento com a graciosidade de uma morsa. A beleza me abandonou, e ri-se de mim com seus corpos de fadas. Eu não sou fada, sou fera, sou monstro, aberração. 

Como podem ser eles tão lindos assim? Como podem ter na pele a perfeição dos anjos? Como podem ter as vozes das sereias que encantam os marinheiros? Onde é que há gente no mundo? Não são todos senão príncipes em suas vidas, onde é que há gente de verdade? Não são homens comuns.

Mas eu também não o sou. Eu com meu complexo de inferioridade e cercado de antidepressivos sou menos do que homem, não podemos estar sob a mesma categoria. Eu não sou mais do que uma fera com forma humana, e uma forma que por si já foi destruída. 

Serão eles filhos dos deuses de outras eras? É bem possível, já que sua beleza reluz como a de Apolo e Dionísio, seduzem como Zeus  e Ganimedes. Eu sou descendente de outras criaturas, dos monstruosos hecantonquiros, feras bestiais que em nada pareciam com os humanos. Estamos em lados distintos desse campo, embora lutemos pelos mesmos ideais não somos iguais. Tampouco vivo em palácios como os centímanos após a titanomaquia, eu jamais seria útil numa guerra dessas proporções. Já é difícil lutar as minhas próprias guerras. 

E então aqui, sozinho nessa praia da minha mente eu me pergunto, onde há homens de verdade no mundo?

Poderão as mulheres não os terem amado
Poderão ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza
Argh! Estou farto de semideuses
Argh! Onde é que há gente? Onde é que há gente no mundo?
(Fernando Pessoa)

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