sexta-feira, 25 de março de 2022

Descrição

O inimigo persegue a minha alma, 
ele esmaga no chão a minha vida
e me faz habitante das trevas,
como aqueles que há muito morreram.
Já em mim o alento se extingue,
o coração se comprime em meu peito! (Sl 142)

Cheguei em casa bem cansado depois de uma missa complicada, cheia de músicas difíceis pra qual eu não tinha ensaiado, me sentia exausto, embora também me sentisse satisfeito por conseguir cantar peças cada vez mais complexas sem tanto preparo. Sentei um pouco e senti o peso da fadiga nas costas. Agora, algumas horas depois eu já descansei, mas ainda tem um sentimento ruim pesando. 

Uma das piores coisas nas crises da minha fase depressiva, ironicamente toda vez que eu falo de algo é sempre uma das piores coisas porque não tem nada de bom numa depressão, é essa sensação de que algo está errado mesmo quando tudo está aparentemente normal. Hoje não foi um dia ruim, não aconteceu nada de ruim nele, mas ainda assim fica uma sensação geral um gosto ruim na boca que não sai de jeito nenhum, uma sensação de que uma onda se aproxima pra destruir tudo. A depressão é, muitas vezes, essa sensação de que algo muito ruim vai acontecer, ainda que essa coisa nunca chegue em si mesma, é a própria sensação que é destrutiva em si mesma. 

É até complicado descrever, minhas limitações sendo exploradas aqui, mas é como se eu estivesse num farol, observando a tempestade se aproximar lentamente, com seus ventos assustadores, e não pudesse fazer nada porque estou preso ali. A descrição é imprecisa mas é o melhor que eu consigo fazer agora, ainda mais agora, em que parece que não mais estou a observar a tempestade mas estou bem no centro do furacão, o vórtice impetuoso a me roubar a respiração. Tenho pressa a escapar de tal prisão mas não consigo senão me debater em meu cárcere. 

É como os rompantes de fúria do primeiro movimento da Sinfonia N° 6 do Tchaikovsky, o destino interrompendo bruscamente o pobre coitado que tenta contar a sua história, sendo engolido por um vendaval, lançado de um lado a outro e, até nos momentos de repouso, tomado por uma aura de pessimismo que tinge de cinza as flores mais coloridas do jardim secreto de minha alma.  

É essa a sensação de ser perseguido por um inimigo invisível que conhece todos os meus medos e os usa contra mim, é como ser esmagado pelas suas patas, é como se suas garras perfurassem meu coração e lançasse meu sangue sobre as rosas do jardim tingindo-as com as gotas de meu sangue.

O grande problema é que tudo isso vai gerando um desgaste tão grande que é como se minha personalidade pouco a pouco fosse se desfazendo, como uma rocha que em centenas de milhares de anos desaparece em meio a areia do deserto. E então eu sinto que estou desaparecendo, já não sabendo mais quem eu sou, só reconhecendo medos nas noites mais escuras, é como se isso fosse tudo que tivesse sobrado. E na noite escuro eu busco aquele por quem minha alma clama, mas eu já nem sei seu nome, só o que sobrou foi o buraco que ele deixou ao partir. 

Me tornei novamente o habitante das trevas, mas elas não estão mais apenas me perseguindo, estão dentro de mim, me matando de dentro pra fora, pouco a pouco. Não é a minha melhor descrição, reconheço, mas é o que posso fazer aqui nessa escuridão. 

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