sábado, 26 de agosto de 2023

Memórias antigas

Decidi adiar a aula de hoje na esperança de que o exercício rememorativo que vou fazer possa me servir de algo nessa minha longa e enfadonha jornada. Estando mais uma vez numa situação em que me vi alimentando sozinho sentimentos e mais sentimentos me encontro de novo frente a um questionamento que sempre me paralisa, em cujas investigações parece que sou incapaz de sondar até a segunda camada que seja: sempre quis descobrir de onde vinha essa tamanha carência que me faz humilhar em tantos relacionamentos fracassados, numa busca incessante por um outro capaz de me oferecer algo que nem mesmo eu sei do que se trata... A gênese dessa imperfeição ainda me é desconhecida.

Uma pequena luz me surgiu então, nesse início de noite estranhamente quente em pleno inverno, em que lia as últimas páginas da Consciência de Zeno no ônibus. Embora o personagem falasse com desprezo pelo seu psicanalista, inventando muitas lembranças pelo prazer de dar ao profissional a ilusão de encontrar a cura para um problema que ele mesmo não se importava em resolver, algumas lembranças reais e tão antigas, que eu até mesmo estranhei a forma com que meu reflexo aparecia nelas, me foram brotando da memória, como se tivesse acertado uma mina há muito adormecida nas areias do tempo. O que relato aqui são apenas fatos soltos que espero poder um dia conseguir examinar com mais profundidade. 

Me recordo de algumas visitas à casa de um tio distante, tio de minha mãe ou algo assim que, aquela altura, padecia de um câncer violento. A família inteira se esforçava naquelas visitas para passar uma imagem de força convalescente ao velho moribundo e sua esposa, e eu talvez tenha demorado demais para entender do que se tratava. Mas eu me lembro de seu senso de humor afiado, mais preparado para a morte do que aqueles que o rodeavam. Me recordo de me perguntar o que ele tinha e qual era a razão de todos estremecerem ao som da palavra câncer que, depois daquilo, se tornou impronunciável em casa, de modo que até hoje minha mãe se benze quando alguém a diz. Me recordo ainda do cheiro forte daquela casa que jazia imersa na morte, e foi ali que eu conheci um terror que me acompanhou por longos anos, até o início de adolescência. Alguns, vários, outros parentes morreram de câncer anos depois, inclusive recentemente, o que continua aumentando o horror da família por essa palavra.

Demorei algum tempo para conseguir dormir sozinho, sendo um grande incômodo para os meus pais. Mas, embora eu saiba que já não dormia só antes disso, a lembrança mais antiga até o momento do que me deixava insone sozinho eram algumas páginas de um horroroso jornal policial, daqueles cujo conteúdo é apenas a morte em sua forma mais cruel e brutal estampada sem nenhum eufemismo visual logo na primeira página, à venda nas bancas em que eu comprava, feliz, quase todas as quintas, uma revista infantil que sempre vinha com um brinquedo montável. E me lembro de ver esse jornal pela primeira vez naquela casa do tipo que morria de câncer. Se eles sofriam tanto já pela iminência de uma morte, o que queriam com o conteúdo de tantas outras? Nunca cheguei a saber a resposta. 

Ele morreu, e alguns dias antes, em outra visita, me tiraram da sala para que a família visse a troca de alguns de seus curativos, e tudo que senti foi o cheiro podre das feridas misturado com álcool. Enquanto eles se entretinham nesse espetáculo mórbido que, só hoje entendo ser um ritual de apoio emocional à esposa que servia também de enfermeira em tempo integral, vocação que parece estar predisposta nos genes da minha família, e eu eu encontrei o tal jornal e quase vomitei ao ver, dentre outras coisas, cenas de um homem cuja cabeça havia sido dilacerada por cães, um outro que quebrara o pé numa fuga da polícia, o corpo todo perfurado de balas pelos policiais que, pelo visto, não ficaram muito felizes com a fuga, e muitos outros corpos espalhados de qualquer jeito, salpicados de sangue enegrecido. Golpes de faca, porretes, armas de vários calibres que deixavam buracos de vários tamanhos em várias partes do corpo, miolos a esmo, sangue misturado com vômito e terra e muitas outras atrocidades que eu não vou me lembrar agora.

Me recordo vagamente da tapeçaria bordô que eles tinham na sala, mas a aparência frágil daquele homem corpulento havia se perdido na minha memória, assim como as inúmeras noites em que, não conseguindo dormir no meu quarto, dormia na sala ou arrastava até o quarto de meus pais, já grande e em vias de iniciar o ensino fundamental, ao que um dia meu pai se irritou e me fez perguntas um tanto quanto edipianas, sem que eu entendesse nada, já que só conseguia me lembrar daquelas imagens horríveis. Não sei como, pouco tempo atrás, consegui ver tantas aulas do curso de necrópsia sem me lembrar de nada disso, essas lembranças estavam tão fechadas em mim que, se as aulas do tal curso serviram para desperta-las, elas levaram meses para chegar até a superfície. Se foi o livro do Svevo eu agora sou prova viva da força literária como aglutinadora e semeadora da memória e da imaginação.

Outro episódio marcante que acabou me recordando um segundo, embora bem menos significativos, foi quando me perdi de meus pais numa feira em uma cidade próxima a que morávamos. Me recordo, no entanto, de não gostar de feiras e nem ter conseguido frequentá-las por muitos anos, quando a necessidade financeira me fez preferir fazer compras nesses lugares, coisa que conservo até hoje. Assim como me perdi por alguns minutos terríveis que me pareceram horas, anos depois me perdi numa loja de departamentos, lugar que me parecia de uma imensidão infindável e que, nem parece, vasculho hoje sozinho com a facilidade de quem passa um café. 

O que essas experiências têm em comum, no entanto? A sensação desoladora de que, de um jeito ou de outro, seja na violência, numa doença em idade avançada, ou simplesmente abandonado, eu encontraria um fim triste mas, sobretudo, sozinho, esquecido, abandonado... E já naquela época essa possibilidade me aterrorizava e tirava o sono, já naquela época eu temia, mais do que a qualquer coisa, ficar sozinho... Me lembro agora de vários outros episódios esparsos assim, em que me revelava já uma criança carente que temia a morte, o envelhecimento e, acima de tudo, o sofrimento solitário. 

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