quarta-feira, 8 de julho de 2020

Feridas abertas

Tudo tem estado, sei lá, tão triste e tão sem graça. Parece que o mundo todo que corre desesperado atrás de uma cura para o vírus potencialmente mortal não é o mesmo em que vivo. Eu estou apenas atônito, em minha cama, olhando fixamente o teto branco, com um sentimento profundo de que eu queria alguma coisa, mas que já nem sei o que é. 

Meu coração sangra, esvazia-se,
Não desse sangue vermelho
Esse que corre em minhas veias
Sangra amor

Começo a sentir frio
Meu corpo treme
Estou com medo

Meu corpo ainda está de pé
Mas temo não estar vivo
Vegeto a procura do amor perdido
Não adianta

A navalha corta o músculo
Vejo o brilho do alumínio
Dar lugar a um vermelho negro
Agora é certo... ele pára
E eu também...

(Arturo Angelin)

Algumas músicas passam no player, o tempo todo, muitas são tristes e me fazem querer chorar, e eu nem sei o motivo da minha tristeza. Solidão, medo, decepção, vontade de querer ser mais do que uma ameba maníaco-depressiva e superdotada que nunca fez nada de importante na vida. Triste por não ser uma pessoa que imponha o mínimo de respeito, sendo tratado como cão por todos que resolvem falar um pouco mais alto comigo, como se tivesse a obrigação de obedecer, de cabeça baixa e rabo entre as pernas. 

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, absurdo
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante
Que tenho sofrido enxovalhos e calado
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda

Como se tivesse por obrigação fazer tudo o que me pedem, ser o que desejam que eu seja. Como se nunca pudesse fazer o que quero ou ser quem sou de verdade. Mas como disse Dom Quixote, eu sei quem eu sou, e se ao que busco saber nenhum de vós me responde não têm sobre mim nenhum direito de me dizer o que fazer ou como ser. 

Argh! Estou farto de semideuses
Argh! Onde é que há gente? Onde é que há gente no mundo?*

Quem eles pensam quem são? O que eles sabem sobre mim, sobre o que eu faço ou sobre a minha vida? O que lhes dá o direito de me julgar e me classificar? Isso me deixa irado, e a ira me consome, como as chamas consomem tudo até às cinzas. E parece-me que o universo todo irá queimar e se tornar cinza. Pois bem, que todas as coisas do mundo queimem e se tornem cinzas! 

Elas agora vão se parecer com o que há no meu coração. Cinza fria, depois do dies irae, depois que tudo se foi, depois que tudo se tornou nada. 

A verdade é que todos são insetos, pequenos vermes insignificantes que rastejam na lama tentando ser alguma coisa, sendo que o máximo que podem fazer é tentar devorar o corpo daqueles que caminham por sobre suas existência miseráveis. Todos riem-se de mim. Me tornei o opróbrio para todos os que me rodeiam. Causa de risos e zombarias que ecoam em minha mente e no meu coração. Um miserável insultado pelos vermes de suas próprias feridas abertas. 

Mas ao que me parece todas as existências são miseráveis. Cheias de desejos baixos, de provocações covardes, de lutas por poder e controle. Deixe algumas pessoas juntas por alguns instantes e elas logo estarão competindo por poder, se matando de algum modo. Isso porque o mundo hostil em que vivemos, a humanidade inviável da qual fazemos parte é, desde o princípio, um projeto fadado ao declínio. Tudo tende à entropia e ao decaimento, a morte é inevitável, o fim, no entanto é a única esperança, de que tudo isso termine, de que não existam mais poderes e nem dominações entre uns e outros. Que finde a solidão e as provocações. 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!**

~

*Poema em Linha Reta - Fernando Pessoa
** Cântico Negro - José Régio. 

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