quarta-feira, 1 de julho de 2020

De um sol e de um sonho

A luz do sol entrou com uma certa força no meu quarto. Parecia há muito querer entrar por entre as frestas das cortinas, e eu simplesmente ignorando a sua presença, como se fosse uma visita incômoda batendo na porta da sua casa logo cedo, com a diferença de que já não era mais cedo e sim quase meio dia. 

Acordei cedo, mas depois de comer decidi voltar a dormir, sem uma razão aparente. Apenas senti que merecia aproveitar o fato de que meus pais saíram para o mercado e que as infelizes amigas da minha irmã ainda dormiam pesadamente, depois do porre da noite passada. 

Quando finalmente criei coragem para abrir as janelas a luz invadiu com uma rapidez nauseante. A claridade banhou cada pequeno pedaço antes escondido pelas sombras. O ar fresco renovou o que antes se repetia por entre as rotações do ventilador. Cheiro de suor se dissipando. Normalmente eu me recuso a me abrir as janelas, mas senti que precisava dessa renovação. Talvez produzir um pouco de vitamina D não seja tão ruim. 

Pra ser sincero eu acredito que não me incomode tanto assim com a luz do sol, mas sim com o simbolismo natural que ele traz consigo. A luz, a força, o ânimo, coisas que sinto que escaparam de mim há muito e que já não fazem mais parte do meu ser. Me confrontam com essa realidade, e isso me incomoda. É como se, por não sentir mais a luz a luz machucasse os meus olhos. Por me sentir fraco a força inextinguível do sol me fizesse sentir ainda mais impotente. Por isso prefiro passar a maior parte dos meus dias na penumbra, entre cortinas vidros cobertos com película.

Agora escrevo acompanhado de uma xícara esfumante de cappuccino, que deveria ser ideal para um amanhecer frio e não para um meio dia quente e ensolarado, mas felizmente eu não estou muito preocupado com isso. 

Já que estamos falando de simbolismo, resolvi pensar um pouco sobre um sonho que um amigo teve essa noite, depois que nos despedimos e nos separamos na madrugada fresca e bem mais agradável do que esse dia. 

Ele me disse que sonhou ser perseguido por uma criatura com as feições antropomorfizadas de homem e porco, também usando um suíno violento como montaria e carregando consigo uma lança mortal, que destroçava com violência a sua carne. Mesmo correndo ele não conseguia fugir, e após ser dilacerado pela criatura acabava voltando a vida, apenas para retomar a fuga e novamente ser brutalmente assassinado. 

Me contou esse sonho durante nossa habitual conversa ao acordar, é uma companhia diária em que partilhamos desde sonhos a anseios, dúvidas e desejos. 

O cenário é realmente, no mínimo, desconcertante. Para não dizer preocupante. Uma criatura horrenda, meio homem e meio porco, que persegue montado num animal semelhante, sem motivo aparente, apenas com a intenção de matar. 

Isso me lembrou o quanto de simbolismo pode haver nos sonhos, onde todas as construções podem ser um reflexo do que somos, do que queremos ou tememos ou, ainda, secretamente, desejamos. Mas que significado pode existir em algo tão escatológico e desproporcional? Se tomarmos cada um dos elementos de forma atomística, pode fazer algum sentido. 

O porco tem, no simbolismo espiritual, ligação com a riqueza e a fertilidade. No xamanismo é sinal de liberdade e, na simbologia oriental, coragem e fidelidade. São, todas, palavras que ligo a ele de certo modo, por motivos que não vem ao caso dizer aqui. 

Partindo disto então, temos o segundo elemento, a lança. A destruição, a morte, a lança não era usada apenas para ferir, mas para garantir que o inimigo seria morto, sem margem para erro. E a lança o destruía, com frequência. A morte, outro elemento. A ressurreição, outro. 

Parecem não ter ligação entre si, mas uma conversa que tivemos algumas horas antes de dormir pode ilustrar os motivos que o levaram a ter esse sonho. 

Falávamos da construção da personalidade, de temperamentos a desconstrução do ser. E essa é a palavra chave: desconstrução. Esse ciclo de morte e ressurreição pode ser entendido como essa constante formação da persona que, embora seja impulsionada pelas características fleumáticas simbolizadas no porco de certo modo, não se limita a ele, sendo levado a correr novamente a cada novo ciclo. Sendo levado a erguer-se, a reconstruir-se, como a carne despedaçada que voltava a vida. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário