segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Alguns dias

Não é qualquer dia que dá para sair da cama, conversar com os amigos e a família normalmente. Não é qualquer dia que dá pra encarar o mundo, ver as coisas como elas são. Em alguns dias simplesmente não há alternativa para a fuga, em alguns dias o ansiar pelo sono se torna a única esperança, o torpor o único remédio, o único abrigo da tempestade. 

Mas os outros não entendem, como sempre. Confundem com a simples indolência, assim como confundem sua atividades patéticas, seus objetivos medíocres e desejos imediatos, com aspirações verdadeiras, com inspirações de uma existência real, significativa. Os defensores ferrenhos da mediocridade podem dizer que estou errado, que o significado de toda existência humana está em si mesma e não no que ela crê ou produz. Bom, pode ser verdade, mas é um significado evanescente que se esvai no instante mesmo em que cessa o respirar do ser. O significado maior do homem tem de estar em algo além do próprio homem, que o transcenda. 

O problema é que, olhando ao meu redor, não vejo nada assim. Senão que tudo o que vejo é a mais absoluta miséria espiritual, o mais ferrenho comprometimento com a feiura, com a ignorância, com o horror de uma vida mesquinha que se compraz numa cerveja gelada ao som de qualquer música barulhenta que se possa imaginar. É mais uma vez o prazer imediato que se confunde com o objetivo de vida. Mas é só isso? Isso é tudo que a vida tem a oferecer? Prazeres que se vão e desaparecem como fumaça ao vento? Nossas vidas são como folhas ao vento que logo somem? Se assim for eu prefiro não sair, prefiro não comer, prefiro não conversar. Tenho pavor ao que é simplesmente passageiro em si mesmo, ao que vem, encanta e vai embora. Tenho pavor ao que é vazio de significado. E, por isso mesmo, tenho pavor ao mundo que me rodeia, cujo único significado que ele me oferece é o de ser fechado em si mesmo, isto é, não há significado algum. 

Hoje não. Por hoje eu prefiro, a exemplo desse próprio mundo, me fechar em mim. Mas diferente do mundo eu não vou ficar aqui, embora não saia daqui. Eu vou contemplar o mundo mesmo que o meu horizonte imediato me nega. Eu vou para aquele lugar, lá em cima, onde posso ver os grandes espíritos desse mundo e que o transcenderam de tal modo que achegaram-se a mim apesar do tempo e do espaço, aqueles espíritos grandiosos, maiores do que tudo o que eu conheço e de que tudo o que eu já vi, espíritos que me erguem a mão, me levando para bem longe daqui, de toda essa poeira, de toda essa horrenda realidade. Fico no mundo dentro de meu próprio mundo, longe de todo mundo. 

Me vem uma forte onda de ira, o sangue ferve pouco a pouco, me consumindo, sinto meus olhos arderem entre lágrimas e chamas. O controlar-se torna-se inviável. As horas passam sem que eu perceba, ficar deitado no escuro, ignorando a todos é a única coisa que consigo fazer. Não pensar demais, fugir para um sono benzodiazepínico, sonhar com qualquer coisa que não seja o que há além dos umbrais do meu quarto, é só o que dá para fazer.  Só posso esperar até que o torpor se vá, até que a cólera cesse, até que as coisas se normalizem e o peso que caiu sobre mim, sem motivo, se esvaia e eu consiga erguer a cabeça novamente. 

Então não me convide para sair, não chame o meu nome. Não vejo razão para sair, não vejo o que pode haver lá fora que me agrade. Se não há amor, se não há verdade, se não há bondade, se não há justiça, se não beleza acima de tudo, não há razão para sair e existir ali. Então, me deixem aqui, deixem que eu chore pela minha sorte e que eu suspire, pela liberdade. 

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