sábado, 31 de outubro de 2020

O Meu Pé de Laranja Lima

"A angústia é a vertigem da liberdade." 

(Soren Kierkegaard)

É o sofrimento do homem, de toda humanidade, sob os olhos de um garotinho, um molequinho pequeno, como se nunca vira, mas muito inteligente, e que gostava de aprender palavras novas e brincar de filmes de cowboy. Vivia na pobreza, beirava a miséria absoluta, família grande, pouco pão, sem presentes no Natal.

O refúgio se dá no coração, no interior o homem encontra a paz que o mundo lhe tira. No interior o pirralho pobre com os pés cheios de poeira da rua pode ser um grande herói, lutar contra índios malvados, pode visitar um zoológicos com os animais mais ferozes do mundo, dóceis sob as jaulas de sua imaginação. Seu confidente é apenas uma pequena árvore, que ainda nem deu seus primeiros frutos. Entre uma surra e outra, pois nascera com o diabo no corpo e era muito levado, sentava-se a sua sombra e conversavam sobre as mais diferentes coisas, sobre como o copo da professora não tinha flor porque ela era feia, sobre como o Portuga fora o pai que ele escolheu para si, até ser levado por aquele assassino de ferro, e isso não era um sonho. 

O mundo é difícil demais para viver sem uma boa dose de imaginação. A fuga para esse lugar é quase inevitável, olhar ao redor sem essas lentes é doloroso, e nosso olhar se torna vazio porque aqui fora não há cores, mas há muitos dessabores. Há palavras duras, há mãos que machucam, sangue que escorre e marcas nas costas da ira descarregada sobre os menores e mais fracos. 

As vezes encontramos uma alma boa, uma alma que se interessa, que se compadece, uma alma que mostra algo de belo no mundo. Não é verdade que no mundo não há cores, mas é verdade que nem todos podem vê-las. Muitos estão ocupados demais tentando sobreviver, muitos estão ocupados demais com a realidade para enxergar a verdade por trás dessa realidade, a verdade que há um mundo, a verdade que nem tudo precisa ser ruim e feio. 

O sofrimento humano. Meditando esse sofrimento o homem pode entender um pouco de si. Kierkegaard foi quem trouxe de volta a prática de enxergar na experiência o que se pode usar para compreender até a metafísica mais complexa. É daí que parte tudo o que podemos conhecer de verdade. O desespero humano, diz ele, a vontade que temos de nos tornarmos nós mesmos, de a cada dia buscar construir mais e mais e esse Eu que há em nós. De toda experiência há um pouco do Eu, e de toda escolha há mais ainda um Eu. 

Mas o Eu às vezes encontra obstáculos, por isso o desespero, e no seu limite há a perspectiva do fim, da morte, do atirar-se frente ao trem para acabar com o sofrimento de ser tido por todos como não mais que um estorvo, um diabinho em corpo de menino franzino. Essa é uma parte difícil da vida, a mais difícil, e quando passamos por ela, frequentemente perdemos a capacidade de ver o mundo senão com outros olhos além do cinza, sem graça, sem vida, tristes pelo pé de laranja lima que fora arrancado. O fim do sonho, o encarar da realidade, o desespero humano, doença até a morte. 

A primeira flor de Minguinho. Logo ele vira uma laranjeira adulta e começa a dar laranjas. Fiquei alisando a flor branquinha entre os dedos. Não choraria mais por qualquer coisa. Muito embora Minguinho estivesse tentando me dizer adeus com aquela flor; ele partia do mundo dos meus sonhos para o mundo da minha realidade e dor. 

(José Mauro de Vasconcelos)

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