terça-feira, 31 de março de 2020

Casa

Uma casa escura, toda cinza, de madeira há muito devorada por cupins que, até mesmo eles, a abandonaram. Várias tábuas saltavam do chão e das paredes e o vento frio da noite que soprava para dentro dela fazia ranger o que sobrara das dobradiças enferrujadas nas janelas, presas por pouco. O barulho era assustador, lúgubre e pairava ali um ar de maldade. Ninguém se atrevia a se aproximar.

No entanto, nos últimos dias, após um grupo ruidoso de jovens bêbados terem entrado na casa, algo parecia diferente. A casa parecia convidar quem passasse por ela, no fim de uma grande rua que terminava numa ladeira ingrime. Era rodeada por uma matagal que já tampara a visão de boa parte do terreno. Não haviam muros, atrás da casa apenas mais mato num grande cerrado. Ninguém se atrevia a se aproximar. 

A lua cheia brilhava forte, como se contemplasse silenciosamente os mistérios mais sombrios da humanidade que repousava sob sua égide. O negrume da noite cobria a tudo enquanto o zéfiro soprava frio e impassível, sem nenhum interessa naquelas criaturas inúteis. 

Um dia, porém, algumas crianças se incomodaram um cheiro diferente que vinha dali depois que deixaram uma bola rolar para perto e, depois de reclamarem com seus pais, alguns homens foram até lá ver o que era. Até mesmo os adultos, sérios em sua missão de serem adultos, tremiam. Dentro da casa o cheiro era insuportável, e não demorou até que vissem de onde vinha. 

Estava já rijo e esverdeado. Uma camisa de flanela rasgada e trapos do que pudera ter sido uma calça. Um barulho baixo de vermes se movendo e se alimentando era a única coisa que se ouvia. Havia sangue, que já se tornara negro e virara lascas sob os seus pés. Aquelas pequenas criaturas nojentas rastejavam para dentro e para fora, numa coreografia grotesca e indecifrável. Pareciam, para maior espanto daqueles que viam com horror aquela cena macabra, se deliciar com um farto banquete. A barriga estourada, olhos cinzas e muitas marcas de cortes onde, aqui e ali, mais vermes rastejavam para provar daquela carne apodrecida. 

Os homens vacilaram e um deles não conseguiu conter o vômito que irrompeu violentamente de dentro. Não conseguiam acreditar no que viam, ninguém nunca pensa que pode acontecer perto de nós. Mesmo sendo uma casa que todos evitavam, não chegaram a imaginar que um dia pudessem encontrar ali o que encontraram. Ninguém nunca espera que a morte esteja há poucos passos, quase ao alcance das mãos das crianças. Ninguém nunca espera contemplar um quadro pintado pela mais crua das misérias humanas. 

Outros homens logo chegaram, em carros pretos e grandes, enquanto um pequeno grupo de pessoas saia de suas casas para observar, curiosidade o ocorrido. Queriam ver de perto mas sabiam que não deixariam. Tudo o que viram foi um grande saco preto sendo carregado para dentro do grande baú de um carro que parecia frio. 

No entanto, mesmo depois de alguns dias, e já esquecido o fato pela maioria, ainda permanecia aquele cheiro. Estranhamente adocicado, parecia ter se impregnado em cada tábua daquela casa imunda. O cheiro da morte, que fazia a todos se arrepiar quando o vento soprava em sua direção. 

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