terça-feira, 17 de março de 2020

O suplício de Prometeu

E se um demônio lhe dissesse que esta vida da forma como vive e viveu no passado você teria de vivê-la de novo. Porém inúmeras vezes mais e não haverá nada novo nela. Cada dor, cada alegria, cada coisa minúscula ou grandiosa retornaria para você mesmo. A mesma sucessão, a mesma sequência, várias e várias vezes como uma ampulheta do tempo. Imagine o infinito! 
(Friedrich Nietzsche)

Eu tenho um sonho, um pesadelo, que me assombra com uma certa frequência, muitas vezes sem nem mesmo ter dormido. Nesse sonho eu sempre estou com algumas pessoas, no meu quarto, na igreja, sentado na calçada, sorrindo e cantando. Eu pareço feliz, mesmo sabendo que trata-se de um efeito da companhia, ou às vezes do álcool. Duas pessoas então se afastam. Não consigo ver os seus olhos, apenas os sorrisos, estão bem felizes. Vão se afastando até lentamente sumirem de minha visão. 

Algum tempo depois uma delas retorna, não mais feliz, aproxima-se lentamente mas passa direto, indo embora na direção oposta. Eu já não vejo mais os outros que estavam ali, fico sozinho, sentado, olhando para um lado e outro, para a rua grande e vazia na noite, pro outro lado da plataforma do trem, num cruzamento da cidade grande. 

E pouco a pouco vejo cada um deles se afastar. 

Parece ser esse o meu ciclo do eterno retorno. Preso a essa roda da existência, onde quando um ciclo termina outro se inicia imediatamente. 

Sinto isso hoje, como se a espada do destino caísse novamente, fazendo a roda voltar a girar. O oceano do samsara me revolve em suas águas impetuosas com uma violência descomunal. Não tenho nenhuma chance de escapar. E vou de uma existência à outra. Como um Deva, sem me preocupar, caindo no mundo das preocupações logo em seguida, como um animal, como um Asura bestial, furioso e demoníaco. E a roda não para de girar.

O medo me paralisa. Medo do que? Olho ao meu redor e vejo amigos verdadeiros, sorrisos verdadeiros. Mas temo que a vida os separe de mim, como sempre parece fazê-lo com certa dose de prazer sadomasoquista. Esse medo já me impede de me apegar verdadeiramente, esse medo me impede de ir atrás daquilo que no íntimo ainda almejo: a verdadeira companhia. Medo do eterno retorno. Algum dia eu escolhi viver assim? Fizera algum voto secreto onde me condenara ao vazio?

Isso porque todas as vezes em que me senti feliz ao lado de alguém esse alguém se foi no dia seguinte. É como se o destino me seduzisse com o perfume de uma doce rosa, de um grande jardim, onde não me sinto mais sozinho, onde me sinto seguro em ser eu mesmo. E, tão logo me sento ao lado de um grande cedro, por entre as açucenas olvidado, sou mandado para longe desse paraíso. 

Qual tem sido meu pecado? Qual a minha culpa para ter sido excluído do Éden e lançado na terra da solidão? O que terei feito para ofender algum deus a ponto de ter sido amaldiçoado, como Prometeu, a ser devorado eternamente por um vazio que de dentro para fora me consome? Esse vazio, enorme e sempre faminto se mostra a mim como essa águia e suas presas monstruosas, meu corpo, trêmulo e fraco sente cada pedaço estraçalhado se regenerar, para que o ciclo se reinicie. Todas as noites meu corpo é devorado pelo vazio, e em cada manhã ele é refeito, para ser destruído novamente. Sempre encontro companhia, para logo ser abandonado novamente.

Não importa o quanto eu grite, o quanto me corpo se debata violentamente, o quanto meu sangue escorra pelos meus braços e pernas, isso não muda em nada a roda do destino. Ele continua se divertido as minhas custas, posso ouvir, com clareza, a risada do demônio que goza com minha dor, que se enche de prazer ao ver meus olhos marejados e meu coração destroçado como o coração do criador da humanidade, transpassado pelo bico da cruel águia ou pela lança de Longinus.

 “As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça."
(Mt 8, 20)

Nenhum comentário:

Postar um comentário